¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quarta-feira, fevereiro 13, 2008
 
DE COMO VOLTEI A SER FELIZ



Entre meus prazeres diletos estão as óperas. Nem todas, é claro. Wagner me afasta do gênero. Der Ring des Nibelungen me entedia. Fora isto, curto Verdi, Puccini, Rossini, Donizetti, Bizet. E Mozart, obviamente. Há pelo menos três óperas que revejo umas três ou quatro vezes por ano. Don Giovanni, Die Zauberflöte e Carmen. Tenho várias interpretações de cada uma, pois cada encenação é uma outra ópera. As melhores destas três, a meu ver, são:

- a de Don Giovanni, pela Wiener Philharmoniker, regida por Wilhelm Furtwängler, com Cesare Siepi no papel do personagem-título e Otto Edelman fazendo um magnífico Leporello.

- a de Die Zauberflöte, com coro e orquestra do Ludwigsburger Festspiele 1992, regida por Wolfgang Gönnenwein, com Deon Van deer Walt como Tamino e Ulrike Sonntag como Pamina. Papageno e Papagena são interpretados por Thomas Mohr e Patrícia Rozario.

- quanto a Carmen, não é uma ópera encenada, mas filmada, com exteriores de Sevilha e Ronda. O filme é de Francesco Rosi, Plácido Domingo faz Don José e a Carmencita é interpretada por Julia Migenes. Entre as várias Carmens que tenho – uma inclusive cantada em italiano, e o efeito é ótimo – a de Rosi é a mais divina. O momento em que a gitana tenta seduzir Don José é de uma sensualidade – como direi? – espeluznante. De arrepiar.

Cheguei muito tarde à ópera. Culpa das encenações medíocres da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. As intenções eram sublimes, mas o resultado, desastroso. Havia um maestro que mais parecia uma barata gorda de smoking, o húngaro Pablo Komlós. E uma soprano que era um breve contra óperas, Eni Camargo. Gordíssima, era um verdadeiro paradoxo ambulante ao interpretar uma tísica Violetta. Carmen, então, era um desastre. A cigana linda e sensual era uma pipa sem cintura. Quando caía sob as punhaladas de Don José, era um estrondo no palco. Eu achava o gênero ridículo e não entendia aquele público enorme das óperas encenadas na Reitoria.

Fui me entender com as óperas em Paris. Certa vez, vi na televisão, uma Carmen belíssima e extremamente sensual, e aí a história tomava sentido. Para interpretar se exige um physique du rôle, ou a ópera perde o sentido. Vou mais longe: as Carmens têm de ser latinas. Mais ainda: com cara de puta. Ou não é Carmen. Neste sentido, a Carmen feita pela Julia Migenes é a mais fascinante que já vi em minha vida.

Foi também em Paris que vi uma molecagem divina feita pela Tereza Berganza. Em Don Giovanni, quando Zerlina canta:

Giovinette che fate all'amore,
non lasciate che passi l'età;
se nel seno vi bulica il cor,
il rimedio vedetelo qua.
Ah! Che piacer, che piacer che sarà!


Il rimedio, no caso, é Masetto, seu noivo, que desce as escadas e Zerlina indica com as mãos. La Berganza resolveu inovar. Na hora do vedetelo qua, levou as mãos ao regaço. A platéia veio abaixo.

Há grandes momentos em todas as grandes óperas. Mas um outro que me fascina, por seu humor, é a famosa listina de Leporello, em Don Giovanni, quando o criado enumera, a uma apaixonada e perplexa Dona Elvira, as conquistas de seu amo:

Madamina, il catalogo è questo
Delle belle che che amo il padron mio
Un catalogo egli è che ho fatt' io;
Osservatte, leggete con me.
In Italia seicento e quaranta;
In Allemagna duecento e trentuna;
Cento in Francia; in Turchia novantuna;
Ma in Ispagna son gia mille e tre.
V'han fra queste contadine,
Cameriere, cittadine,
V'han contesse, baronesse,
Marchesane, principesse
E v'han donne d'ogni grado,
D'ogni forma, d'ogni eta.
Nella bionda egli ha l'usanza
Di lodar la gentilezza
Nella bruna la constanza
Nella bianca la dolcezza.
Vuol d'inverno la grassotta
Vuol d'estare la magrotta;
E la grande maestosa,
La piccina è cognor vezzosa
Delle vecchie fa conquista
Pel piacer di porle in lista
Sua passion predominante
E la giovin principiante.
Non si picca se sia ricca,
Se sia brutta se sia bella
Purchè porte la gonnella,
Voi sapete quel che fa.


Saindo de minhas três diletas, uma outra ária que me comove é o diálogo de Alfredo com Violetta, em La Traviata. E me comove porque me traz à mente a mulher linda e cheia de vida que um dia tive.

ALFREDO
Libiam ne' lieti calici
Che la bellezza infiora,
E la fuggevol ora
S'inebri a volutta'.
Libiam ne' dolci fremiti
Che suscita l'amore,
Poiche' quell'occhio al core
Onnipotente va.
Libiamo, amor fra i calici
Piu' caldi baci avra'.

TUTTI
Libiamo, amor fra i calici
Piu' caldi baci avra'.

VIOLETTA

Tra voi sapro' dividere
Il tempo mio giocondo;
Tutto e' follia nel mondo
Cio' che non e' piacer.
Godiam, fugace e rapido
E' il gaudio dell'amore;
E' un fior che nasce e muore,
Ne' piu' si puo' goder.
Godiam c'invita un fervido
Accento lusinghier.

TUTTI
Godiam la tazza e il cantico
La notte abbella e il riso;
In questo paradiso
Ne scopra il nuovo di'.


Em suma, foi em Paris que descobri o mundo da ópera. Dito isto, vivi ultimamente uns seis meses de infelicidade. Ocorre que encontrei aqui em São Paulo um restaurante dos mais charmosos, senti que ali havia espaço para música mais sofisticada, e levei a suas proprietárias dois DVDs, para que tirassem uma cópia. Um, o Don Giovanni da Wiener Philharmoniker. Outro, Carmen, do Francesco Rosi. Confesso que levei os DVDs com certa apreensão. Eram obras muito valiosas para mim e tinha medo de perdê-las.

Não deu outra. A Carmen – a mais fascinante das Carmens – foi extraviada. As moças se propuseram a encontrar uma outra. Inviável. O DVD está esgotado. Procurei tanto na Amazon como na Fnac de Paris. Nada feito. Indisponible. Vivi então estes últimos meses como se estivesse mutilado. Não seria feliz enquanto não tivesse minha Carmen de volta.

Dichosos dias estes de Internet – como diria Alonso Quijana. Em um grupo de discussões, Antonio Bemfica, um internético amigo do Canadá ouviu minhas lamúrias. Descobriu a ópera em uma biblioteca e fez uma cópia. Eu a recebi hoje e voltei a ser feliz.