¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 04, 2008
 
O visionário de Taubaté (7):
ALÉM DA ERA DA RODA



"As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego" – continua Lobato –. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado."

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho – trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato – já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete décadas.