¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 04, 2008
 
O VISIONÁRIO DE TAUBATÉ

(artigo publicado em junho de 1998, na Revista de Literatura da Universidade de São Carlos, São Paulo)


Quando nos deparamos com algum evento insólito na sociedade ou na área da tecnologia, logo saímos à busca de precursores ou anunciadores. Em geral os buscamos entre os ficcionistas anglo-saxões ou germânicos, afinal toda literatura de antecipação tem suas raízes nos Estados Unidos ou Europa. No entanto, nestas terras de Pindorama, já em 1926, um visionário de Taubaté antevia nada menos que a radicalização da questão negra nos Estados Unidos, a discussão separatista no Brasil, o voto eletrônico, o teletrabalho, a Internet e suas conseqüências. Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O Presidente Negro ou O Choque das Raças. Como este livro hoje só pode ser encontrado em sebos ou bibliotecas, não seremos mesquinhos em citações.(*)

Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está alarmada: as estatísticas apontam uma população de 108 milhões de negros para 206 milhões de brancos. Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto de preservação dos brancos se eriça em legítima defesa. Fala-se em uma “solução branca” e uma “solução negra”. A solução branca é, obviamente, expatriar os negros. Quem propõe este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção já citada.

Na mesma época, o antigo Brasil está cindido em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana, filho que era do imenso foco industrial surgido às margens do rio Paraná e o outro, uma república tropical, agitando-se ainda em velhas convulsões políticas e filológicas, discutindo sistemas de voto e a colocação dos pronomes da semimorta língua portuguesa. De clima temperado, o Brasil branco fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Os portugueses, aclimatados na zona quente, haviam-se mesclado com o negro, formando um povo de mentalidade incompatível com a do sul.

Miss Jane é filha de um cientista de origem americana radicado no Brasil, o professor Benson, que pode obter um corte anatômico do futuro através de uma espécie de globo cristalino chamado porviroscópio. (Esta idéia será retomada por Jorge Luís Borges, como veremos adiante). Através deste aparelho Jane perscruta o mundo do século 23. A ação do romance transcorre em 1926. O Sr. Ayrton, seu interlocutor brasileiro, manifesta tristeza ante o futuro do país. Jane, pelo contrário, considera um erro inicial a mistura de raças e acha que a divisão do país constituí uma solução ótima, a melhor possível. Pois “a muita terra não é o que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade de seus habitantes”.

Esta idéia de um fracionamento territorial do Brasil não é nova nos dias de Lobato. Em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, escritas nos estertores do século passado, Eça de Queiroz já antecipava esta possibilidade, em texto intitulado “A Revolução no Brasil”. Para o escritor português, com o Império acaba também o Brasil, que ficaria fragmentado em Repúblicas independentes, em virtude da divisão histórica das províncias, das rivalidades entre elas, da diversidade do clima, do carácter e dos interesses e a força das ambições locais. Uma vez separados, os estados não poderão manter paz entre si, em função das delimitações de fronteira, questões hidrográficas e alfândegas. “Cada estado, abandonado a si, desenvolverá uma história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade de sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande Império!”

Se o Brasil ainda não se dividiu – apesar de todos os anos surgirem “nações” indígenas, com pretensões de autonomia –, aí estão os Chiles ricos e os Nicaráguas grotescos, confirmando a aguda intuição de Eça. Mas voltemos a O Presidente Negro.

(*)Recentemente, a editora Globo relançou a obra.