¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 02, 2008
 
NO PERAU DO TIO ÂNGELO (IV)


Tio Ângelo era um precursor. Lá no meio do deserto verde da pampa, ouvira falar no tal de rádio e tomara a decisão de ter o seu. (Em meu romance, Ponche Verde, eu o chamo de Canário).

Em um raio de léguas em torno ao rancho, nos bolichos de Ponche Verde, Três Vendas, Villa Indarte, Upamaruty, Puntas de Jaguary, Cerrilhada, enfim, onde chegasse a notícia de seu projeto, era visto como louco ou mentiroso, onde se havia visto um pobre diabo com tais luxos da cidade? Mas o homem falava sério e fazia repetidas viagens a Livramento e a Dom Pedrito, de onde voltava sempre de mãos vazias, mas com um jeitão pensativo, de quem pesa as conveniências e inconveniências de um gasto absurdo.

Um belo dia, cortou o mais retilíneo e mais alto dos eucaliptos, despiu-lhe os galhos, falquejou-o de forma a deixá-lo quadrado e o pintou de vermelho, enquanto se avolumavam nas imediações o boato de que estava enlouquecendo. Não lhe foi fácil reunir vizinhos para erguê-lo, mediante um complexo sistema de máquinas de alambrar, e os que conseguiu reunir o ajudaram com certa piedade, o homem estava louco mesmo, seria pior contrariá-lo: onde se viu derrubar um eucalipto, pintá-lo de vermelho e tornar a plantá-lo na terra?

Mantenho ainda viva a lembrança da operação. Levara um dia todo, o poste colossal fora erguido com quatro fios de arame puxados de árvores próximas pelas máquinas de alambrar. Havia o risco de que algum fio rebentasse, e adeus rancho! Erguido o poste, Tio Ângelo, contente, carneou uma ovelha e, em meio ao churrasco e à cachaça, a vizinhança até mesmo esqueceu aquela torre absurda.

Semana seguinte, atrelou um matungo a uma aranha e se tocou para Villa Indarte, no Uruguai. Voltou tarde da noite e à meia-guampa, com um imenso volume quadrado no pescante da aranha. Ainda não era o rádio, apenas duas baterias e um aerodínamo. Instalado o catavento no poste, seu conceito mudou nos bolichos da região, parece que o homem vai mesmo trazer o tal de rádio, dizia-se. O que de fato ocorreu no domingo seguinte, quando tio Ângelo voltou mais uma vez da Villa Indarte, agora com um volume um pouco menor, um imenso Telefunken, e num porre federal.

Descera a coxilha cantando, mal pulou da aranha gritou feliz: “agora não preciso cantar mais, tenho quem cante pra mim. E esses hijos de la gran puta china de mierda vão ver o que é rádio”.

A notícia correra como um raio na redondeza. Nos dias seguintes não houve tardinha em que não chegassem dois, três vizinhos a cavalo, com um ar meio sem jeito, com o pretexto esfarrapado de uma visita, “onde se viu visita em dia de semana, dia de trabalho”, resmungava feliz tio Ângelo. E judiava dos curiosos, lhes oferecia mate, perguntava sobre as novidades, sempre embaixo do cinamomo antiquíssimo, ao lado do catavento, cujas pás se moviam impelidas pela brisa do entardecer. O sol se escondia, as visitas hesitavam em dizer ao que vinham e tio Ângelo, num misto de desprendimento e vingança, convidava: “o compadre quer passar pra sala, escutar um pouco de rádio?”

Com o tempo atenuara-se aquele ímpeto de desforra, como também o complexo de culpa dos vizinhos - por vizinhos entendia-se pessoas que moravam a léguas de distância - e a cada noite tio Ângelo recebia gente vinda de longe para escutar rádio. Ao chegar, já iam desencilhando os matungos, pois a sessão de escuta só terminava lá pela meia-noite. Orgulhoso, tio Ângelo não permitia a ninguém, nem mesmo a mim, mexer nos botões do Telefunken. Qual sacerdote oficiando sua liturgia, solenemente ligava o rádio e girava o dial, perguntando à roda, com picardia, se queriam escutar brasileiro ou castelhano, tangos ou rancheiras, música ou notícias.

Tarde da noite, alegava ter de madrugar para o trabalho, a indiada se despedia, encilhava os cavalos e saía perfurando a noite na pampa com vozes que aos poucos morriam nas canhadas. Tio Ângelo então me chamava, “vem cá, guri, o melhor vem agora”. E mudava de onda. Ouvíamos então, silentes, ruídos que pareciam vir de estrelas distantes, línguas estranhas que escutávamos durante horas tentando entender ao menos uma palavra, notícias de outros povos e costumes, canções de outras gentes. A mim, na época, parecia-me impossível que um ser humano pudesse falar outra língua que não os dois únicos idiomas existentes no mundo, o brasileiro e o castelhano. Com o tempo, quando o rádio já não mais constituía milagre, os vizinhos, se passavam por Dom Pedrito, lhe enviavam um chasque pela rádio Ponche Verde, endereçado à Estância do Pau Vermelho, o que fazia tio Ângelo sorrir divertido, não pelo duplo sentido do nome, mas pelo fato de chamarem de estância suas poucas braças de terra.

Dele guardo minha primeira lembrança histórica. Na manhã do dia 25 de agosto de 1954, eu atrelava o tordilho à aranha que nos levaria, minha mãe e eu, ao colégio, a uma boa légua dali. Ele repechou a coxilha à galope, sofrenou o cavalo na frente de nosso rancho e gritou a meu pai: “Mataram o home”. Não era preciso dizer o nome do homem. Naquele deserto de escassa comunicação, todos sabíamos – até mesmo eu em meus sete anos – de quem se tratava. Duvido que hoje um político consiga aquela adesão universal que teve Getúlio Vargas. Isso em rincões onde a comunicação era quase igual a zero.

Vivíamos em uma sucessão, herdada de meus avós paternos. Meus tios, se bem me lembro, eram 25. Como a sucessão não fora dividida por alambrados, embora a propriedade de cada um fosse curta, tínhamos a sensação de viver em quadras de sesmaria. Tio Ângelo cercara seu pedaço com capões de eucaliptos, talas, coronilhas e sina-sinas. Lá no fundo daquele retângulo arborizado, ficava o perau.

Mas havia também a Toca da Onça. Volto amanhã ao causo.