¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, junho 30, 2009
 
AINDA A LEI ANTIFUMO


Olá Janer,

Tudo bem? Se você tiver tempo... indago-lhe algo bem simples: com quais aspectos da Constituição a lei antifumo choca-se?

Entendo que a lei do governador é esdrúxula quando propõe punição ao estabelecimento comercial. Por outro lado, no Brasil não temos mecanismos para punir o cidadão ou a pessoa física. Parece-me que nossos mecanismos de punição estão apenas associados a, por exemplo, um número de CPF, uma licença de automóvel ou uma carteira de habilitação. Ao contrário de outros países, não há multas ou mecanismos para aplicá-las quando um pedestre atravessa fora da faixa, um ciclista não conduz corretamente, alguém inadvertidamente aciona um dispositivo de segurança do metrô, alguém joga uma lata de cerveja na rua ou um fumante insiste em fumar num local público fechado. Mas claro que isso não justifica a lei.

Entendo que qualquer pessoa, em sua privacidade, pode fazer o que bem entender com seu corpo, desde que não solicite recursos públicos para reparar o estrago. Fica claro que a grande chiadeira se deve ao aspecto financeiro da lei. Ninguém esperneia por já haverem proibições de fumo em repartições públicas, estabelecimentos de ensino, hospitais (!), cinemas e transportes coletivos.

Embora os números indiquem que menos de um quarto da população é de fumantes, a maior parte dos freqüentadores de restaurantes, e especialmente de bares, é de fumantes. (Por que será que isso acontece? Os fumantes são mais extrovertidos ou descolados?) Banir os fumantes dos bares certamente implicaria num baque econômico muito maior para os bares que nossa já "finada" lei seca.

Pessoalmente, deixei de freqüentar algumas casas em São Paulo porque, apesar de existirem locais para não-fumantes, tais locais invariavelmente sempre eram os piores da casa. Lembro-me de uma pizzaria (cuja pizza era deveras saborosa) na qual as poucas mesas do espaço para não-fumantes eram nas cercanias dos banheiros.

Mas entendo que uma casa que trabalha assim não quer fumantes como clientes. Agora pergunto-lhe o seguinte, Janer: um bar que espontaneamente não aceita fumantes (ou, mais eufemisticamente, não dispõe de mesas para fumantes) está ferindo a Constituição?

Talvez o remédio para tudo isso seja um pouco de civilização: passei por um episódio inesquecível há poucos anos em Milão. Os italianos, e especialmente os milaneses, não são conhecidos pela sua boa educação. Eu estava em dupla desvantagem, com meu fenótipo do mediterrâneo e sotaque de imigrante. Ainda assim, num restaurante lotado e com várias pessoas fumando, um casal adorável sentou-se à mesa ao lado da minha e, com uma educação ímpar, o rapaz perguntou-me se eles podiam acender cigarros. Apesar da minha aversão ao fumo em si, não resisti à finesse, e consenti...

Abraços,

Alex



Meu caro Alex,

é um princípio de Direito: lei menor não revoga lei maior. Se a legislação federal não só permite como obriga a existência de fumódromos, como pode um Estado da Federação proibi-los? Isso sem falar no aspecto que você considera esdrúxulo, a punição ao estabelecimento comercial. Como punir alguém por ato que um outro comete? E se é impossível punir todos que fumam, então não é possível proibir por lei que todos fumem. Não há crime ou contravenção sem sanção. Se a sanção é impossível, de nada adianta definir algo como crime ou contravenção.

Essa lei vai cair. Sem falar que o Serra é um safado. Em sua campanha para presidente, em Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha cuja economia depende do tabaco, prometeu incentivos à indústria fumageira. Como São Paulo não tem uma indústria tabagista e agora o que parece render mais votos é proibir o fumo, ele proíbe. Querem acabar com o fumo em bares? Que criem então leis federais. Se for considerado constitucional o projeto do Serra, então qualquer Estado pode liberar a maconha.

Que se proíba o fumo em repartições públicas, estabelecimentos de ensino, hospitais, cinemas e transportes coletivos, de acordo. Nelas a União não impõe a existência de fumódromos. Cinema à parte, nesses locais não vamos de moto próprio e muito menos por lazer. Que um bar espontaneamente não aceite fumantes, também se entende. Neste bar aqui não se fuma. Você quer fumar, vá a outro. Não há lei que proíba não aceitar fumantes. O que a lei proíbe é que, em bares onde se fuma, não haja local separado para fumantes e não-fumantes. Um Estado, repito, não pode proibir o que a União permite.

Como você sabe, nunca fumei. Meus amigos e amigas, de modo geral, não fumam. Mas sempre tenho cinzeiros em casa para quem fuma. Em um bar, em princípio, procuro a ala dos não-fumantes. Mas se estiver com uma amiga que fuma, a prioridade é dela. Seria ótimo que as pessoas não fumassem. Daí a um político ambicioso pretender impor uma lei absurda vai uma longa distância.

Last but not least, o crack está liberado nas ruas de São Paulo. Isto, Serra não vê. Quanto ao aspecto constitucional, eu o remeto à mensagem abaixo, do Piaia.

 
MENSAGEM DO PIAIA


Janer,

os estados federados teriam competência concorrente, de acordo com a constituição, para legislar apenas em questões de peculiaridades regionais de modo suplementar quando a lei federal já trata das normas gerais (art. 24 parágrafo I e II da Lei Maior). Ora, desde quando o fumo é uma peculiaridade regional de São Paulo? Só paulista fuma? Por que os empresários Brasil afora deveriam ter direitos – manter seu fumódromos – que os paulistas não têm?

Como observou com contundência o juiz Valter Mena em sua decisão, se a intenção do estado é amenizar os danos à saúde devido à poluição, melhor faria voltando-se aos combustíveis de péssima qualidade. Enquanto os veículos rurais e urbanos no Brasil emitem uma média de, respectivamente, 2000 ppm e 500 ppm de enxofre no diesel, os americanos emitem 15ppm.

Foi mais longe, lembrou que a lei estadual proíbe o fumo em recintos de uso coletivo, privados, total ou parcialmente fechados em qualquer dos seus lados por paredes, divisória, teto ou telhado, ainda que provisórios onde haja circulação de pessoas (parágrafo 1 do art. 2). Então perguntou: “existe algum terreno que não seja dotado de pelo menos quatro divisórias?” Como se fará numa festa em algum sítio? Daí apontou a antinomia interna da lei em relação ao seu próprio artigo 6 que afirma que ela não se aplicará às vias públicas e aos espaços ao ar livre.

Você pode ler a decisão aqui, Janer:
http://s.conjur.com.br/dl/decisao-lei-antifumo.pdf

Raphael Piaia

 
JORNALISTA QUER RASGAR
CONSTITUIÇÃO SÓ PORQUE
FOI BURRA NO PASSADO



Tenho em Porto Alegre um grande amigo, hoje já entrado em anos, que tem dificuldade para caminhar cem metros. Precisa parar para respirar. Um enfisema deixou-lhe apenas 22% da capacidade pulmonar. Deixou de fumar talvez há uns trinta anos, mas já tarde demais. Tomou consciência dos estragos do fumo em um curso de prevenção ao tabagismo, quando teve ante os olhos os pulmões de um fumante de um não-fumante. Me procurou angustiado:

- Janer, tens de parar com o cigarro.

Ora, eu nunca havia fumado. Lá pelos dez anos, pus um cigarro na boca, não gostei e joguei fora na primeira tragada. Nunca mais pensei no assunto. Assim, quando vejo fumantes se queixando da propaganda, da influência do meio familiar, do convívio com fumantes, acho muita graça. Em meu clã, todos os homens fumavam e inclusive algumas tias. Cresci vendo filmes de bang-bang, onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Me criei entre adolescentes que julgavam ser o cigarro atestado de virilidade. Ninguém me convenceu. Não gostava e fim de papo.

Dito isto, nunca me ocorreu dizer a um adulto para não fumar. Se vejo uma menina de quinze anos fumando, alguma coisa me dói na alma. Ela talvez esteja buscando ser adulta, moderninha, ou algo do gênero, e não tem uma idéia precisa do preço a pagar. Adulto sabe o que faz. Se nada tenho contra fumantes, há algo no ex-fumante que me desagrada. É sua mania de cristão novo. Quer converter os gentios à sua nova crença.

“É inacreditável que a medida do governo de São Paulo proibindo o fumo em lugares fechados tenha sido contestada pela Justiça – escreve Danuza Leão na Folha de São Paulo –. Isso na contramão do mundo inteiro, que vem fazendo tudo que é possível para coibir o vício do fumo.

“O fumo é um veneno, e quem fuma vai um dia pagar caro por ter achado alguma graça em acender um canudinho de papel cheio de porcarias, inalar a fumaça direto para os pulmões e depois soprar de novo a fumacinha; no mínimo, ridículo. Nos anos 40, todos os filmes mostravam os atores e atrizes fumando, e isso fazia parte do glamour da época. Lembro da cena de um filme em que o ator punha dois cigarros na boca, acendia os dois e passava um deles para a atriz com quem contracenava. Quanta burrice; quanta ignorância. Eu também fui burra e ignorante durante anos, e apesar de ter sido alertada por tanta gente, só parei de fumar no tranco, isto é, quando meus pulmões pediram socorro”.

Se a moça foi burra e ignorante durante anos, como ela mesmo confessa, não pode negar a ninguém o direito de incorrer na mesma burrice. Jornalista, Danuza parece ainda não ter descoberto, mesmo depois de velha, que existe algo em um Estado constituído que se chama lei. E que, entre estas leis, existem leis maiores e leis menores. Lei menor não revoga lei maior. Que ela considere o cigarro um veneno, tudo bem. Nem fumante discorda. Que pretenda passar por cima do Estado de direito para que as pessoas não fumem, vai uma longa distância.

José Serra não nasceu ontem. Ao propor a lei antifumo, sabia muito bem que ela teria pernas curtas. O que o candidato tucano quer é promover sua candidatura. Uma liminar já derrubou parcialmente sua estúpida proposição e pelo menos outras quatro estão a caminho. Enquanto isso, seu nome tem exposição na mídia e o insosso candidato poderá alegar mais tarde: eu tentei, os juízes é que me impediram.

Escrevia ontem o Estadão em editorial: “Ao impor medidas excessivamente severas, que entrariam em vigor no início de agosto, prevendo multas de até R$ 3 mil, fechamento de estabelecimentos comerciais por 30 dias e proibição de cigarros até em prédios residenciais, sob a justificativa de preservar a saúde da população, o governador feriu direitos individuais assegurados pela Constituição e foi muito além da esfera de competência dos governos estaduais”.

Pior ainda, a legislação proposta por Serra punia quem nada tinha a ver com o peixe. O fumante não é multado, mas o estabelecimento onde alguém fuma. Ou seja, se alguém quiser afundar um bar ou restaurante, basta ir até lá e puxar um cigarro. Serra anunciou que irá recorrer. Se recorrer, irá perder. Ou pretende um governador revogar leis federais? Se alguém quiser acabar com o fumo em lugares públicos, que busque o caminho adequado, o Congresso Nacional.

A quem aproveita a medida estúpida? Ao medíocre e inescrupuloso tucano, que divulga seu nome às custas de incomodações inúteis para milhares de pessoas. E à guilda dos advogados, que sempre aplaude a produção em série de leis anticonstitucionais.

“Está aí uma coisa de que me arrependo muito: ter sido fumante – escreve Danuza –. Quando vou subir uma escada ou mesmo uma pequena ladeira, e tenho que parar para respirar, sinto muita vergonha. Como eu gostaria de ser lépida e ligeira como já fui; e sei que a culpa disso não tem outra origem a não ser o cigarro”.

Que se arrependa à vontade. Que sinta vergonha até o imo. Que se fustigue com correntes, que dilacere suas carnes com chicotes. Ninguém a obrigou a fumar. Mas que não pretenda rasgar a Constituição só porque foi burra no passado.

segunda-feira, junho 29, 2009
 
OBAMA REVELA
AO QUE VEIO



Um presidente que quer reeleger-se propõe um plebiscito para permitir sua reeleição. O plebiscito é considerado ilegal pela Suprema Corte de seu país. O Congresso aprova uma lei que impede a realização de consultas populares 180 dias antes e depois das eleições. O presidente ignora a lei e a decisão da Suprema Corte e mantém o plebiscito. A Suprema Corte ordena que o Exército destitua o presidente do país. Em defesa da Constituição, do Congresso e da Suprema Corte, o Exército o destitui. Dia seguinte, a imprensa internacional toda fala em golpe. Quando Exército rasga a Constituição é golpe. Quando a defende, também é golpe. Não entendi.

Talvez o imbróglio se torne mais claro quando Hugo Chávez, o clown do continente, declara seu apoio ao presidente que queria rasgar a Constituição e diz que não reconhecerá outro presidente hondurenho que não seja José Manuel Zelaya.

O presidente que preparava um golpe branco recebe, de repente, o inusitado apoio dos EUA. Barack Obama condenou a destituição do presidente hondurenho e pediu que "todos em Honduras respeitem normas democráticas, o estado de direito e os princípios acordados na Carta Democrática Interamericana". Para isso, disse Obama, Zelaya deve retornar ao poder. Ora, quem estava desrespeitando as normas democráticas, o estado de direito e os princípios acordados na Carta Democrática Interamericana era precisamente Zelaya.

É difícil imaginar que o presidente americano esteja mal-informado. Ainda há pouco, em um discurso na universidade do Cairo, revelou ao que veio, ao defender o Islã e a ditadura de Hosni Mubarak. Ao apoiar o tiranete da Venezuela e um projeto de ditadura, Obama de novo confirma seu apreço por ditaduras.

 
BÊBADO É QUEM
NÃO SABE BEBER



“Agora fiquei curioso, beber bebida alcoólica e não ficar bêbado? – me pergunta um leitor – “Acho que não tem como. Tem? Como?”

Ah, meu caro! Exige um aprendizado. E prática constante. Meu pequeno círculo de amigos bebe com entusiasmo e ninguém fica bêbado. Aliás, detesto bêbados. Jamais aceitaria um em minha mesa.

Fora algumas pessoas que não têm tolerância alguma ao álcool – e eu as conheço –, só se embriaga quem não sabe beber. Vi isto na Suécia, nos anos 70. O álcool era proibido nos bares. Só se bebia em restaurantes. Só com comida e a partir do meio-dia. Se você estava comendo uma pizza às 11h30 e pedia uma taça de vinho, nada feito. Só às 12h em ponto e a preços de tornar qualquer cristão sóbrio. Em supermercado, nem pensar. O máximo que alguém podia comprar era a mellanöl, uma cervejinha com pouco mais de 1% de teor alcoólico. E isso se provasse ser maior de 18 anos. Álcool mesmo, só era vendido nos systembollag, lojas estatais que abriam às oito da manhã e fechavam às seis da tarde. Aos sábados, fechavam ao meio-dia. Fins de semana, álcool só no câmbio negro. Estocolmo foi a cidade em que vi mais bêbados em minha vida. Nos fins de semana, jovens cambaleando nas ruas, um cheiro ácido de vômito nos vagões do metrô. Na Noruega, quando passei por lá, nas lojas estatais só podia comprar álcool quem provasse ter mais de 25 anos.

Por outro lado, nas tascas de Madri ou Lisboa, e mesmo em Paris, vi gente bebendo o dia todo e bêbado nenhum nas ruas. Devem existir, é óbvio. Mas não é fenômeno visível. Certo, em Paris havia os clochards, mas ser clochard é uma opção de vida. Digo havia, porque não lembro de ter visto clochards em minhas últimas passagens por lá.

Anos mais tarde, voltei à Suécia. A bebida havia sido liberada, pelo menos nos bares. Milhares de novos bares por todos os lados, gente bebendo alegremente nas terrasses e, aparentemente, bêbado nenhum nas ruas ou metrôs. O Kungsträdgården - Jardim do Rei, em língua de gente - era uma praça que tinha um só boteco em meus dias de Estocolmo. E com todas as restrições supra. Hoje, está repleta de bares e restaurantes, com gente bebendo à vontade. Com a liberação da bebida alcoólica, os suecos parecem ter aprendido a beber.

Beber sem embriagar-se tem seus riscos, há quem acabe passando da dose saudavelmente permissível. É uma aposta. Se ganhar, ganhou. Se não ganhar, será um desastre. Já vi muita gente morrendo devido ao álcool nas minhas cercanias. Junto a mim, ninguém.

O que não admitimos, nós que bebemos, é essa recomendação médica de beber apenas uma ou duas taças de vinho por dia. Com duas taças estamos longe de sentir o vinho. As palavras sequer começaram a fluir. Tenho uma boa amiga que, após meia garrafa de vinho, começa a falar grego. Depois de uma garrafa, eu até a entendo.

Beber é inerente ao jornalismo. Em meus dias de Caldas Júnior, em Porto Alegre, tive um colega admirável, o Carlos Raphael Guimaraens. Bom de copo, pessoa de cultura extraordinária, era uma enciclopédia ambulante. Quando a Caldas foi comprada por um certo Dr. Ribeiro, que de Dr. não tinha nada, correu um boato nos corredores, de que BBCs não mais seriam admitidos na empresa. Por BBC Dr. Ribeiro entendia bichas, bêbados e comunistas. O Guima foi objetivo:

- Dr. Ribeiro! Dá pra se fazer um jornal sem bicha. Também dá pra se fazer um jornal sem comunistas. Mas sem bêbado não se faz jornal.

Não que fosse bêbado. Apenas assumiu a terminologia do "Dr" Ribeiro. Era homem que bebia e certamente o mais brilhante articulista da Caldas. (O único brilhante, eu diria). Certo dia, parou subitamente de beber. Apreensão entre nós, seus amigos. O Guima deve estar doente. Estava mesmo. Morreu pouco tempo depois. Nada de cirrose, mas problemas cardíacos.

Certa vez, um médico teve o atrevimento de dizer-me: “o permissível por dia é meio copo de cerveja”. Ora, doutor, meio copo de cerveja não existe. Que não se confunda quem bebe com bêbado. Bêbado é quem não sabe beber.

domingo, junho 28, 2009
 
UNIVERSIDADES (V)


Sobre Nietzsche, outro autor que não se encontra na universidade, vou reproduzir texto que escrevi há uma década. Meus professores de Filosofia não gostavam do alemão, ele demolia todas as filosofias. Cá e lá ele era citado, afinal não podia ser ignorado. Mas nunca tive professor que recomendasse Nietzsche em suas bibliografias. Para mim, foi autor decisivo em minha vida. É leitura, penso, que deve ser feita quando se é jovem. Não sei se adianta ler Nietzsche aos trinta anos. Também não sei se seria útil a um jovem contemporâneo. Em minha época de universitário, pensamento se demolia com pensamento. Hoje, os meios de comunicação se encarregam deste trabalho de demolição.

Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo - Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade?

É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" - alerta Nietzsche já na introdução - "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas - Eis o Homem - foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus.

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás. Procurei imediatamente as obras completas do autor. Primeira escala, Assim falava Zaratustra: "Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres". Zaratustra é o eremita que, ao voltar da montanha, encontra um santo em uma cabana no bosque, que entoa cânticos para louvar a Deus. O eremita se espanta: "Será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido no seu bosque que Deus já morreu?"

Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação. Títulos como A Origem da Tragédia, O Crepúsculo dos Ídolos, Humano, Demasiado Humano, Além do Bem e do Mal, Anti-Cristo já antecipam o que este doublé de filósofo e poeta se propõe.

Postumamente, publicou-se uma versão apócrifa de Vontade de Potência, devidamente adulterada por sua irmã, Lisbeth Förster-Nietzsche - que morreu refugiada no Paraguai - para atender aos interesses do nazismo. Durante boa parte deste século, Nietzsche, inimigo jurado de filosofias coletivistas, foi associado ao nazismo. Principalmente pelos marxistas, que intuíam em seu pensamento uma condenação avant la lettre dos regimes socialistas. Esta associação é desonesta.

Basta lermos as invectivas de Nietzsche aos alemães e à cultura alemã em Ecce Homo, para descartarmos este absurdo: "Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhague, em Paris, em Nova York, por toda parte estou descoberto: não o estou somente no país mais ordinário da Europa, a Alemanha". Ou ainda: "Por onde quer que passe, a Alemanha destrói a cultura". Cabe lembrar que Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia.

Este autor, dificilmente você encontrará nos currículos universitários. Seu pensamento demole sistemas, e a academia adora o pensamento sistematizado. Tampouco serve para criar qualquer espécie de culto ou religião: Zaratustra não quer discípulos. Nietzsche fala a homens livres, capazes de respirar a atmosfera das grandes alturas, que não temem a intempérie metafísica e dispensam muletas espirituais.

Há cento e nove anos, morria Nietzsche. Nestes dias em que uma nova inquisição, o pensamento politicamente correto, quer impor sua vontade, o Anti-Cristo certamente lhe renderia uma carrada de processos. Este livro, que escandalizou - e ainda escandaliza - a Europa, é uma contundente catilinária contra o Cristo e seus discípulos e um entusiasta elogio de César, Nero, César Borgia, Napoleão e Goethe. Nas páginas finais, lemos um projeto de Lei contra o Cristianismo, dada no dia da Salvação do ano Um (a 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário).

Art. 1º - É vício qualquer tipo de antinatureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não temos razões, temos a casa de correção.
Art. 2º - Qualquer participação num ofício divino é atentado contra a moral pública. (...) Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão.
Art. 3º - O lugar de maldição onde o cristianismo chocou os seus ovos de basilisco será completamente arrasado, e sendo sobre a terra o local sacrílego, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Aí serão criadas serpentes venenosas.


E por aí vai. Leia Nietzsche. É salutar. Mas atenção: de nada adianta lê-lo aos cinqüenta. Aos cinqüenta, ou você há muito se libertou... ou está definitivamente perdido.

sábado, junho 27, 2009
 
HABEAS COPUS


Alexandre, voltando do sacrifício, reuniu para a ceia diversos amigos seus e generais e ofereceu um prêmio para aquele que mais bebesse. O vencedor foi Promaco, que bebeu doze litros de vinho e recebeu um talento como prêmio de sua vitória, morrendo três dias depois. Dos outros convivas, morreram quarenta e um em conseqüência da orgia, acometidos de um frio violentíssimo, enquanto perdurava o estado de embriaguez. É o que conta Plutarco, em Vidas Paralelas.

Enfim, não exageremos. Beber é bom. Mas devagar. Meu primeiro porre, devo tê-lo tomado lá pelos quinze anos. Não diria que foi involuntário. Mais que isso, foi necessário. Guri ainda, lá de vez em quando eu tomava algum gole de cachaça, mas não mais que isso. Me agradava o ardor da caninha ao descer pelo garganta. Vivia no campo e dependia de carona para ir até a cidade. Certo dia, peguei carona com o Toto Ferreira. Quem tem minha idade e conheceu Três Vendas e Upamaruty, sabe quem foi Toto Ferreira. Ou seja, raras pessoas tiveram o privilégio de conhecê-lo.

Mal entrei em seu jipe, me passou uma garrafa de Bacacheri. “Beija” – me disse. Beijei. De beijo em beijo, atravessamos Ponche Verde e rumamos a Dom Pedrito, o jipe sacolejando pelos barrancos. Ele tinha verve e me contava histórias daqueles pagos. “Quando eu bebo, as palavras flueeeemmm”.

Eu era novato, mas não maturrango. Se ele bebesse a garrafa toda, talvez não chegássemos a Dom Pedrito. A salvação era empinar pelo menos a metade. Foi o que fiz. Chegamos bêbados à cidade, mas pelo menos inteiros. Até hoje não esqueço aquela frase magistral: quando bebo as palavras flueeeemmm. Comigo também acontece.

O problema é que às vezes – e não poucas – acabo esquecendo o que disse. Certa vez, numa festa no Rio de Janeiro, brilhei quando minhas palavras começaram a fluir. Disse alguma coisa que deixou minha platéia perplexa. Quem disse isso? – perguntou-me um psicanalista. Que eu saiba, ninguém – respondi -. Quem está dizendo sou eu. “Disseste algo genial naquela noite” – escreveu-me um amigo. Maravilha! Mas havia dito o quê? Nem ele nem eu lembrávamos mais. Um de meus grandes momentos ficou perdido numa madrugada regada com o sangue das uvas.

Lá pelos 70, aprendi algo que não recomendo a ninguém. Aprendi a beber sem embriagar-me. Aconteceu em Liverpool. Eu era hóspede de um cônsul uruguaio na Inglaterra. Bastante inculto, dominava no entanto a arte de bem beber. Diplomata, tinha direito a spirits isentos de imposto. Como o embaixador não bebia, se beneficiava de uma cota extra. Sua casa era uma festa para bebuns. Havia uísques, vinhos, cachaças, grapas, akvavits, kirschwassers, calvás, chinchons, orujos por toda parte. Em armários, guarda-roupas e até mesmo debaixo das camas. Arsenal para enfrentar longas guerras. Gaúchos, começávamos a manhã com chimarrão. Lá pelas onze, um scotch. E o dia assim prosseguia, até um armagnac ou strega em final de noite. Como se bebe o dia todo sem se embriagar, não vou contar. Não quero condenar meus leitores ao oblívio.

Não que eu beba o dia todo. Viajando, até pode ser. Não tanto pelo beber, mas pelo gosto de bater ponto em cada tasca onde vivi dias felizes. Há viagens em que me atrapalho, particularmente quando em Viena, Roma, Paris ou Madri. Quero revisitar todos meus bares e os dias são curtos. Viena é uma desgraça. Você poder passar lá um mês e não consegue fazer todos aqueles cafés cheios de charme.

Há horas tento convencer meus médicos de que beber, pelo menos para quem sabe beber, não tem muito a ver com álcool. Falarei de vinhos. Tão importantes quanto o vinho são, a meu ver, a cor do vinho, a forma da taça, a comida que vai junto. Isso sem falar do lugar onde se bebe. Vinho não se bebe com sanduíche, muito menos com qualquer um. A cozinha tem de ser boa e a companhia também. Isso sem falar no ambiente. Mesas de madeira e paredes revestidas de madeira, se possível. Mármores e lustres também são bem-vindos. Jamais tomaria vinho nessas mesas de plástico abomináveis que estão infestando o universo todo. Vinho exige também toalhas. E nada de rádio ou televisão.

Mas talvez o mais importante seja a pessoa com quem se está. Abstêmias que me perdoem, mas não concebo conversar com água com uma amiga que quero bem. As palavras até que fluem sem vinho, mas não com a melhor das fluências. Estou ressuscitando de um longo semestre de lei seca, no qual me abstive até mesmo do convívio com minha gente. Um médico, empunhando os horrores do inferno, me prescreveu um ano sem beber. Outro, apreciador da boa mesa, foi mais leniente: só durante o tratamento. Só que o tratamento parecia não mais acabar. Já estava pensando em levá-lo às barras dos tribunais, impetrar um habeas copus em defesa da bona-chira e da boa charla. Não foi preciso. Estou finalmente liberado. Amici miei venite qui.

Não há consenso na medicina sobre o vinho. Em fevereiro passado, uma pesquisa do INCA (Instituto Nacional do Câncer, da França), assegurava que uma taça diária de vinho constituía fator cancerígeno. Em março, a reação. Uma outra pesquisa médica afirmava que o vinho – e só o vinho entre as bebidas alcoólicas – era benéfico para pelo menos vinte tipos de câncer. In dubio, fico com Verdi. Habeas copus:

Libiam ne' lieti calici
Che la bellezza infiora,
E la fuggevol ora
S'inebri a volutta'.

Libiam ne' dolci fremiti
Che suscita l'amore,
Poiche' quell'occhio al core
Onnipotente va.

Libiamo, amor fra i calici
Piu' caldi baci avra'.

 
MORTE TRANSFIGURA


Ontem, palhaço e pedófilo.

Hoje, grande artista.

sexta-feira, junho 26, 2009
 
TUNGA SINDICAL


Caro Janer!

O que está por trás deste corporativismo famigerado é a conhecida e popular "tunga sindical". A profissão regulamentada gera um sindicato que, imagine só, vai arrecadar todo ano, um dia de trabalho de cada um dos " profissionais" para o fundo sindical. Bem, arrecadará sempre mais um dia a cada acordo salarial, ou a cada pretexto aleatório, do tipo fundo de greve etc. . Além, é claro, das mensalidades dos "trabalhadores regulamentados". Ah, criará emprego e renda, (nada de trabalho) para os "dirigentes" e seus aderidos.

Com a dinheirama pagam-se os "trios elétricos", que infernizam as cidades acompanhando passeatas, agitos e badernas. Pagam-se as mordomias sindicais, a representatividade dos dirigentes (já viu algum dirigente usando sapato com meia sola ou camisa puida?), as campanhas eleitorais, etc. A regulamentação de profissões é apenas um pretexto...

Reconheço que os sindicatos mais fortes, além da esculhambação e infernalização nacionais por conta de seus intereses, também oferecem aos seus associados, serviços jurídicos, de saúde, lazer e formação profissional. Mas são poucos e não escapam da prática da tunga compulsória de dias de trabalho, inclusive contra os não associados.

Abraço,

Raul Almeida

 
FSP, SENADOR LADRÃO
E KENNEDY ALENCAR



Janer:

A propósito do envio de mensagem ao ombudsman da Folha sobre o senador ladrão que continua assinando sua coluna, passei pelo mesmo itinerário, contudo com assunto um pouco diverso.

A questão que reclamei foi do fato de que apesar do colunista Kennedy Alencar já ter sido assessor do ilustre apedeuta (sim, todos sabemos, a expressão é tua), esta informação não é dada ao leitor.

Considero relevantíssimo este procedimento para que o leitor possa contextualizar melhor a leitura que faz das opiniões do articulista, sobretudo em razão de que suas análises quase sempre são sobre as políticas do governo Lula. Veja que não estou exigindo imparcialidade, nem do colunista nem da Folha. Só a informação.

Também me agradeceram o envio da manifestação e que em breve teria uma resposta. Isto não aconteceu. Este negócio de ombudsman será que é levado a sério mesmo?

Newton Moratto

 
FOLHA SEGURA SENADOR LADRÃO


Hoje é sexta-feira. O senador ladrão continua assinando sua coluna na Folha de São Paulo. Olímpico, ignora o lamaçal em que afunda e lamenta a morte de uma menina em Teerã.

E o símbolo desse protesto passa a ser Neda, uma mulher morta pela milícia fanática dos aiatolás, basiysí. Seu rosto ensanguentado foi mostrado em todo o mundo. Seu sangue sem dúvida vai motivar mais ainda a libertação da mulher iraniana. Isso mostra que nem as mais cruéis tiranias, mesmo as teocráticas, resistem às ideias de liberdade e igualdade.

Que o Senado proteja Sarney entende-se. Canalhas são sempre solidários entre si. Que a Folha o mantenha como colunista é mais difícil de entender. O jornal que denuncia suas corrupções lhe dá sustentação em página nobre. Ao que tudo indica, a Folha não tem o rabo preso com o leitor. Mas com o senador.

quinta-feira, junho 25, 2009
 
OMBUDSMAN PASSA
BOLA PRA FRENTE



Segunda-feira passada, perguntei ao ombudsman da Folha de São Paulo se o senador ladrão continuaria a assinar coluna no jornal. De Carlos Eduardo Lins da Silva, acabo de receber:

Caro Senhor Janer,
agradeço sua manifestação, levada ao conhecimento da direção do jornal.
Atenciosamente,

Carlos Eduardo Lins da Silva
Ombudsman - Folha de S.Paulo

 
VESTAL PEDE QUE VESTAL
SAIA DA CASA DAS VIRGENS



O senador Pedro Simon afirmou hoje que o presidente do Senado, José Sarney, tem de se afastar do comando da Casa. "Ele deve se afastar desse processo. Para bem dele, da família dele, da sua história e deste Senado".

Pedro Simon é aquela vestal que levou sua mulher a Paris, com dinheiro não dele, mas do contribuinte. Afirmou ainda que os escândalos que envolvem o Senado não devem ser atribuídos a um ou outro parlamentar. "A frase bíblica nunca esteve tão certa: ninguém pode atirar a primeira pedra. Não se pode dizer que 'não fui eu' e não dizer que 'foi ele'. Há responsabilidade coletiva".

A responsabilidade é coletiva, mas vestal Simon nem cogita de se afastar do Senado.

 
GOVERNO ESTIMULA
DROGAS MILENARES



Leio no Estadão que a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), ligada à Presidência da República, vai capacitar 5 mil padres, pastores, monges budistas e outros religiosos para lidar com o problema das drogas. O curso, chamado de Fé na Prevenção, é gratuito, começa em agosto e terá duração de dois meses e certificado emitido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Até 2011, a meta é treinar 20 mil líderes. "Além de católicos e evangélicos de diferentes denominações, estão participando lideranças espíritas, judaicas, de religiões de origem africana, religiões orientais e uma série de movimentos afins que se dedicam ao tema drogas", contou a secretária adjunta da Senad, Paulínia Duarte.

Incompetente para lidar com o problema, o governo está propondo a substituição das drogas contemporâneas por uma outra, milenar. Sua Santidade Bento XVI, o maior traficante internacional de drogas, penhorada, certamente agradecerá.

 
FAMÍLIA QUE MENTE UNIDA
JAMAIS SERÁ VENCIDA



Atolado até o pescoço por ter transformado o Senado em prebenda de seu clã, José Sarney divulga nota hoje:

Sobre a matéria divulgada hoje pelo jornal O Estado de S.Paulo, considero os esclarecimentos prestados pelo meu neto, José Adriano Cordeiro Sarney, pessoa extremamente qualificada, com mestrado na Sorbbone, e pós graduação em Harvard, suficientes para mostrar a verdadeira face de uma campanha midiática para atingir-me, na qual não excluo a minha posição política, nunca ocultada, de apoio ao presidente Lula e seu governo.

Sorbbone, assim com b duplo e um só n, é por conta do erudito senador. Sarney acusa o Estadão. Mas a Folha de São Paulo, jornal onde assina coluna, terá obrigatoriamente de divulgar o fato. A edição on line do UOL de hoje, ao divulgar a defesa do neto, divulga o fato. José Adriano Cordeiro Sarney afirma que seus negócios são bem sucedidos por causa de sua formação:

Sou economista e administrador formado na Universidade Americana de Paris, com especialização em Economia Internacional pela Universidade de Sorbonne, na França, e curso de Pós-graduação na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Nessa condição, fui gerente no departamento responsável por créditos e, posteriormente, pelos conhecimentos na área, decidi atuar nesse mercado.

Ou avô e neto mentem ou não foram informados que Universidade de Sorbonne não existe. Desde 1969. Sou mais a primeira hipótese, afinal estamos tratando com pessoas que tem acesso à informação. Amanhã, veremos se a Folha mantém a coluna do senador corrupto, ladrão e mentiroso.

 
LÁ COMO AQUI


De uma entrevista com Juan Pedro Quiñonero, autor de La locura de Lázaro:

P: Hace unos días publicó un reportaje en ABC sobre la conmoción que ha causado en Francia la publicación de un libro en que se habla de editores venales, jurados corruptos, escritores inflados por críticos pesebreros ¿Es extrapolable el ‘caso’ francés al español?

R: Buena parte de la cultura española de hoy está controlada y manipulada por sectas mafiosas. Las corrupciones económicas son las más veniales. Las más graves son las que afectan a la manipulación y destrucción del gusto, la sensibilidad y lo que en otro tiempo se llamaban ‘valores literarios’. Hoy domina la incultura y la basura de masas.

 
LA PROFUNDIDAD DEL ALMA ARGENTINA


Por una cabeza
todas las locuras,
su boca que besa
borra la tristeza,
calma la amargura.

Por una cabeza
si ella me olvida
qué importa perderme,
mil veces la vida
para qué vivir...

Carlos Gardel


Mais caro que uma amante argentina, diz a sabedoria popular. Quem deve estar sentindo o preço é Mark Sanford, governador da Carolina do Sul (EUA), que desapareceu na semana passada, alegando que fazia uma caminhada em uma trilha. Em verdade, o governador trilhava por outras curvas, mais precisamente as de uma percanta argentina. E justo – ó sacrilégio! – no Dia dos Pais nos Estados Unidos.

Os emails trocados com a moça mais parecem letra de tango: “Meu coração grita por você, sua voz, seu corpo, o toque de seus lábios, o toque de seus dedos e mesmo pela conexão profunda com sua alma. Eu poderia divagar e dizer que você tem a habilidade de oferecer beijos magnificamente macios, ou que eu amo suas linhas bronzeadas, ou que eu amo a curva de seu quadril, sua beleza erótica no sutil brilho da noite - mas aí eu estaria entrando em detalhes sexuais".

Tudo menos detalhes sexuais. Temos um coração que grita, uma conexão profunda com uma alma. A alma é que é profunda, segundo o governador. Pelo que sei, nem Tomás de Aquino ousou falar em almas com profundezas.

 
CONTINUARÁ SENADOR LADRÃO
ASSINANDO COLUNA NA FOLHA?



Segunda-feira passada, fiz uma pergunta para Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da Folha de São Paulo:

Na Folha de São Paulo de hoje, na privilegiada página dos editoriais, Fernando de Barros e Silva denuncia a velharia velha dos Sarney e a nova velharia representada pelo lulismo, afirma que o Brasil virou uma espécie de democracia senhorial e Lula se tornou seu maior avalista. E conclui: “Lula e o neopatrimonialismo sindical que ele sustenta levaram isso ao paroxismo. Não importa que seja ladrão, desde que seja meu amigo”.

Sem querer querendo, sem dizer dizendo, Barros e Silva chamou José Sarney de ladrão. Pergunta que se impõe: até quando a Folha de São Paulo manterá como colunista o senador ladrão?


No mesmo dia, recebi uma mensagem gerada automaticamente pela caixa postal de ombudsma@uol.com.br.

Prezado(a) Leitor(a):
Obrigado pela mensagem enviada ao ombudsman da Folha de S.Paulo.
Esta é uma resposta automática.
Suas observações serão apreciadas e, assim que possível, o (a) senhor (a) receberá resposta.


E mais nada recebi até hoje, quinta-feira. Amanhã é o dia em que Sarney assina sua coluna no jornal.

quarta-feira, junho 24, 2009
 
NO PAÍS DAS GUILDAS


Os corporativistas são aguerridos. Enquanto o ministro Gilmar Mendes afirma que não existe possibilidade de o Congresso Nacional reverter a decisão do STF que determinou o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista, o senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) já conseguiu coletar quarenta assinaturas de apoio à apresentação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que exige diploma de curso superior de Comunicação Social para o exercício da profissão de jornalista.

Segundo a proposta, o exercício da profissão será privativo de portador de diploma de curso superior de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, expedido por curso reconhecido pelo Ministério da Educação. Ou seja, o senador quer reconstituir exatamente o que a suprema instância jurídica do país acaba de derrubar. Pelo jeito, o senador ainda não descobriu que em Estado constituído existe uma última instância. Ou as leis seriam cambiantes como as nuvens que passam. Que nem malmequer. Hoje pode, amanhã não pode, depois de amanhã pode e dia seguinte não pode mais.

Gilmar Mendes disse acreditar que a decisão vai repercutir em outras profissões, mas não quis citar quais. Seria em boa hora. Já existem na Câmara projetos propondo a regulamentação de 169 profissões, entre elas a de pedólogo, cozinheiro, manicure, astrólogo, técnico de futebol, repentista. Se entre os 169 projetos estão “profissões” como a de astrólogo ou repentista, você pode ter uma pálida idéia do que pretendem regulamentar os outros 167 projetos. Mais um pouco e os senhores legisladores tentarão regulamentar as profissões de prostituta ou travesti. Se o contribuinte já paga silicone, hormônios e cirurgias para estes últimos, não espanta que dentro de pouco se exija diploma para o exercício do ofício.

Se um dia perder a capacidade de indignar-me – dizia Gide – é porque estou ficando velho. No que a mim diz respeito, confesso que ainda não decidi o que me indigna mais nestas minhas seis décadas de existência: se pagar silicone para travestis ou se ver universitários fazendo passeatas para defender privilégios corporativistas. Estes jovens – dos quais seria de se esperar atitudes generosas e nenhum compromisso com a corrupção – em verdade estão assumindo a mesma atitude senil dos políticos esclerosados do Planalto, que consideram um ataque às instituições democráticas a denúncia de suas corrupções. Nunca antes neste país, como costuma dizer o Analfabeto-Mor, os jovens foram tão senis.

O Brasil não é só o país das regulamentações, mas também o das profissões exóticas. Não sei se o leitor sabe, mas até aquele pobre diabo que aperta botões em um elevador tem a profissão regulamentada no Brasil. Como se você fosse incapaz de apertar o botão do andar para onde você vai. Ainda na semana passada, representantes do Sindicato dos Cabineiros de Elevador – este é o pomposo nome do ofício – do Município do Rio de Janeiro participaram de uma audiência pública na Assembléia Legislativa do Rio para cobrar o cumprimento das leis municipal e estadual que exigem a presença de ascensoristas nos elevadores de prédios comerciais e mistos.

Cuidado ao apertar o botão de um elevador, leitor. Você ainda acabará incurso em exercício ilegal da profissão. E se tiver algum pendor para o repente, cuidado ao sair improvisando versinhos por aí. Esta atividade só poderá ser exercida por repentistas diplomados.

Ontem ainda, um leitor me informava que se pretende regulamentar a profissão de escritor. Sei disso, escrevi sobre o assunto há bons sete anos. Pretende-se também regulamentar a profissão de tradutor. Tradutor não seria quem domina idiomas e traduz, mas quem cursou o curso de tradutor. Mais um pouco e nem pai-de-santo pode ganhar a vida com suas vigarices se não tiver curso superior.

Reproduzo abaixo parte do que escrevi, na época, sobre a pretensão das guildas.

 
Crônica antiga:
O BOLCHE E OS ASTROS



Em O Jardim das Aflições, o astrólogo Olavo de Carvalho afirma ser difícil "um sujeito acreditar na influência dos astros e na luta de classes como motores da história". Ocorre que estamos no Brasil, onde o inimaginável não só não é difícil, como perfeitamente viável. Depois que um testemunho do Além, psicografado por Chico Xavier, já serviu de prova em um tribunal, tudo é possível. Um projeto que regulamenta a profissão de astrólogo foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e agora aguarda votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, líder do governo no Senado, a proposta define quem poderá exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o "cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público".

O Brasil tem vocação para único. Único pentacampeão de futebol, é também o único país no mundo que exige curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Possivelmente é também o único em que um bolchevique histórico propõe a regulamentação de uma crendice. Ou melhor, de uma vigarice, pois de outra forma não se pode chamar a exploração de superstições. Se aprovado no plenário do Congresso, teremos reconhecido a um grupo seleto de vigaristas o direito exclusivo de enganar simplórios. Há uma febre nacional corporativista. Ano passado, na Bahia, até as vendedoras de acarajé tentaram regulamentar a profissão. Como crentes evangelistas passaram a vender nas ruas o bolinho de feijão, persuadiram uma vereadora a apresentar projeto de lei que proíbe o preparo ou venda de acarajé por qualquer estabelecimento comercial, incluindo shoppings, restaurantes e bares. Só mãe-de-santo pode vender acarajé. Agora, pelo projeto do senador, só astrólogos legalmente habilitados poderão exercer a astrologia. Quanto à astronomia, ciência há séculos consolidada, seu exercício ainda não foi regulamentado.

Em meus dias de foca em Porto Alegre, na falta de redator, redigi por várias semanas a coluna de astrologia do finado Diário de Notícias. Ninguém reclamou, nem os astros nem seus regidos. O único protesto, que quase me custou o emprego, foi do editor do jornal, quando foi verificar porque eu ria tanto enquanto redigia. Se passa o projeto do senador, este avatar do qual nenhum foca escapava naqueles dias, seria hoje considerado exercício ilegal da profissão.

Nada de espantar neste país em que o governo do Estado de Santa Catarina pagava a fundação Cacique Cobra Coral, "entidade esotérica-científica", para fazer a previsão do tempo. O cacique Cobra Coral é um indígena americano que, em outras encarnações, teria sido Galileu Galilei e Abraham Lincoln. Seu espírito se manifesta através da médium Adelaide Scritori, que já fez chover na Sérvia a pedido do presidente Sadam Hussein, para deter o avanço das tropas da OTAN. Cobra Coral pode empurrar uma frente fria de um lugar para outro, derrubar um centro de pressão atmosférica evitando um tufão e até fazer sumir uma geada. A Fundação, cujo lema é "luz que ilumina os fracos e confunde os poderosos", informa em seu site que tem como clientes governos estaduais, ministérios, multinacionais, e políticos, como o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, o ex-presidente José Sarney e o senador Gerson Camata.

O diretor da empresa Tunikito Corporation, controlada pela fundação, esteve ano passado com o senador Eduardo Suplicy, para mostrar-lhe cópia da carta enviada ao então ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, onde previa o blecaute no Centro-Sul do país na primeira quinzena de março. Enfim, dada a crença de ex-presidentes, governadores, ministros e senadores pátrios no sobrenatural, não causa espécie que o velho bolchevique impenitente tenha proposto a seus pares no Senado a regulamentação do ofício de intérprete da vontade dos astros.

Aprovado o texto, teremos muito em breve uma Faculdade de Astrologia, com mestrados e doutorados na área. Astrólogos devidamente diplomados seriam contratados pelos organismos públicos para atuar na seleção de pessoal, previsão de catástrofes, flutuações do câmbio e campanhas eleitorais. Paralelamente à Ouvidoria Geral da República, teríamos uma Vidência Geral da República ou algo parecido, "para satisfazer às indagações do público", como quer o senador.

Quanto à imprensa, caluda! Nenhum jornal, por mais sério que se pretenda, dispensa sua coluna diária de astrologia. Há milhões de leitores, no mundo todo, que só põem as mãos num jornal para ver o que dizem os astros. Empresário algum, por mais avesso que seja a crendices, pensaria em não atender as angústias desta massa informe de crédulos. Se a própria imprensa, que se pretende crítica, endossa a vigarice, não é de espantar que seus colunistas de astrologia se sintam valorizados com a nova lei. De qualquer forma, em uma cultura dominada por sacerdotes que exploram o cadáver de um judeu, que além de ser deus seria filho de mãe virgem, engodo a mais engodo a menos não faz a menor diferença.

Mas não discriminemos os demais vendedores de vento. Urge regulamentar ainda ofícios fundamentais ao bem-estar psíquico da nação. Não se pode deixar ao desabrigo da legislação trabalhista profissionais como pais e mães-de-santo, médiuns, cartomantes, quiromantes, jogadores de búzios, leitores de borra de café.

E – last but not least – os psicanalistas, que também são filhos de Deus e dependem da credulidade pública.

(07/07/2002)

 
Crônica antiga:
UNIVERSIDADE PÚBLICA ASSUME VIGARICE



Em 2003, o Ministério da Educação autorizou o funcionamento em São Paulo da Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Da grade curricular constam Botânica Umbandista, Fundamentos de Psicologia Geral e Umbandista, Biologia Geral e Espiritual. Donde se conclui que deve também existir uma botânica católica, outra judia, outra luterana e assim por diante. As botânicas florescerão com o mesmo viço das profissões de fé. Idem no que diz respeito à psicologia. Quanto à biologia espiritual, é de perguntar-se qual será a natureza do material estudado pelos professores. Seres etéreos, evanescentes, inefáveis?

Em janeiro de 2004, a ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, sancionou lei que permite a oferta, na rede de saúde, de "terapias naturais" não reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, como aromaterapia e cromoterapia, fitoterapia (tratamento com plantas), terapia floral, geoterapia (terapia com terra, argila, barro), e até a iridiologia.

Não bastassem tais vigarices serem elevadas ao status de ciência, a Universidade de Brasília criou um curso de Astrologia, promovido pelo Núcleo de Estudos dos Fenômenos Paranormais, que se dedica ainda a outros temas do gênero, como ufologia e conscientologia, seja lá o que isto quer dizer. As lições de astrologia duram quatro meses. Os estudantes, a maioria com diploma universitário, vêm das mais diversas áreas - da psicologia à física. Os 20 alunos da sétima turma começaram os estudos na semana passada.

Que ousados executivos do Além queiram dourar seus ofícios com diploma de nível superior entende-se. Claro que em breve teremos doutores em Teologia Umbandista e - por que não? - faculdades de Teologia do Candomblé. Isso sem falar nos mestres e doutores astrólogos. Mais um pouco, e o senador comunista Artur da Távola verá seu sonho realizado, a regulamentação da profissão de astrólogo.

O que pasma é ver o MEC endossando tais excrescências. Verdade que a coisa começou há muitos séculos. Quando, na Idade Média, surgiram os primeiros cursos universitários de Teologia, as portas estavam abertas para toda e qualquer especulação. Teologia é a ciência do conhecimento de Deus. Isto é, do conhecimento do que não existe. Se os católicos têm uma ciência do que não existe, porque umbandistas e astrólogos não a teriam?

(22/09/2006)

 
Crônica antiga:
CORRUPÇÃO VIA LITERATURA



Continua fazendo estragos no país o furor corporativista que assola certos ofícios. Em crônicas anteriores, comentei a regulamentação da profissão de astrólogo, cujo projeto de lei já passou no Senado. Enquanto a vigarice não toma forma de lei, um certo mestre De Rose - que não tem mestrado em coisa alguma - se propõe a regulamentar a profissão de instrutor de ioga. Os místicos se organizam e querem o monopólio do mercado das angústias humanas. Não bastassem estes senhores querer cercar de exigências os profissionais destas guildas metafísicas, um jornalista do Estadão quer agora carteirinha para escritor. Demonstrando desconhecimento da confecção de leis, o cronista Mário Prata pede ao presidente da república o reconhecimento de seu ofício: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". A capacidade de síntese do cronista é extraordinária: nunca se disse tanta bobagem em frase tão curta.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pede ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Cita a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tem que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. Este é o sonho do cronista. Mário Prata viu um Potosi a céu aberto no bolso do contribuinte. Quando um político tasca a mão no dinheiro público, a imprensa horroriza-se e fala em ética. Mas se um membro da guilda sugere ao presidente da República que confisque dinheiro do contribuinte para seu bem-estar, chama-se a isto defesa da literatura nacional.

Diga-se de passagem, esta corrupção é florescente no Brasil. De fato, o Estado não compra 40 mil exemplares de cada editora. Mas através das leituras impostas em currículos e vestibulares, obriga a compra forçada dos Machados, Clarices Lispectors e Lygias Fagundes Telles da vida. Autores que, não fosse esta imposição da máfia editorial, há muito estariam gozando do merecido repouso eterno. Há quem defenda a privatização da Petrobras. Ninguém fala em privatização do livro. Pois o livro, no Brasil, é estatal.

Existe ou não existe a profissão de escritor no Brasil? Primeiro ter-se-ia de perguntar se escritor é profissão. Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestava com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta o autor - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que o autor francês fala de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena. Ou o que um político paga. Fernando de Morais, por exemplo, está imerso na biografia desse caráter sem jaça, Antônio Carlos Magalhães.

No canta quien tiene ganas, sino quien sabe cantar - já dizia Martín Fierro. Escreve quem quer escrever, quem sente ter algo dizer e não consegue ficar calado. Regulamentar a profissão de escritor seria o primeiro passo para regulamentar também a de poeta. Ou a profissão escultor ou pintor. Não mais é poeta quem cria poemas, nem escultor quem esculpe, nem pintor quem pinta. Mas quem está registrado, em algum cartório, como tal. Você pode imaginar um ator que não consegue provocar um mísero aplauso em um teatro, mas é ator? Esse ator sem platéia já existe neste país incrível, pois a profissão foi regulamentada.

A pretensão não é nova, só o arguto cronista do Estadão parece desconhecê-la. O projeto que regulamenta a profissão de escritor está em tramitação na Câmara Federal há pelo menos dois anos. O absurdo foi proposta do deputado Antônio Carlos Pannunzio, por sugestão de membros da Academia Sãoroquense de Letras, de São Roque, interior de São Paulo. O projeto estabelece as normas para o exercício da profissão, nos mesmos moldes da de jornalista. Só não exige curso superior. Aprovada a lei, escritor não será mais quem escreve, e sim quem possui certificado de habilitação profissional. Ao melhor estilo do finado mundo socialista, este certificado seria fornecido exclusivamente pelo sindicato ou por associações profissionais da categoria.

Um jornalista pede ao governo para extorquir do contribuinte o dinheiro de seu sustento. Mário quer prata. Volto a Fierro:

Si la vergüenza se pierde
jamás se vuelve a encontrar.


(22/07/2002)

terça-feira, junho 23, 2009
 
AINDA OS FALSOS COZINHEIROS


Caro Janer!

Neste momento, diversas faculdades estão oferecendo cursos superiores em gastronomia, culinária e assuntos relativos a indústria da hospitalidade e turismo.

O disparate: para conseguir vagas de recepcionista ou concierge, assim como cozinheiros ajudantes e/ou chefes de partida, o candidato deve ser graduado em hotelaria, turismo ou gastronomia.... Assim, para entregar chaves, cortar cebolas ou grelhar bifes, a "graduação" já está sendo exigida...

Para analfabetos, aculturados, portadores de certificados de primeiro e segundo grau, artífices, artistas e artesãos, sobraram as vagas inerentes às suas habilidades, mais as de presidente da República, legisladores e dirigentes sindicais.

Abraço,

Raul Almeida

 
AINDA OS DIPLOMAS


Se o curso de Filosofia me deu algo na vida, foi a Baixinha. Foi lá que a encontrei, em meus 17 anos, e até hoje viveríamos juntos se ela já não tivesse partido. Mas não é disto que pretendia falar. Recém-formada, fez concurso para auditor fiscal. Na época, exigia-se para o ofício apenas curso superior. Poderia ser até de Educação Física. Mas tinha de ter diploma.

Formada em Filosofia, ela trabalhou a vida toda com legislação tributária. Fez cursos na área e o resto aprendeu no dia-a-dia. Aposentada, trabalhou no Conselho de Contribuintes em Brasília e deu assessoria a um escritório de advocacia em São Paulo. Seus pareceres no Conselho produziam jurisprudência. Certo dia, inconformada com a impossibilidade de assinar petições por não ser formada em Direito, tomou uma decisão: “Vou fazer um curso de Direito”.

Dei força. Mas não acreditei que conseguisse cursá-lo. Quem passou a vida toda trabalhando com leis não conseguiria suportar a precariedade de um curso de Direito. Ela persistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa – e cara – Mackenzie. Naturalmente, foi aprovada. No primeiro dia de aula, voltou chorando. “Vi aquelas menininhas todas, tive vergonha. Não consegui entrar”.

Eu a abracei. “Bobagem, Baixinha. Vai em frente. Daqui a duas ou três semanas, a tia estará liderando as menininhas”. Ela voltou. Não conseguiu agüentar dois dias.

No primeiro dia, um professor de Direito Constitucional perguntava às menininhas:

- O Direito é uma emanação da so... da so... da so?

Resposta alguma.

- Da socie... da socie?

- Da sociedade - respondeu alguém mais atilado.

No segundo dia, o mesmo professor perguntava;

- Ao Direito dos Costumes chamamos direito con... direito con... con?

Ni pensar.

- Consue... consue... consue?

Silêncio total.

- Consuetudi... consuetudi... consuetudi?

Muito menos.

- Consuetudinááááário – completou o professor, feliz com sua sapiência.

Como eu previra. No terceiro dia de aula, a Baixinha era ex-aluna de Direito.

Só para concluir: o mundo está cheio de profissionais extremamente competentes em diversas áreas, sem o devido curso exigido pelas corporações. Ainda ontem, aqui em São Paulo, cerca de 200 estudantes protestavam contra a decisão do STF de acabar com a obrigatoriedade de diploma para jornalista. Obrigatoriedade que não existe em país algum do mundo. Só neste Brasil dominado por sindicatos.

É triste ver jovens, que supomos ainda não corrompidos em decorrência da luta pela vida, empunhando bandeiras corruptas. Já chegaram à senectude, sem passar pela maturidade.

 
BRASIL NÃO TEM CURA


Janer

Não seria má idéia exigência de diploma apropriado (de curso talvez a ser criado) pelo menos para candidatos a administrar o país, estados e municípios. Certamente haveria uma generalizada elevação do nível cultural dos nossos políticos e aspirantes. Você poderia dar o pontapé inicial numa campanha nesse sentido, mesmo que o Reinaldo venha a copiá-lo.

José Darcy Custódio



Não digo curso, Custódio. Mas todo governante ou deputado deveria ter pelo menos noções de como administrar uma folha de pagamentos e de como fazer leis. "Leis são como salsichas; é melhor não saber como são feitas" - dizia von Bismarck. Neste país, vereador acha que postura municipal pode derrubar uma lei. Isso quando não é o Congresso que elabora leis manifestamente inconstitucionais e só depois vai discutir se são constitucionais ou não. Os atuais legisladores não têm noção do que seja lei maior e lei menor, coisa que se aprende já no primeiro ano de Direito. Não é de surpreender que o Judiciário esteja atulhado por 70 milhões de processos anuais.

Analfabeto deveria ser proibido de candidatar-se. Mas que fazer quando o tal de povo elege e reelege - e re-reelegerá, se lhe for permitido - um analfabeto? Brasil é doença que não tem cura.

 
DIPLOMAS E OFÍCIOS


Caro Janer,

A coisa assume nuances de romance kafkiano. Estava em uma academia que nós, moradores do prédio (moro num apartotel) resolvemos equipar uma academia e cuidar do corpo, cada um contratou seu "personal" e seguia suas orientações. Eu, já adepto do culto ao físico e tendo formação médica, preferi orientar a mim mesmo sem ajuda de educador físico.

Não há de ver que apareceram fiscais do conselho regional dos educadores físicos para nos notificar por não termos professor disponível em uma academia em nossa casa? Quando vi o teor da conversa com o zelador, convidei-os a se retirarem por entrarem em ambiente privado sem autorização e lhos perguntei se, caso espirrassem, teriam de recorrer imediatamente aos meus serviços sob risco de notificação caso usassem um lenço sem minha supervisão. Eles ficaram constrangidos e se retiraram. Pois é, querem nos dizer até o que fazer com nossos corpos.

Meu pai enfrentou um processo e ganhou ao rechaçar o achaque do conselho dos economistas. Ele tocava empresa com a minha mãe, de fomento mercantil e cobrança. Como essas empresas estão, na maioria das vezes, servindo de fachada para agiotas, eles acharam que, tendo culpa no cartório, meu pai abaixaria a cabeça. Deram com os burros n'água e ainda tiveram de se desculpar.

Gostei do critério proposto pelo senhor: cursos que precisem de laboratórios e prática devem ser preservados (acho que nem precisaria, mas, enfim...), cursos de giz e quadro-negro, diploma é "valor agregado".

Fernando C. Albuquerque

segunda-feira, junho 22, 2009
 
ATÉ QUANDO A FOLHA MANTERÁ
SENADOR LADRÃO COMO COLUNISTA?



Em discurso na tribuna do Senado, o senador Arthur Virgílio acusou o ex-diretor da Casa, Agaciel Maia, da prática de crimes. Disse que ato secreto é uma das coisas mais nojentas do Parlamento e que Agaciel tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em chantagem. Sua missão seria a de "transformar em secretos atos que não tinham por que serem secretos”. Foi mais longe: "Tenho convicção de que tem gente com mandato, tem senador por trás, tem gente por trás dele. (...) A ética genérica, nesta Casa, morreu, Sr. presidente. Esse ético surfa de maneira antiética na política da ética, esse ético genérico não aponta o nome, o CPF desse ladrões. Eu estou aqui apontando dois ladrões: o Sr. Zoghbi e o Sr. Agaciel. Eu dou os nomes. Arranjo dois inimigos, mas não volto atrás, haja o que houver."

O senador tucano não ousou, no entanto, nominar o senador por trás dos dois ladrões. Só deu nome aos guris de recados. O senador não se preocupa em arranjar dois inimigos pequenos. Mas se acovarda ao omitir o ladrão grande, o “senador por trás”. A ética genérica, esta inovação epistemológica do valente senador, demonstrou não ser nada mais que um acordo entre canalhas.

Na Folha de São Paulo de hoje, na privilegiada página dos editoriais, Fernando de Barros e Silva vai mais longe. Em artigo onde denuncia a velharia velha dos Sarney e a nova velharia representada pelo lulismo, afirma que o Brasil virou uma espécie de democracia senhorial e Lula se tornou seu maior avalista. E conclui: “Lula e o neopatrimonialismo sindical que ele sustenta levaram isso ao paroxismo. Não importa que seja ladrão, desde que seja meu amigo”.

Sem querer querendo, sem dizer dizendo, Barros e Silva chamou José Sarney de ladrão. Pergunta que se impõe: até quando a Folha de São Paulo manterá como colunista o senador ladrão?

 
UNIVERSIDADES (IV)


Falava das cinco universidades que freqüentei e do pouco que me deram. Mas houve uma sexta, e a mais importante, a universidade das ruas, dos bares e dos amigos. As leituras que foram importantes em minha vida, não as encontrei na academia. Raramente se falava de Nietzsche em meu curso de Filosofia, e quando se falava era despectivamente. Não fiz Letras, mas conheci alunos de Letras. De modo geral, desconhciam Cervantes, Dostoievski, Swift ou Orwell. Mas conheciam os Machadinhos da vida. Ora, direis, estás falando dos cursos de Letras orientados à Literatura Brasileira. Pode ser. Mas não se conhece, nem se pode emitir juízo de valor sobre uma literatura nova sem conhecer as antigas.

Em José Hernández, o poeta maior do continente, fui iniciado por meu pai, homem nascido no campo e sem acesso algum à cultura urbana. Gaúcho de Livramento, nasci embalado pelas sextilhas hernandianas. Nas madrugadas lá da Linha, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor do fogo no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro.

Chamavam-no de Canário. Não era homem de Letras. Se lhe perguntassem onde ficava a Europa, meu pai diria sem vacilar: “é lá pras bandas de Passo Fundo”. No que não deixava de ter razão. Vista de um homem postado em Livramento, a Europa fica sem dúvida para os lados de Passo Fundo. No entanto, conhecia de cor centenas de versos de Fierro. Não sei se ouvira falar de Hernández. E aqui se revela o milagre da grande arte: como no Quixote, o personagem acaba por matar o autor. Fierro, para os gaúchos da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, era um índio vago que por ali havia passado, sempre lutando para defender seu pelego. Talvez até mesmo estivesse vivo, sempre fugindo de “la polecía”.

José Hernández, nuestro vecino, terá sido um dos raros poetas a sentir, ainda em vida, a ventura de ter sido morto pelo personagem que criou. Antes mesmo da publicação da segunda parte do poema, já era conhecido como Martín Fierro: “Soy un padre al cual le ha dado su nombre su hijo”, costumava dizer. Ao morrer, um jornal de La Plata deu-lhe a maior honra que pode merecer um escritor:

HA MUERTO EL SENADOR MARTÍN FIERRO

Apesar de ter criado um poema de impossível tradução, o “senador Martín Fierro” tem suas coplas traduzidas nas mais importantes línguas do Ocidente. Entre nós, apesar de ter vivido em Santana do Livramento, onde teria iniciado seu poema, é desconhecido. Pergunte hoje, leitor, em um curso de Letras no Brasil, quem conhece José Hernández. Ninguém conhece. Nos anos 90, ministrei um rápido curso sobre o poema, na Universidade de Passo Fundo, cidade do Rio Grande do Sul que se orgulha de sua gauchidade. Nenhum de meus alunos ouvira falar de Fierro.

Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém com os primeiros versos de Martín Fierro e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é. Não se pode confundir este personagem ligado à pampa e ao cavalo, com seres urbanos nascidos no asfalto.
Em algum final de noite dos anos 90 em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,


Ela deu a senha:

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.


Era gaúcha, sem dúvida alguma. O mesmo eu não poderia afirmar das centenas de pessoas que encontrei em meus dias de Porto Alegre. Pois o poema maior que o continente latino-americano deu à literatura universal, de um modo geral, é desconhecido pelos habitantes da capital de um Estado que se pretende gaúcho.

Alguns anos antes da reunificação alemã, estive em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma estudante de Letras de origem italiana, nascida no Rio Grande do Sul. Ela não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito no exílio do senador argentino em Santana do Livramento, achou que eu delirava. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois lá estava a verdade: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam – nada mais, nada menos – a Homero. Acabei sendo convidado para uma palestra na Freie Universität Berlin. E repeti com gosto, para os Deutschen, aquelas coplas que um dia ouvi, não na universidade, mas da boca de meu pai, em um galpão no Upamaruty.

Em Paris, quando defendia uma tese de doutorado em Literatura Comparada, tive a honra de ter no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês. Tradução a meu ver inviável. Mas - diz-se entre tradutores - se traduzir é impossível, traduzir também é necessário.

Tive ainda um outro reencontro com estes versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Em Las Palmas de Gran Canaria, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem deslumbrava platéias canarinas recitando a saga de Fierro.

domingo, junho 21, 2009
 
MOZART FALSO MÚSICO


De Gaspa, recebo:

Seguindo a lógica do Dimenstein, logo logo quem quiser ser ator ou diretor de teatro ou televisão, vai precisar de um curso de Artes Cênicas, cineasta vai precisar faculdade de Cinema, e só vai poder trabalhar como pintor quem tiver concluído um curso superior em Artes Plásticas. Todo cantor de boteco vai precisar de um diploma em Música, deejays vão precisar de curso superior de Produção Musical. Não demora muito, para se ser prefeito, o candidato vai precisar de um curso de Administração com habilitação em Gestão de Cidades.


É por aí, Gaspa. No que diz respeito aos músicos, os corporativistas já cercaram a profissão. Você não é músico só porque domina um instrumento. Segundo a lei nº 3857, de 1960, só podem exercer a música como atividade profissional aqueles que forem filiados à Ordem dos Músicos do Brasil, se submetam ás provas de qualificação da guilda e retirem sua carteira profissional. Para obter a carteira de músico profissional, o candidato deve fazer uma prova escrita de conhecimentos básicos de teoria musical e tocar duas partituras (uma de sua escolha e outra determinada pela banca examinadora). Uma vez obtida a carteira, você tem de pagar uma anuidade.

Ou seja, se Mozart fosse um brasileirinho, seria um falso músico caso não se submetesse ao exame e à extorsão da sapientíssima Ordem dos Músicos do Brasil. Quanto a ser presidente, senador ou deputado, não precisa habilitação nenhuma. Qualquer analfabeto pode.

 
FALSOS COZINHEIROS


Ao comentar a comparação de jornalistas a cozinheiros, feita pelo ministro Gilmar Mendes, escrevi ontem: “Espero que não tenha dado uma boa idéia à guilda dos candidatos a cozinheiro. Porque neste país onde até uma profissão inútil como a de ascensorista é regulamentada, não seria de espantar que algum político em busca de clientela pretendesse regulamentar a de cozinheiro”.

Não foi preciso esperar muito. Hoje, na Folha de São Paulo, Gilberto Dimenstein escreve: “O presidente do STF, Gilmar Mendes, ao justificar o fim do diploma, comparou o jornalista ao cozinheiro. Também não acredito que um cozinheiro, no futuro, prospere sem diploma de ensino superior”.

Já há quem fale em falsos jornalistas para referir-se aos jornalistas sem diploma. Pelo jeito, dentro em breve, quem cozinhar sem ter curso superior será um falso cozinheiro.

sábado, junho 20, 2009
 
SOBRE CULINÁRIA E JORNALISMO


Em São Paulo, convivi com três amigos que eram cozinheiros de escol e me propiciaram grandes momentos à mesa. Jornalista, sempre invejei quem sabe cozinhar. É ofício que exige arte e longo aprendizado. Não eram profissionais da cozinha, estes amigos. Ganhavam a vida com outras profissões. Mas tinham como pedra de toque o queimar panelas. Em um de nossos ágapes, comparávamos nossos ofícios. Eu dizia não saber se tinha ganho mais amigos ou mais inimigos no jornalismo. “Eu só faço amigos” – disse-me um deles. “Meu ofício é dar prazer”.

Não deixava de ter razão. Ocorre que era cozinheiro nas horas vagas. Fosse profissional e fizesse concorrência a um restaurante, certamente não faria apenas amigos. Seja como for, cozinhar é agradar. Tive experiência disto nos primórdios da Internet, quando discutia nos newsgroups da Usenet. Eu navegava pelos grupos soc.culture, envenenados de ideologia. Os participantes destilavam ódio e invariavelmente acabavam se insultando. Certo dia, visitei grupos gastronômicos. Lá era tudo paz e amor, pessoas indicando bons restaurantes, trocando boas receitas e louvando o vinho e a bona-chira. E aqui vai uma diferença fundamental entre jornalismo e culinária. Se culinária tem por finalidade agradar, jornalismo o mais das vezes desagrada.

Se algo me espanta nesta discussão sobre o fim da exigência do diploma para jornalistas, é ver pessoas que julgam que esta exigência sempre existiu, em toda a parte e desde o início dos tempos. Ora, como a jaboticaba, só existe no Brasil. (E se só existe no Brasil e não é jaboticaba, boa coisa não há de ser). Além do mais, existe há apenas 40 anos. O jornalismo brasileiro tem dois séculos de existência e nestes últimos dois só se exigiu diploma a partir de 1969. Os defensores do diploma esquecem – ou preferem não lembrar – que a famigerada lei não foi fruto de reivindicações de classe, mas imposição ditatorial de uma junta militar. Brasileiro adora reserva de mercado. Se ela é cria de uma ditadura, pouco importa. Bem-vinda seja.

O ministro Gilmar Mendes tem sido execrado por ter comparado jornalistas a cozinheiros ao justificar seu voto: “Um excelente chef de cozinha certamente poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima o Estado a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área”, afirmou. Espero que não tenha dado uma boa idéia à guilda dos candidatos a cozinheiro. Porque neste país onde até uma profissão inútil como a de ascensorista é regulamentada, não seria de espantar que algum político em busca de clientela pretendesse regulamentar a de cozinheiro.

O ministro foi tido como alguém que rebaixou a profissão de jornalista, o que está longe de ser evidente. Um chef competente, hoje, é mais disputado e melhor pago do que milhares de jornalistas. Existem cursos de culinária, é verdade. Mas cozinheiros se formam é na cozinha, junto ao fogo e às panelas. Da mesma forma, o jornalista. Faculdade pode ajudar. Mas quatro anos de curso não dão a formação de três meses de redação.

As notícias chegam hoje e o jornal tem de sair ainda hoje, para estar nas bancas amanhã cedo. Jornalista trabalha contra o relógio. Este relógio não existe nos cursos universitários, onde não há deadline. Estudante algum de jornalismo experimenta a tensão do fechamento de um grande jornal. Esta adrenalina só existe na redação. O jornalista até pode falhar em meio a um fechamento. Se falhou é porque não era jornalista.

“Com o fim do diploma e sem outras normas que regulem a atividade profissional, quais os critérios que serão utilizados para a contratação de jornalistas?” – pergunta-se uma militante da guilda. Ora, moça, os critérios que sempre regularam a profissão em todos os tempos e em todos os países: informação, capacidade de análise, boa redação, velocidade e agilidade mental.

Pessoalmente, considero o jornal uma espécie de milagre cotidiano. As informações chegam em massa e desordenadamente à redação. Cabe ao redator ordená-las, colocá-las em boa forma e dentro de um espaço preciso. Algo como a confecção de um soneto. O espaço jornalístico é um leito de Procusto. A informação tem de caber – com uma margem de poucos toques a mais ou menos – dentro de um espaço exato. É uma das raras profissões em que não se leva tarefa para casa. Feito o jornal, feito está. Amanhã é outro dia. Outros fatos, outros problemas, outras soluções. Este outro dia acaba no mesmo dia. Na manhã seguinte, voilà: o milagre está nas bancas.

Argumentam os corporativistas que, sem universidade, faltaria ética aos jornalistas. Como se ética fosse coisa que se adquirisse em salas de aula. O mundo está cheio de canalhas com diploma superior. Ética não é coisa que se aprenda na escola. O profissional é honesto – ou não é. Ser honesto é qualidade pessoal e intransferível e não virtude que possa ser ensinada.

“Nós, que cursamos jornalismo, vamos agora jogar fora nosso diploma?” – pergunta-se um outro aprendiz de sofista. Não precisa jogar fora. O diploma pode até ser um trunfo. Só que agora este universitário terá de competir com milhares de outras pessoas também habilitadas ao jornalismo. Os cursos de jornalismo produziram milhares de desempregados. Antes de 69, não havia jornalista desempregado. Era jornalista quem trabalhava como jornalista. Depois de 69, jornalista era quem cursava jornalismo. Ocorre que no mercado não havia lugar para as fornadas de jovens despejadas pelas faculdades.

Os defensores de privilégios já estão se mobilizando para voltar aos anos de obscurantismo. Que uma velha raposa lute para preservar seus privilégios, até que entendo. O triste é ver jovens defendendo o direito à corrupção. Culinária e jornalismo pertencem ao território das artes. Arte não é coisa que professor ensine.

 
CURIOSA GENTE


Está provocando celeuma a decisão de Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, de tornar pública a relação com rendimentos dos 162 mil funcionários públicos da Prefeitura. Apesar de os cargos terem seus salários normalmente divulgados em editais de concurso, os funcionários não gostaram de vê-los divulgados aos quatro ventos. De onde se deduz que alguma diferença – provavelmente substancial – deve existir entre a remuneração do cargo e o que é percebido pelo ocupante do cargo.

Quarta-feira passada, o juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública de SP, Luiz Sérgio Fernandes de Souza, ordenou que a gestão Gilberto Kassab suspendesse imediatamente a divulgação dos salários. Segundo a Folha de São Paulo, há centenas de casos de funcionários que receberam mais que os R$ 24,5 mil dos ministros do Supremo Tribunal Federal, cujos ganhos constituem o teto previsto na Constituição.

Dia seguinte, o presidente do Tribunal de Justiça paulista, Roberto Antonio Vallim Bellocchi, derrubou a liminar que proibia a publicação dos salários na Internet. Segundo a Fasp-PMSP - federação que representa os servidores – a divulgação põe em risco a segurança dos servidores e cria constrangimentos. Ontem, o desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), concedeu liminar que volta a impedir a publicação dos vencimentos de servidores municipais.

Na Suécia, a cada ano publica-se um livro, não com os salários, mas com os impostos pagos por todo cidadão. Ora, toda tributação é proporcional à renda. Se você acha que seu vizinho está pagando pouco imposto para manter casa secundária, carro, iate e alto padrão de consumo, o Estado o estimula a denunciá-lo ao fisco. Pois este vizinho tem boas chances de estar cometendo um crime lesa-igualdade.

Ninguém acha que a divulgação de seus impostos põe em risco sua segurança ou lhe cria constrangimentos. Curiosa gente, esta nossa. Gosta de ostentar status, desde que ninguém saiba o quanto ganha para manter status.

 
JOVENS E JÁ CANALHAS?


Leio nos jornais que estudantes de jornalismo estão fazendo passeatas de protesto contra a decisão do STF que determinou o fim do diploma universitário como condição para o exercício do jornalismo. Em um primeiro momento, diríamos que são jovens canalhas, contaminados pelo clima de podridão moral que assola o país. Reproduzem a canalhice de José Sarney e demais senadores, que garantem reserva de mercado para seus parentes e apaniguados. Se canalhice, no século passado, era quinhão da velharada, hoje é exigência de jovens. Que entram na vida já reivindicando o direito a corrupções paternas.

Concedo um crédito à juventude. Provavelmente não são jovens canalhas. Prefiro acreditar que são jovens manipulados por velhos canalhas de guildas controladas por velhos comunistas.

sexta-feira, junho 19, 2009
 
UNIVERSIDADES (I)


Mal o STF considerou inconstitucional a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, já há deputados pretendendo reinstituir a lei espúria. O Brasil adora regulamentações. Não sei se o leitor sabe, mas neste país até a profissão de flanelinha, aquele marginal que lhe extorque dinheiro para não riscar seu carro, já foi regulamentada. Por nada menos que um dos próceres do regime militar, general Ernesto Geisel. Y a las pruebas me remito.

LEI Nº 6.242, DE 23 DE SETEMBRO DE 1975
Publicada no DOU de 24/09/1975

Dispõe sobre o exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º O exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, em todo o território nacional, depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho Competente.

Art. 2º Para o registro a que se refere o artigo anterior, poderão as Delegacias Regionais do Trabalho celebrar convênio com quaisquer órgãos da Administração Pública Federal, Estadual ou Municipal.

Art. 3º A concessão do registro somente se fará mediante a apresentação, pelo interessado, dos seguintes documentos: etc, etc, etc.

Art. 6º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Brasília, 23 de setembro de 1975; 154º da Independência e 87º da República.

Ernesto Geisel
Arnaldo Prieto


Só faltou exigir curso superior. Outra profissão que se pretendeu regulamentar foi a de astrólogo. Em 2006, o senador Artur da Távola – pra variar, velho comunista – apresentou projeto neste sentido. Vigaristas de outras áreas de auto-ajuda, os psicanalistas chegaram a pretender regulamentar suas vigarices. Como a ética entre canalhas é poderosa, deixaram a pretensão de lado. Qualquer lei que fosse promulgada beneficiaria alguma seita, em prejuízo das demais. Melhor deixar como estar.

Mas se flanelinhas, astrólogos e psicanalistas não fazem falta a ninguém, jornalista faz falta. E comunicação não é coisa que se aprenda em universidade. Durante séculos, foi jornalista quem exercia o jornalismo. De repente, três patetas tupiniquins, levados ao poder pelo Exército, decidiram há quarenta anos que jornalista só pode ser quem tem diploma de jornalista. Um imenso mercado de trabalho abriu-se para incompetentes que jamais pisaram numa redação e pretendem ensinar como se faz jornalismo. O espantoso é que, em menos do espaço de uma vida, há pessoas que acreditam que jornalismo não se pode fazer sem diploma. Ora, desde 1808, desde o Correio Braziliense, impresso em Londres pelo jornalista Hipólito da Costa, o jornalismo brasileiro foi feito por pessoas que jamais pisaram em cursos de jornalismo.

Em meio a isto, uma velha discussão: para que serve a universidade? Pode servir para muita coisa e para nada. Nas áreas científicas, que exigem laboratórios, aparelhos, cadáveres para dissecação, telescópios, pesquisas químicas, biológicas ou físicas, é óbvio que universidade é fundamental. O mesmo não se pode dizer de cursos de giz e quadro negro. Como aluno, passei por cinco universidades, em Santa Maria e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e em Estocolmo, Paris e Madri. Isso sem falar em mais quatro anos de magistério, na graduação e pós-graduação, na Universidade Federal de Santa Catarina. Com a experiência de quem gramou por quase duas décadas em bancos universitários, tentarei fazer um balanço do que recebi destas universidades.

 
UNIVERSIDADES (II)


Comecei fazendo Direito e Filosofia, simultaneamente. Direito em Santa Maria e Filosofia em Porto Alegre. Filosofia porque pretendia – ingênuo atroz – descobrir a tal de Verdade. Direito, porque estava ciente do velho refrão latino, primum vivere, deinde philosophare. Primeiro viver, depois filosofar. Com a Filosofia, pensava eu então, entendo o mundo. Com o Direito sobrevivo. Não deu nem uma nem outra. Gostei de estudar os filósofos gregos e até mesmo os da Escolástica e Patrística, se é que estes podem chamar-se de filósofos. Depois, a Filosofia se tornou mais ou menos ininteligível. O cogito cartesiano sempre me soou como uma solene bobagem. Duvidar da própria vida e apoiar-se na dúvida para ter certeza de que existo? Isto só passa se dito por um francês. Fosse dito por um pedritense, seria o palhaço da cidade. Ou andou bebendo demais.

Tive dois professores na Filosofia que me foram úteis. Leônidas Xausa, de Ciências Políticas, e Dagmar Pedroso, de Lógica. Xausa me introduziu na filosofia política de Platão, Pedroso na lógica de Aristóteles e mesmo na dos estóicos e megáricos. Os demais, pura perda de tempo. O mais prestigioso professor do curso da URGS era Gerd Bornheim. Para ele, filosofia era apenas um pretexto para viajar da dialética platônica à dialética marxista, como se uma tivesse algo a ver com a outra. Gerd foi um embuste bem sucedido. Como dominava o francês e o alemão, suas aulas não passavam de monótonas leituras das masturbações intelectuais de Hegel, Sartre, Husserl e Heidegger. Foi meu professor durante quatro anos. Durante quatro anos dormi em suas aulas e chegava a roncar no fundo da sala. Para escândalo da Baixinha, que me cutucava nas costelas para acordar.

Enfim, devo algo a Bornheim. Graças a ele, abandonei definitivamente os estudos de Filosofia. A epifania ocorreu quando ele afirmou: “o objeto da Filosofia, hoje, é buscar o objeto da Filosofia”. Chega, disse eu para mim mesmo. E mergulhei na literatura, que pelo menos não estava preocupada com o objeto da literatura. Minhas veleidades filosóficas terminaram no terceiro ano do curso. Fui até o final para quem ninguém dissesse, quando eu criticasse a Filosofia, que a criticava por não ter conseguido terminar o curso.

Em Direito, as primeiras disciplinas foram importantes. Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Civil, Penal. Entendi como funcionava um Estado de Direito. Quando cheguei ao direito adjetivo, Processo Penal, Processo Civil, me pareceu estar lendo Kafka. Desde logo senti que não suportaria ganhar minha vida discutindo arabescos colaterais. Por outro lado, nunca me acostumei ao terno e gravata. Quer dizer, se quisesse sustentar-me sem violentar a mim mesmo, teria de buscar o pão por outras vias. Certa vez, em uma discussão em aula, citei Kafka. O professor me perguntou: é aluno desta faculdade?

Minhas veleidades jurídicas terminaram também no terceiro ano do curso. Fui até o final para quem ninguém dissesse, quando eu criticasse o Direito, que o criticava por não ter conseguido terminar o curso.

Com dois canudos inúteis na mão – inúteis pelo menos para mim – tive de trabalhar como vendedor de enciclopédias e contador de perfumes e dentifrícios nas farmácias e supermercados, para ganhar meu pão. Até o dia em que se abriu uma brecha no jornalismo. Fosse obrigatório o diploma naqueles dias, hoje certamente eu seria mais desses seres amargurados com a própria vida. Com todas as restrições que hoje faço ao jornalismo, foi profissão onde consegui navegar sem maiores desconfortos.

 
UNIVERSIDADES (III)


Na Suécia, no Kursverksamheten da Universidade de Estocolmo, aprendi sueco. Foi aprendizado útil, que me levou a dominar mais um idioma e a conhecer um outro universo. Lá, me descobri como alguém que podia escrever e traduzir e conheci gentes de outros povos. Foi boa universidade, pelo menos em parte. Durante meio ano, freqüentei o curso de cinema da universidade, arte que me seduzia na época. Logo descobri que era curso puramente teórico e sairia de lá sem saber como abrir uma lata de negativos. Esta foi a universidade inútil.

Outra, também inútil, foi a Sorbonne Nouvelle. Em 77, recebi do governo francês uma bolsa para mestrado em Letras Francesas e Comparadas. Letras Francesas eu conhecia bem. Já das Comparadas, jamais ouvira falar. Tudo bem, lá em Paris me informo sobre o assunto. Ocorre que eu não tinha pretensão alguma a seguir estudos teóricos de Letras. Queria, isto sim, curtir suas ruelas, vinhos, queijos, catedrais, mulheres, e com estas intenções viajei. Lá, transformei o mestrado em doutorado. Se a condição para curtir as ruelas, vinhos, queijos, catedrais e mulheres de Paris era defender uma tese, defendamo-la. Fiz apenas quatro seminários, de quatro horas cada um. Ou seja, durante quatro anos, tive dezesseis horas de aula. Quatro destas horas foram fundamentais. Ministradas por Mme. Fraisse, versavam sobre os escritores e o comunismo, de 1930 a 1953. Com a bibliografia fornecida por Mme. Fraisse, entendi melhor o século, a Europa e mesmo o Brasil. Aquelas quatro horas compensaram os quatro anos.

Conclui minha tese, um ensaio sobre Ernesto Sábato e Albert Camus, que esclarece, sem masturbações teóricas, o itinerário espiritual dos dois escritores. Mas o grande aprendizado não foi este. E sim o convívio diário com a cultura francesa, com seus jornais e literatura, com sua arquitetura e história, com os franceses e particularmente com as francesas. Minha tese foi apenas uma hora de aula de um curso muito maior. Importante também foi o contato com gentes de diferentes culturas. Conheci muito do mundo eslavo e mais ainda da América Latina. Aqui no Brasil, não encontramos a América Latina. O continente se reúne em Paris.

Em Madri, fiz curso no ICI, Instituto Cultural Iberoamericano, ligado à Universidade Complutense. Seis meses jogados fora. Tínhamos uma carga horária pesada, cinco horas de aula por dia, e a obrigação de redigir uma tese ao final do semestre. As teses, com apresentação, réplica e tréplica, eram defendidas em no máximo dez minutos. Ou seja, era uma farsa. Como nunca gostei de teatro, me recusei à farsa. Fui o único aluno, em trinta anos de curso, a não apresentar a tal de “tese”. Escrevi carta aos diretores do curso, onde dizia mais ou menos o seguinte:

- Senhores, quando vamos estudar no exterior, defendemos duas teses. Uma é aquela acadêmica, que nem mesmo a banca lê em sua íntegra, e que fica pegando poeira no silêncio das bibliotecas. Outra é a que defendemos no convívio com colegas, nos bares e restaurantes de Madri, nos vilarejos e cidades da Espanha. Na leitura diária dos jornais do país, no contato com seu povo, com sua gastronomia, sua música e seus vinhos. A primeira tese, me recuso a defendê-la, por inútil. A segunda, eu a defendi com brio nas bodegas de Madri, Barcelona, Santiago, Toledo, Segovia, Ávila, Cuenca, Ronda, Salamanca. Esta segunda tese será importante para meu trabalho e vida futura. Ao ICI, muchas gracias. Y buena salud a Ustedes y todos sus familiares.

A última frase não é gratuita. Quando morei em Madri, constava do formulário de pedido de permanência à polícia. Soube mais tarde que, depois de minha carta, os diretores do curso reformularam a exigência da malsinada tesina.

Resumindo: as universidades que fiz em Estocolmo, Paris e Madri foram importantes, não só para minha vida, como para minha profissão. Mas foram cursos que as cidades – não as universidades – ofereceram. De um jornalista, a quem se pede informações sobre o mundo, é absurdo exigir horas de traseiro preso a um banco.

quinta-feira, junho 18, 2009
 
PAÍS SE LIBERTA DE 40 ANOS
DE OBSOLETISMO GRATO
A COMUNISTAS E MILITARES



Ou seja: após toda uma categoria profissional ter sido submetida por quatro décadas a uma lei estúpida, o Supremo Tribunal Federal finalmente descobre que a dita lei era inconstitucional. A Fenaj, no site da guilda, mente descaradamente ao afirmar que a decisão "pôs fim a uma conquista de 40 anos dos jornalistas e da sociedade brasileira". Conquista dos jornalistas e da sociedade brasileira coisa nenhuma! A obrigatoriedade do diploma foi arbítrio da ditadura, para melhor controlar a informação. O famigerado decreto-lei de 69 era um presente do céu aos comunistas, que jamais admitiram em seus regimes a livre expressão do pensamento.

Nestes anos todos, que foram quarenta e nos quais li jornais todos os dias, jamais vi um jornalista investigar como é tratada a condição do jornalista nos demais países do mundo. Se investigasse, descobriria que em país algum do Ocidente se exige diploma para o exercício da profissão. Há escolas de jornalismo na França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos? Claro que há. Mas ninguém precisa passar por elas para expressar seu pensamento nas páginas de um jornal. Exigir diploma é limitar a liberdade de pensamento, como se só pudesse pensar quem tem diploma. Na França, a definição legal do ofício é singela: é jornalista todo aquele que tira a maior parte de seu provento do jornalismo. E ponto final.

Servem para algo as escolas de jornalismo? Em tese, claro que servem. Ensinam técnicas de comunicação. Mas ensinam em quatro anos nada que um foca não aprenda em três meses de redação. Não ensinam história, ciência, religião, letras. De que serve a um jornalista dominar técnicas de comunicação se não sabe o que comunicar? Como pode escrever sobre medicina, saúde, economia, artes, engenharia, urbanismo, catolicismo ou mesmo marxismo um jovem que recém saiu de uma escola de jornalismo? Um curso de jornalismo teria sentido se fosse pós-graduação. Após dominar determinada área do conhecimento, o candidato a comunicador aprenderia técnicas de comunicação. Nem por isso precisaria ser obrigatório para o exercício da profissão.

Sem falar que, nestes dias de Internet, toda tentativa de regulamentação é ipso facto obsoleta. A blogosfera está disputando firme leitores com a imprensa antiga. Boa parte do público dos jornais está se deslocando para a leitura de blogs, a tal ponto que os jornais em papel já temem por suas sobrevivências. Se antes era jornalista quem tinha um jornal para escrever, hoje é jornalista qualquer pessoa que quiser sê-lo. Com uma vantagem considerável sobre a imprensa escrita: pode escrever o que quiser. Bem entendido, isto não implica mentir ou atentar contra a honra alheia à vontade. Para coibir tais abusos, existem os códigos Civil e Penal.

Por mais independente que seja um jornal, sempre tem suas áreas proibidas. Neste jornal, não se pode publicar acusação nenhuma, por exemplo, contra a Máfia do Dendê. Neste outro, é proibida qualquer alusão condenatória a José Serra. Num outro, não se pode dizer uma palavrinha contra Evaristo Arns, o cardeal vermelho. Em outro, é proibido qualificar como vigaristas os pastores evangélicos. Isso sem falar nos milhares de jornais do país que dependem de verbas estatais e não ousam fazer a menor crítica aos desmandos do governo. Veja a Caros Amigos, sem ir mais longe, que se pretende imprensa independente. Se você acha que a revista vai denunciar as corrupções da Petrobras, espere sentado. Porque a Caros Amigos é patrocinada, entre outras estatais, pela Petrobras. Seus redatores podem até criticar o governo. Mas jamais atentarão contra a existência e boa saúde da galinha de ovos de ouros.

Já o blogueiro, este é soberano em seu blog. Desde que seu blog não dependa, é claro, de vinculação a jornais ou empresas. Pretenderia algum legislador regulamentar o exercício do ofício de blogueiro? Seria tão ridículo como foi regulamentar o de jornalista. Com este ridículo, convivemos quatro décadas.

Ainda que tardia, a decisão do STF liberta o Brasil de um obsoletismo grato a marxistas e militares e põe um pé do país – pelo menos um pé – no círculo dos países onde a imprensa é livre.