¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, fevereiro 08, 2008
 
QUESTÕES TEOLÓGICAS



Contradizendo seu antecessor, o papa João Paulo II, que afirmou em 1999 que o inferno não é um lugar, mas “a situação de quem se afasta de Deus”, Sua Santidade Bento XVI afirmou hoje que “o inferno, do qual pouco se fala nestes tempos, existe e é eterno”. É o que nos informa o jornal italiano La Repubblica.

Cisão no Vaticano? Talvez sim, talvez não. Mas se João Paulo não via o inferno como um lugar, tinha robusta crença no demônio. O papa polaco alertou durante anos seu rebanho para a realidade da existência deste personagem fascinante, que contracena com Jeová na história da criação. Lúcifer, para começar, é o mais brilhante dos anjos e o mais amado por Deus. Literalmente, é o "portador da luz". Segundo certas seitas gnósticas, ditas luciferistas, Lúcifer seria o verdadeiro Deus da Luz, que pretende revelar aos homens a incompetência do Deus do Antigo Testamento. Isaías, porta-voz insuspeito, pergunta: "Como caíste do céu, ó estrela d'alva, filho da aurora? Como foste atirado à terra, vencedor das nações?" O gesto satânico - o "non serviam" - é a bandeira de todos os rebeldes. No evangelho de João, Satanás é o príncipe deste mundo. No Apocalipse, segundo boas fontes, no caso uma voz forte provinda do céu, é uma espécie de ombudsman, "acusador de nossos irmãos".

Mesmo depois da expulsão do céu, permaneceram cordiais as relações entre o Senhor e o Insurgente. No Livro de Jó, Satanás participa de um coletivo de anjos que marcou audiência com o Senhor. "De onde vens?", quer saber Jeová. "Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo", responde o príncipe deste mundo. Jeová dá carta branca a Satanás: que faça o que quiser com o santo homem Jó, desde que lhe poupe a vida.

O demônio, mais que real, é necessário, ou o Senhor não teria como testar a devoção de seu rebanho. Satanás é personagem fundamental na História da Criação, ao mesmo título que Jeová. Tentou Adão, Jó e Jesus. Cristo com ele conviveu quarenta dias e nada nos indica que tenha se entediado. Em Il Diavolo, Giovanni Papini faz três observações interessantes sobre este convívio: "Jesus não quis rechaçar o Diabo; Jesus tolerou e suportou as repetidas tentações do Inimigo; em sua solidão, Jesus aceitou uma única e só companhia, a do Diabo". Suportar durante quarenta dias a mesma companhia no deserto exige um escroto ecumênico. Deve ter sido interlocutor no mínimo interessante ou Jesus - que tinha poderes para tanto – o teria mandado de volta aos infernos.

Segundo o cardeal Jorge Arturo Medina Estevez, chefe da Congregação para o Rebanho Divino e Disciplina Sacramental, “o Diabo entende latim". O que nos revela uma qualidade insuspeita do Príncipe: tem mais erudição que muito acadêmico de nossos dias.

Satanás sempre gozou de um charme do qual jamais pode gabar-se Jeová. Se Deus manda, o Diabo sugere. Enquanto o Supremo se comporta como um autocrata arrogante, que impõe e dispõe do traçado de seu plano de obras, o Insurgente é o public-relations sedutor, que insinua modificações no rígido projeto divino: "quem sabe não poderia ser assim?" Desta forma, sempre foi caitituado por artistas e literatos. Em Valéry, o demônio só tinha uma queixa, a dificuldade em seduzir os curtos de espírito. Diz o Diabo: "Aquele homem não tinha inteligência suficiente para que eu desse conta dele. Não tinha bastante espírito. Que problema seduzir um imbecil! Não entendia patavina de minhas intenções".

Divago. Comecei falando na crença de Bento no inferno. É que adoro ler teologia e acabo me deixando levar pelo assunto. O inferno sempre me intrigou. Principalmente por sua eternidade. A primeira menção a inferno na Bíblia, como algo associado a fogo, está em Mateus 5:22:

“Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno”.

E, logo adiante:

“29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.
30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno".

Mais ainda. Mateus 10:28:

“E não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”.

Ou Marcos 9:43:

“E se a tua mão te fizer tropeçar, corta-a; melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga”.

Este fogo que nunca se apaga é o que me deixa perplexo. Significa que a matéria comburente jamais se extingue. Para que o fogo do inferno nunca se apague, precisaria de uma alimentação contínua e em grande profusão. Haja pecadores na terra para manter a eternamente acesas as chamas do inferno. Outro mistério é que o pecador queima pela eternidade toda sem virar cinzas.

Outro ponto que sempre me intrigou é a localização do inferno. Neste nosso planetinha não deve ser, ou os geólogos e exploradores já o teriam situado. Estará no fundo dos mares? Hipótese improvável, aí a combustão eterna se torna mais inviável. Nalgum outro planeta? Sabe-se lá. O problema é que, fora da Terra, os demais planetas são muito frios para abrigar um fogo eterno. Ou quentes demais para receber corpos dos mortais. Já na chegada, as pobres alminhas estariam incineradas.

A questão é complexa. Mas a Bíblia nos dá uma dica. Fica no mínimo perto do purgatório. Está em Lucas, 16:19:

“Ora, havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e todos os dias se regalava esplendidamente. 20 Ao seu portão fora deitado um mendigo, chamado Lázaro, todo coberto de úlceras; 21 o qual desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as úlceras. 22 Veio a morrer o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado. 23 No Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe a Abraão, e a Lázaro no seu seio. 24 E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me Lázaro, para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. 25 Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, e Lázaro de igual modo os males; agora, porém, ele aqui é consolado, e tu atormentado. 26 E além disso, entre nós e vós está posto um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os de lá passar para nós”.

Por seio de Abraão, na Bíblia, entende-se o que depois veio a chamar-se de purgatório. O texto nos informa que no Hades há chamas mas não tem água. No purgatório, alguma água há. Já é um refrigério. Do Hades, o homem rico consegue ver Lázaro. Um não deve estar muito longe do outro. Já é um indício.

Mas o mistério persiste. Onde fica o purgatório?