¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 13, 2008
 
A TRAGÉDIA DE VILCABAMBA


Fui outro dia testar um restaurante italiano recém-inaugurado no bairro. Menu baratinho, pratos originais e caprichados, boa carta de vinhos. Na mesa a meu lado, um outro cliente fazia o mesmo. Viera conhecer a nova casa. Pessoa de idade provecta, mas muito bem posto. Nem magro nem gordo, aparência saudável, um rosto radiante sem as faces chupadas da velhice. Mal sentei, puxou conversa. Lera no Estadão sobre o restaurante – me exibiu a página – e queria ver como era. Conversa vai conversa vem, começou a queixar-se da idade. Tinha oitenta anos. Duas décadas à minha frente.

Você parece estar muito bem, respondi. Quisera eu chegar assim aos oitenta. Foi direto ao cerne da questão:

- O problema é o pinto.

Ora, companheiro, nem sempre se come pão quente. Chega um dia em que a casa cai. Há muitos prazeres ainda a curtir. Você está degustando um deles, a boa cozinha e o bom vinho. Restam ainda os amigos, a boa charla, as viagens, as boas leituras e a boa música. Esqueça o pinto. Falei de Buñuel. Em seu relato biográfico, Meu Último Suspiro, lá pelas tantas ele afirma que gostaria de chegar logo à impotência. As mulheres deixariam então de ser um problema. Sou mais Santo Agostinho, que rezava: “Dai-me a castidade, Senhor! Mas não já”. Em todo caso, Buñuel não deixa de ter certa razão. Mulheres sempre podem constituir um problema, pelo menos para quem não consegue entendê-las.

- Mas o problema ainda não é esse – respondeu-me. É a memória. A lembrança do bem-bom.

A questão era então mais grave. Memória pode ser muito aprazível. Mas também machuca. Que se vai fazer? Chega um momento em que não podemos aspirar mais a tesões tipo aquelas cláusulas da Constituição, as pétreas. Espero não chegar lá tão cedo. Mas quando chegar – e vou chegar, se não partir antes – não vou me queixar. A vida continua. Há países que ainda não conheço e óperas que ainda não ouvi. Restam muitos livros a ler e amigos a curtir. Chegasse eu na idade dele, naquela boa forma, me daria por contente. Despediu-se de mim com certa irritação. O que eu dissera não era o que ele queria ouvir.

Me ocorre este diálogo ao ler reportagem na Folha de São Paulo sobre o livro Eterna Juventud - Vivir 120 Años, do médico e escritor argentino Ricardo Coler, sem previsão de lançamento no Brasil. Coler fala de Vilcabamba, um povoado com cerca de quatro mil pessoas no interior do Equador, onde encontrou Don José Medina, que parou de beber aos 106 anos. De vez em quando, ainda toma uma aguardente, mas não mais de uma por dia. Fuma, mas muito menos do que quando "era jovem" - lá pelos 70 anos. Aos 112, não conseguiu largar o chamico, cigarro feito com uma erva alucinógena.

Segundo o autor, as condições sanitárias do local são um desastre - na maioria das casas, não há esgoto nem água encanada. Seus habitantes fumam, bebem álcool, comem muito sal, tomam muito café, usam drogas. E são um dos povos com maior proporção de pessoas centenárias no mundo – cerca de dez vezes mais do que a média. Centenários e saudáveis. Lá é comum encontrar idosos de 110, 120 anos. Lêem sem óculos, conservam os dentes originais. A maioria ainda trabalha e tem vida sexual ativa. Os cabelos ficam brancos quando chega a idade, mas depois voltam à cor natural, sem explicação. E, ao contrário da maioria dos lugares do mundo, os homens vivem mais do que as mulheres.

Cá entre nós, 106 anos é uma boa idade para deixar de beber. De minha parte, penso deixar antes, pois até lá estou certo de que não vou chegar. E se a condição para lá chegar é viver num lugarejo de quatro mil habitantes, sem esgoto nem água encanada, por favor, ó Senhor, leva-me bem antes para o seio de Abraão. Melhor partir mais cedo, em meio ao fervor das grandes cidades. Considero que cidade viável deve ter pelo menos um milhão de habitantes. É a quantidade mínima de seres pensantes, a meu ver, para que ocorram trocas de idéias, diferentes visões de mundo, comportamentos diversificados, gastronomias. Em cidade de quatro mil habitantes, eu sufoco em menos de uma semana.

Por outro lado, vida sexual ativa aos cem anos é filme de horror. Que corpo pode apresentar a uma mulher um homem centenário?

Conheci, há uns cinco anos, pessoa que muito admirei. Tinha 93 anos e bebia uma garrafa de vinho todo santo dia. Ainda dirigia e, na ocasião, planejava uma viagem de turismo a Recife. Nome do personagem, sem trocadilhos: Étilo. Vontade imensa de arrastar “seu” Étilo ao consultório de minhas médicas e apresentá-lo: é assim que se chega bem aos noventa, uma garrafinha de vinho por dia. Morreu há pouco, com 97 anos. Não penso chegar lá. Mas se chegar, reivindico minha dose diária.

"O século 19 foi o século dos antibióticos, o século 20, o das doenças cardiovasculares e do câncer, e o 21 é o da longevidade", diz Coler, ao justificar por que crê que Vilcabamba é a meca desta época em que ser saudável é fundamental. O médico acha que “os 120 anos que até agora são um limite podem se converter em 150. Velhice e morte deixarão de ser palavras absolutas".

Dr. Coler que me desculpe. Rumo a essa Meca não pretendo peregrinar. O que ele louva como ideal de vida saudável não é vida. É tragédia. Velhice e morte sempre serão palavras absolutas, por mais que se espiche o limiar da vida. Setenta, no máximo oitenta, para mim está muito bom. O máximo que almejo é o que pede Buñuel ao final de suas memórias:

“Um pesar: já não saber o que irá ocorrer. Abandonar o mundo em pleno movimento, como que no meio de um folhetim. Creio que esta curiosidade em relação ao após-morte não existia antigamente, ou existia menos, num mundo que pouco mudava. Uma confissão: apesar de meu ódio pela informação, gostaria de poder erguer-me entre os mortos, a cada dez anos, caminhar até uma banca de jornais e comprar alguns. Não pediria mais nada. Com os jornais debaixo do braço, lívido, esbarrando nos muros, retornaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de tornar a dormir, satisfeito na proteção tranqüilizadora da sepultura”.

E mais não quero.