¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, novembro 11, 2008
 
ZELOTISMO ILHÉU*


Três são os males que acometem um gaúcho em visita às praias de Santa Catarina: Tunga penetrans, Larva migrans e encatarinamento. O primeiro é o bicho-do-pé e tem cura fácil, basta comprar uma pomadinha na farmácia. O segundo também atende por bicho geográfico e parece querer desenhar, sob a pele do hospedeiro, o mapa da ilha em alto relevo. A terapia é a mesma. Pior é o encatarinamento: desencatarinar-se sai bem mais caro. Em geral, exige cinco ou mais anos de residência no local de contágio.

Encatarinamento é aquela sensação de paz e bem-estar que inunda o gaúcho, já cansado do asfalto e concreto de Porto Alegre, quando se deixa contaminar pelo verde e azul da ilha, pelo recortes suaves da Lagoa da Conceição e de suas praias. Para quem nasceu na pampa, um mar ondulado sempre lembrará o lento vai-e-vem dos alhos-bravos, batidos pelo minuano que vergasta as coxilhas. O encatarinamento se instala quando o gaúcho decide: “A ilha é linda. Ainda volto para ficar”.

Se tiver passado pela ilha em turismo rápido, voltará com o vírus incrustado na alma. Se um dia cometer o desatino de voltar para ficar, terá percepções insólitas sobre a nova geografia. Ao atravessar a ponte, não mais será visto como cidadão de um mesmo país. Se rio-grandenses e catarinenses são brasileiros, do ponto de vista legal e político, na ilha criou-se uma sutil distinção. Os que nela moram são definidos pelos ilhéus como “gente nossa” e “gente de fora”. Gente nossa é o nativo descendente de açorianos, que lá vive há décadas, fala um português chiado e vive em geral da pesca, turismo ou cabides estatais. A mídia local criou uma palavra para designá-los, portada com orgulho: manezinhos da ilha.

Gente de fora não é exatamente todo não-ilhéu. Se o visitante ficar por lá uns quinze dias, chama-se turista. Quanto mais gastar será melhor visto. Mas ai do turista se decide ficar. Vira automaticamente gente de fora. Esta rejeição, tive ocasião de constatá-la onde menos seria de se esperar. Em meus dias de UFSC, em uma reunião do Departamento de Letras, cogitou-se da contratação de um professor com doutorado, vindo de São Paulo. Do fundo da sala, alguém estrilou: “Já vão trazer mais gente de fora”. Expliquei pacientemente que uma universidade, por definição, jamais se faz com “gente nossa”. Toda universidade, desde a Sorbonne até a USP, é erguida com gente de fora, e esta é sua vocação. “Se a gente de fora abandonar esta ilha, professora, a universidade desmorona”.

A xenofobia insular assume laivos hidrófobos quando a gente de fora é o gaúcho. Apaixonados pela ilha, não somos correspondidos. Qual é o menor circo do mundo? — costumam perguntar os ilhéus. São as bombachas: só cabe um palhaço dentro. No que até teríamos de concordar, caso se referissem às figuras circenses dos CTGs. Mas não é o caso. Com esta piada, que julgam espirituosa, querem referir-se a rio-grandenses que jamais usaram bombachas e lá estão para dar seu contributo à comunidade local.

Em Um Estudo de História, Arnold Toynbee investiga os contatos entre civilizações no espaço e os conflitos daí decorrentes. Segundo o historiador, as civilizações "agressivas" tendem a estigmatizar suas vítimas como inferiores em cultura, religião ou raça. A parte ofendida reage, seja tentando forçar-se a um alinhamento com a cultura estrangeira, seja adotando uma postura exageradamente defensiva.

Estas duas reações, insensatas para o autor, são definidas como zelotismo e herodianismo, atitudes assumidas pelos judeus ante à violenta pressão do helenismo. "A facção zelota — diz Toynbee — foi formada por pessoas cujo impulso, em face dos ataques lançados por uma civilização alheia e vigorosa, foi assumir a posição negativa de destruir o formidável agressor. A fé que animava os zelotas era a convicção de que, se mantivesssem sua tradição ancestral e a preservassem intacta e inalterada, seriam recompensados, recebendo a força e a graça divinas para resistirem à agressão alheia, por mais hegemônica que parecesse a superioridade material do opressor. A postura dos zelotas foi a de uma tartaruga que se recolhe ao casco, a de um ouriço que se enrola dentro de uma espinhenta bola defensiva".

Interrogado sobre o que seria necessário para despoluir Florianópolis, disse o governador Espiridião Amin: “mandar embora alguns gaúchos”. Nada de novo sob o sol. Sem o significado maior do embate na Galiléia, em Santa Catarina a história se repete como piada sem graça. Os gaúchos sempre tiveram uma influência benéfica no desenvolvimento econômico e cultural do Estado, construíram as bases de sua universidade e dinamizaram a imprensa catarinense. Em um acesso de zelotismo, Amin assumiu a postura suicida do ouriço.

Que o Manezinho da Ilha tenha vontade de ver o gaúcho pelas costas, entende-se. É sua forma de reagir a uma cultura forte e invasora. No fundo, gostaria de exigir passaporte e visto de entrada a todo gaúcho que atravessa a ponte. Que um governador assuma este estado de espírito já é mais grave. Cultor da poesia gauchesca, político que costuma recitar os preceitos do Antônio Chimango para administração da estância, Amin deve conhecer também as coplas de Fierro:

Los hermanos sean unidos,
porque esa es la ley primera;
tengan unión verdadera
en cualquier tiempo que sea,
porque si entre ellos pelean
los devoran los de ajuera.



* Crônica escrita nos anos 80, já em minha fase de desencatarinamento.