¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 02, 2010
 
AMOR OU REUMATISMO?
LÉSBICA OU PEDERASTA?


Ainda a respeito da pederastia. Leitor acha que eu deveria saber que a língua evolui, que certas distorções passam a ser assimiladas. Ora, lido com palavras há mais de quatro décadas e tenho perfeita consciência disto. Vou mais longe: o homem é que dá nome às coisas. O leitor ainda acha que estou muito preocupado com o significado de pederastia.

Ora, quem está preocupado com isso não sou eu, mas os espanhóis, tanto que estão modificando seus dicionários. Reformar dicionários é empreitada de vulto. Apenas comentei a preocupação dos espanhóis. O problema é exclusivo deles, por terem introduzido no idioma duas acepções de pederastia que as demais línguas não contemplam: a de abuso de menor e a de sodomia. Como essas duas acepções não existem no português, para nós o problema não se coloca. A primeira destas acepções decorre das calúnias que a Igreja católica forjou historicamente em relação aos gregos, para acusá-los de pedofilia. O feitiço virou contra o feiticeiro. Zeus não joga mas fiscaliza.

A segunda acepção terá a mesma origem, já que na Grécia, pederastia, antes de ser comportamento sexual, era uma questão de educação. Minha preocupação é com as palavras. Adoro pesquisar etimologias e às vezes me surpreendo lendo dicionários, pulando de uma palavra a outra. Sempre que se discute como dar nome às coisas, gosto de recorrer a Platão. Sua visão é definitiva.

No diálogo intitulado Crátilo, ou sobre a justeza dos nomes, este considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem - ou são criadas, descobertas ou inventadas - e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém-nascida, a batiza. O significado das coisas não é o manancial do bosque, mas o poço escavado pela mão do homem, diz Camilo José Cela, comentando Platão. "O animal doméstico e familiar do qual há muitas espécies e todas ladram, poderia ter-se chamado lombriga, e o che muove il sole e l'altre stelle, de Dante, poderia chamar-se reumatismo, se assim os homens o quisessem".

As definições mudam com o tempo. O conceito de dialética de Platão nada tem a ver com o de Hegel. Amor era uma coisa para os gregos, outra para os cristãos e é totalmente outra para os contemporâneos. Já li num antigo Littré esta definição de amor: sentimento que une pessoas de sexo diferente. Em edição posterior, já se lia: sentimento que une duas pessoas. Se amor um dia foi sentimento que se dedicava a uma pessoa, hoje é sentimento que se dedica a animais e mesmo a objetos. Assim sendo, se alguém quiser chamar pedofilia ou amor entre mulheres de pederastia, está em seu direito. O que não se pode perder é a origem da palavra.

Camilo José Cela, prêmio Nobel de Literatura – de quem tive a honra de traduzir duas novelas – é outro homem fascinado pelas palavras. Como lexicógrafo, produziu pelo menos duas obras interessantes. Na primeira, Rol de Cornudos, classifica a generosa contribuição ibérica aos 144 tipos de cornudos primevos, já definidos por Fourier. Na segunda, Enciclopedia del Erotismo, discorre em quatro gordos tomos sobre o assunto. Em seu quarto volume, encontro esta didática explanação sobre a origem da palavra. E do fenômeno.

Pederastia - Enquanto amor pelos efebos é, como pensava Goethe, tão velha como a humanidade; no entanto, suas raízes históricas como entidade social no Ocidente, as encontramos na Antiga Grécia. Em Esparta, capital do mundo dório, a relação entre o homem maduro e o mancebo, nunca a criança, tinha o status de lei, posto que cumpria com uma função primordial na pólis: a de transmitir a virtude guerreira. De fato, nos Estados dóricos prevaleceu a instituição do homem tutor, conselheiro e amigo de um mancebo, e se considerava violação dos deveres a atitude contrária, isto é, que o adulto não se encarregasse de algum jovem; inversamente, era uma vergonha para o rapaz não ter sido honrado com a amizade de um homem.

Embora este costume dórico não tenha se estendido por toda Grécia, era natural o tratamento de mancebos e homens em muita estreita comunidade de vida. Em Atenas, por exemplo, o amor pelos efebos tinha caráter de Eros pedagógico e a pederastia era um caminho para o aprendizado do rapaz e um pilar básico da estrutura política; repare-se no secundário papel da mulher, que não era senão a mãe dos filhos e a administradora do lar, enquanto o homem era considerado o eixo da vida intelectual e também, de certa forma, da vida erótica, diretamente vinculada ao ideal da beleza.

A pederastia grega – também chamada amor dório e amor socrático – assim como as formas ritualizadas de algumas sociedades primitivas, só pode ser entendida em sua moldura social e cultural; a forma posterior, isto é, a pederastia a partir de Roma, teve um caráter meramente sensual, durante longos anos tolerado, que na Idade Média e por influência judaico-cristã adquiriu o qualificativo de pecado nefando. Se nos atemos à comparação histórica e ao princípio de que tudo o que é humano nos diz respeito, o mundo grego pode ajudar-nos a afugentar muitos dos fantasmas herdados de alguns dogmas talvez pouco humanos.


Se a maioria dos dicionaristas quer eliminar a associação de pederastia à sodomia, sem no entanto renunciar à associação com pedofilia, o Diccionario del Español Actual, da Aguilar avança em sentido contrário. Quer cunhar a expressão mulheres pederastas. É um direito dos senhores de uma língua.

A decisão só serve para espalhar confusão na imprensa, escolas e línguas vizinhas. Vai contra a univocidade dos termos. O problema foi a entrada errada no vernáculo espanhol. Quando você sai de Madri, pederastia significa uma coisa. Chega a Lisboa, a mesma palavra quer dizer outra. Diga-se o mesmo da França, Itália ou Brasil.

Para que facilitar quando se pode complicar?