¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 23, 2003
 
NATAL EM MADRI





Sempre que viajo à Europa, procuro despedir-me da Europa em Madri. Como em geral viajo em dezembro, para fugir ao verão tropical, sempre me deparo com a histeria natalina dos madrilenhos, que invadem o centro da cidade com a fúria de formigas vorazes, buscando armazenar vinhos, presuntos e queijos - e qualquer coisa que estiver à venda - para as festas de fim de ano. Não que infestem as ruas só em dezembro. Os madrilenhos têm fama de callejeros, isto é, de gente que adora as ruas de sua hermosa Corte y Villa. Lá, um brasileiro redescobre o prazer da flânerie, esporte que a feiúra e violência de nossas ruas – e a ditadura televisiva da rede Globo – há muito nos fez esquecer. Todas as noites, multidões se jogam nas ruas, em busca de cafés, restaurantes e teatros e mesmo em busca das próprias ruas, onde o simples flanar é prazeroso. Para quem sai de nossas ruas hostis e quase desertas, é algo insólito ver aquela massa informe invadindo o centro todo da cidade, até uma ou duas horas da madrugada. Nos fins de semana esta multidão se duplica, e nos dias de dezembro torna-se quase histérica.



Madri para mim se resume em uma geografia não muito extensa, que vai da Plaza Mayor e Palácio Real até o Paseo de Recoletos, passando naturalmente pela Puerta del Sol, Plaza Santana e a região de Huertas e Lavapiés. Ali reside toda a vida da cidade. Meu maior drama, se passo apenas uma semana, é rever todos os cafés e restaurantes onde um dia vivi, amei e fui feliz. Ponto de honra é o café Oriente, frente ao Palácio Real, de uma iluminação macia e mármores e veludos aconchegantes. Nos anos 80, aos domingos, minha vizinha de mesa era a Geraldine Chaplin, sempre rodeada de mulheres lindas, o que em nada lhe favorecia: só servia para realçar seu perfil de Olívia Palito.



Em Madri, como os madrilenhos. Após algumas cañitas no café Oriente, vou bater ponto no El Alabardero, ao lado da ópera. O almoço, a las três del mediodía, pode ser no La Bola, reputado por oferecer o melhor cocido madrileño da capital. Ou inicio a jornada por outra ponta, pela Recoletos. Visita obrigatória ao centenário El Gijón, com mais umas copitas no El Espejo, de interior deslumbrante. Consta que lá Jorge Luís Borges teria alimentado sua obsessão pelos espelhos. Para as lides noturnas, Plaza Santana, a Cerveceria Alemana e o Café del Prado, com janta nas cercanias de Huertas. Fim de noite, para mim sempre um só, o Venencia, na Calle Etchegaray, onde viveu Don Ramón del Valle Inclán. Etchegaray foi um ministro de Finanças espanhol que obteve o prêmio Nobel ... de Literatura. Don Ramón, galego irascível, não nutria maiores simpatias pelo conterrâneo ilustre, e sempre que dava seu endereço, insistia: Calle del Viejo Idiota. Segundo a lenda, sua correspondência sempre chegava ao destino.



É nesta Calle del Viejo Idiota que se situa, quase em frente ao Hotel Inglés, o Venencia, para mim um dos ambientes mágicos da Espanha e da Europa. Abre às cinco ou seis da tarde e nada tem demais. É um espaço comprido e estreito, um balcão e quatro ou cinco mesas. E muita poeira pelas paredes e teto. Se um dia for limpo, adeus encanto. Só serve jerez, em várias versões, manzanilla, oloroso, maderoso, palo cortado. A conta do freguês é escrita com giz no balcão. Atinge seu momento de glória a partir de las nueve de la tarde - como se diz por lá - quando os habitués se acotovelam nos balcões e se entregam com efusão aquela charla barulhenta dos madrilenhos. O bar é modesto e o jerez é baratinho. Mas desconheço café mais aconchegante no mundo. Não por acaso, há mais de trinta anos, sempre me hospedo no Hotel Inglés, para não perder o rumo após as libações finais de cada dia.



O leitor já deve ter desconfiado que, nesta idade, cultura para mim pouco ou nada tem a ver com museus ou bibliotecas. Estas, freqüentei-as em meus dias de jovem, quando me sentia na obrigação de conhecê-las por dentro. Hoje, penso já ter lido o suficiente para entender o mundo. Farto de literatura, só tenho buscado ruas, arquitetura, bares, rostos e gestos. Para não dizer que abandonei de vez os museus, na Espanha nunca deixo de visitar El Museo del Jamón. Quem os conhece, me entenderá. São cafés – em verdade uma cadeia de cafés – cujos tetos e paredes estão coalhadas de presuntos. Certa vez, li em um jornal que um homem morrera soterrado por presuntos. Só pode ser na Espanha, pensei. Era.



Em um desses dezembros, quando buscava um singelo Rioja para fim de noite no Inglés, ao cair na rua tive de enfrentar aquela multidão furiosa, compacta, invasiva, imiscuindo-se em todo e qualquer lugar onde houvesse algo para comprar. Investi de ombros contra a massa e lutei bravamente por meu vinho. Até aí, nada demais. Lá pelas tantas, em plena Puerta del Sol, deparei-me com um grupo de católicos vestidos de andrajos – simulando pobreza, pois pobres não seriam – que ostentavam cartazes contra a sociedade de consumo e o consumismo. Se já não nutro muita simpatia por estes senhores, naquela noite meu sentimento foi de asco.



O que aqueles papistas pareciam não entender é que consumo, por estúpido que seja, gera trabalho e riqueza. Aquela histeria desmesurada dos madrilenhos beneficiava o último produtor de queijos, presunto ou vinhos, nos confins de uma vila qualquer na Espanha ou na Europa. Lubrificava a ampla capilaridade de distribuição e venda, os setores de transporte e comércio, do país todo. O consumo quase irracional dos madrilenhos azeitava a economia da nação, demonstrava a eficiência plena do capitalismo. Claro que o sentido original do Natal fica empanado, para não dizer abolido. Mas melhor que o culto piegas de um deus obsoleto é assistir o espetáculo de uma economia pujante.



Conquistada minha botellita de Rioja, fugi da massa e busquei uma bodega discreta para continuar minhas leituras. Não imagine o leitor que tais orgias de consumo me fascinem. Mas tenho de convir que são salutares para a saúde das nações. Aqueles gatos pingados católicos, travestidos de pobres e humildes, eram, naqueles dias de festa, os piores inimigos da humanidade.




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quarta-feira, dezembro 03, 2003
 
O AUTOR ESQUECIDO

Meslier, o padre ateu



Em 1729, morreu em Étrépigny, França, o abade Jean Meslier, com a idade de 65 anos. Ao morrer, após mais de quarenta anos à frente de sua paróquia, resolveu dizer o que pensava do cristianismo.



De onde tiramos que um Deus que seria essencialmente imutável e imóvel por sua natureza poderia no entanto mover algum corpo? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma extensão nem parte alguma seria no entanto imenso, e mesmo infinitamente esparso por toda a parte? De onde tiramos que um ser que não teria cabeça nem cérebro seria no entanto infinitamente sábio e esclarecido? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma qualidade nem nenhuma perfeição sensíveis seria no entanto infinitamente bom, infinitamente amável e infinitamente perfeito? De onde tiramos que um ser que não teria nem braços nem pernas e que sequer seria capaz de mover-se seria no entanto todo-poderoso e faria verdadeiramente todas as coisas? Quem teve a experiência disto?




Depois disso, que pensem, que julguem, que digam e que façam tudo o que quiserem no mundo, pouco estou me preocupando; que os homens se ajeitem e governem como eles quiserem, que sejam sensatos ou sejam loucos, que sejam bons ou que sejam maus, que digam ou que mesmo façam o que quiserem depois de minha morte; não me preocupo; eu já quase não faço parte do que se faz no mundo; os mortos com os quais estou prestes a juntar-me não se incomodam mais com nada, não se intrometem mais em nada, e não se preocupam mais com nada. Terminarei então isto pelo nada, também sou pouco mais que nada, e em breve não serei nada.




Que os padres, que os pregadores façam então de meu corpo tudo que eles queiram; que eles o rasguem, que o cortem em pedaços, que eles o assem ou façam dele um fricassé, e que mesmo o comam se quiserem, no molho que desejarem, eu absolutamente não me preocupo; eu estarei então totalmente fora de seu poder, nada mais será capaz de me fazer medo.


Do livro Mémoire dés pensées et dés sentiments de Jean Meslier, prêtre, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie des erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les religions du monde pour être adressé à ses paroissiens aprés sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité à eux, et à tous leurs semblables

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