¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, dezembro 01, 2008
 
NO PERAU DO TIO ÂNGELO (II)


Falava ontem de perdas. Vamos aos ganhos. Vida não é só perdas. A história é um pouco longa e o perau do tio Ângelo fica pra mais adiante. Bueno – como decímos allá en la frontera – um dia saímos a gauderiar pelo planetinha e os encontros mais insólitos são inevitáveis.

Por onde começar? Acho que por uma sabra muito querida. Encontrei-a em minha primeira viagem rumo à Europa. Eu navegava pelo Eugênio C – que foi desarmado em 1980 – e ela também. O navio tinha três imensos salões de baile, que ficavam desertos durante as tardes. Num deles, o Salone Opala, sempre havia dois leitores, eu e ela. O que ela lia, não lembro. Eu lia Pessoa. Ela a estibordo, eu a bombordo. Com a embardée do barco – aquela oscilação transversal – ela ora estava a dez metros acima de mim, ora a dez metros abaixo. Só uma linha se mantinha fixa, a reta entre nossos olhos. Era linda e mignone. Conversávamos em espanhol, o castelhano dela era áspero, eivado das guturais do hebraico. Quando despediu-se de mim em meu camarote, tive de rir: precisei abaixar-me para beijá-la.

Trocamos correspondência por algum tempo. Mais de três décadas se passaram. Já vivíamos dias de Internet. Eis que em um belo dia entre os dias recebo uma mensagem sua. Relembramos nossos dias de Eugenio C. Veio visitar-me há uns quatro anos. Sempre baixinha, mas ainda mais linda. Judia, mas não fanática. Conversando com ela, parecia-me estar conversando com Israel e toda sua história. "Não sou ortodoxa, gosto de tudo que é bom na vida". Eu também.

Numa dessas travessias, encontrei um excelente amigo, o poeta canarino Chano Sosa. Falou-me tanto de sua ilha, a Gran Canária, que não resisti. Fui um dia até lá conhecê-la. Não tinha o endereço dele, só sabia que vivia em Agaete. Fui – fomos, eu e minha Baixinha – até Agaete. Como encontrar o homem? Simples. Fui até a praça da aldeia e abordei um chofer de táxi: “y Chano, donde vive?”

- Pues – me respondeu o taxista – después de viejo el hombre decidió estudiar. Vive ahora em Laguna, en Tenerife. Ora, meu rumo era outro. Fui para Lanzarote, a mais fascinante das Canárias. Trezentos vulcões e metade deles ativos. Há um restaurante – juro! – onde a carne é assada ao calor das lavas. Escolhi um hotel numa praia que me pareceu simpática. Mal cheguei no hotel, já havia um recado para mim. O taxista de Agaete se comunicara com o padre da aldeia, em cuja paróquia trabalhava uma sobrinha do poeta, ela falou com Laguna, em Tenerife, Chano intuiu que eu cairia naquele hotel e retornou para Lanzarote. Assim nos encontramos. Tomamos muito vinho de Lanzarote em Laguna e alguns anos depois mais alguns Riojas em Barcelona. Perdi o Chano por algum tempo. Aí de novo entra a Internet. Ele me achou e continuamos um diálogo há décadas interrompido.

Com Chano encontrei outro canarino, de profissão insólita. Era escultor de montanhas. Via uma montanha sem formas muito definidas, a enchia de dinamite e esculpia rostos de guanches. Com este, perdi contato. Havia sido sacerdote e soldado da Legião Estrangeira. Outro poeta, a seu modo. Encontrei ainda um professor universitário e arabista refinado, cuja pança proeminente lembrava o Teide, vulcão que sobe como um furúnculo sobre Tenerife. Arabista, mas sua pedra de toque era o Martín Fierro. Encantava platéias naquelas ilhas recitando as coplas de Hernández. Mas não foi isto o que me impactou no professor. E sim quatro jovenzinhas universitárias, debruçadas sobre aquele Teide rotundo. O que me fez concluir: o homem não é apenas carne. O que conta é o espírito. Sempre que sobrevôo Tenerife durante o dia, sinto um nó na garganta ao divisar o Teide. E lembro de meu amigo arabista e daquelas quatro meninas lindas.

Lembro também do sancocho. Mas isto fica para mais adiante.

Quem mais? Ah, uma amiga peoniana, da terra de Alexandre, o Grande, e tão árdega quanto Alexandre. Estudava literatura comigo na Sorbonne Nouvelle e nossos olhos estabeleceram aquela mesma reta que eu mantinha com a sabra no Eugenio C. Era líder das Juventudes Comunistas na Iugoslávia. Eu, anticomunista ferrenho. Mas que se vai fazer diante de uma comunista adorável? Havia entre nós um problema de linguagem. As eslavas, quando querem dizer não, balançam verticalmente o rosto. Quando querem sim, balançam o rosto horizontalmente. Ora, eu fazia as mais excitantes propostas e só recebia um sinal, aquela boca e aqueles olhos lindos balançando horizontalmente. Ela não quer, pensava eu. Nada disso. Ela queria. Longa é a jornada de um gaúcho até o entendimento.

Certo dia, a desafiei: “és uma catolicona”. Não era. Eu é que entendia mal seus sinais. Ela vivia na Cité Universitaire. “Então vem cá, vou te mostrar quem é catolicona". Fui. Só então entendi a gesticulação dos eslavos. O que me foi de muita valia, mais tarde, na Rússia. Mas isto já é outra história.

Ela voltou para sua terra, eu para a minha. Antes disso, fui visitá-la em Skopje. Dali partimos para Mljet, uma ilha de nudismo na costa croata. Alguns anos mais tarde, marcamos um encontro em Veneza, no Florián, na Piazza San Marco. Era um domingo glorioso, seriam umas dez da manhã. Sentei na terrasse do café deserto. Mal sentei, uma orquestra de cordas e metais ergueu-se atrás de mim e atacou Vivaldi. Estou fodido, pensei. Estava mesmo. Paguei, há mais de vinte anos atrás, dez dólares por um cafezinho. Mas valeu. Ela chegou, radiosa e cheia de sol.

Passamos dias divinos em Veneza. À noite, nos perdíamos na cidade, caíamos a toda hora à borda de um canal, sem encontrar nosso hotel, muito menos viva alma para pedir uma informação. Daquelas deambulações rumo ao desconhecido, ficou-me uma lembrança marcante, o chiado de nossos passos na noite silente. Conversando mais tarde com pessoas que por lá andaram, soube que este chiado também as marcou.

Bom, ela casou, teve filhos, perdemos contato. Ainda há pouco, graças à divina Internet, recebo e-mail de minha peoniana. “Estou aqui”. Eu também. Qualquer dia volto àquelas plagas.

“Tudo tem a sua ocasião própria, e há tempo para todo propósito debaixo do céu” – diz o Eclesiastes. - "Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”.

Parafraseando o Koelet, ajunto: há o tempo das filhas e há o tempo das mães. Depois do tempo das mães, advém o tempo das avós. Estou chegando lá. Está sendo ótimo. Mais adiante volto ao perau.