¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, junho 11, 2010
 
Revisitando Porto Alegre:
EU, O OURIÇO



É um ouriço, dizia uma moça em um bar. É só chegar perto dele e leva espinho. Referia-se, é claro, a este cronista.

Desta opinião participam, segundo algumas cartas que recebo, não poucos leitores. Um deles, por exemplo, acusava-me há pouco de “buscar polêmica a qualquer preço, na ânsia triste e desesperadora da busca do sucesso. Ocorrência que vem se repetindo monocordiamente, que não deixa de assustar as pessoas que ainda nutrem um pouco de respeito e amor pelo próximo. Sim, porque me dás a nítida impressão de um poço profundo e escuro, tamanha a tua necessidade de apoio e carinho. Por que tanto desafeto, tanta raiva do mundo, Cristaldo?”

O leitor continua, por várias linhas, acusando-me de atacar pessoas gratuitamente. Esta acusação, não é de hoje que a ouço. Não passa dia sem que alguém me pergunte: que tens contra fulano, para pichá-lo com tanta contundência? Vamos por partes. Começo pela última das acusações.

Não tenho nada contra ninguém. Jamais ataquei pessoalmente quem quer que fosse nesta coluna. Invisto, isto sim, contra idéias e atitudes de determinadas pessoas. Esgrima é arte que me fascina, lastimo não encontrar mais esgrimistas com espírito realmente esportivo. Posso gritar “touché!” a um adversário e convidá-lo para um chopinho mais tarde. É pena que meus oponentes, de modo geral, se recusem ao chopinho. Gostaria de ouvi-los, auscultar suas emoções.

Sou agressivo no debate, é verdade. Mas agrido idéias, jamais pessoas. Claro que essas idéias sempre partem de pessoas – e de onde mais poderiam partir? Além disso, sempre que cito nominalmente alguém em minhas crônicas, ofereço meu espaço para sua resposta. Não responde quem não quer. Ou quem não tem argumentos.

“Por que tantos desafetos, tanta raiva do mundo, Cristaldo?” Nada disso, meu caro. Poucas pessoas serão tão fascinadas por este mundinho como eu, me entristece a simples idéia de um dia deixá-lo. Justamente por isso, por abominar a morte, busco viver intensamente meus dias. Gratifica-me imensamente o convívio de meus amigos, chega inclusive a atrapalhar-me. Pois em vez de disciplinar-me e tratar de meus livros, prefiro bater papo, discutir, ouvir piadas e experiências, música e canções.

Caminhamos para o naufrágio, dizia-me um bom amigo. O naufrágio é inevitável. Só nos resta uma esperança: confraternizar. Na marcha rumo ao abismo, sempre é possível voltar atrás um bocado, dar-se as mãos, conversar, rir. Desta confraternização no naufrágio faço minha filosofia de vida. Mais que meu amigo de todos os dias, fascina-me o amigo que ainda não conheço. Adoro meus futuros conhecidos, e esta perspectiva sempre me mantém de antenas em riste, à espreita da mínima senha.

Tenho pena do homem que se encerra no círculo afetivo de sua própria família ou grupo. Homem de poucos amigos em verdade não tem amigos. Homem que ama uma só mulher em verdade não ama ninguém. Vejo o mundo como uma laranja. E pretendo chupá-la até o bagaço.

“... na ânsia triste e desesperadora do sucesso”. Não, não busco o sucesso. Se o buscasse, não escreveria como escrevo. Não sou burro, seria muito fácil para mim usar minha inteligência para fazer demagogia. Bastaria que tomasse sutis posições de esquerda, desse força às inócuas manifestações estudantis, louvasse cartunistas, endossando as idéias supostamente de vanguarda de nossa época. Conheço a fórmula do sucesso, o que não constitui nenhum mérito, qualquer vigarista medianamente ilustrado a conhece. Me recuso a utilizar essa fórmula. Prefiro ser fiel ao que penso. Não busco da vida honrarias, mas paz interior. Mentir ao público seria para mim muito fácil, se a isso me propusesse. Mas jamais conseguiria mentir a mim mesmo.

Quanto àquela moça, que naquela noite, naquele bar, definiu-me como ouriço, sugiro tente afagar-me, não ao arrepio, mas no sentido dos espinhos. Que não se surpreenda ao ver-me derretido como manteiga. Todo cavalo tem seu lado de montar.

Porto Alegre, Folha da Manhã, 17 junho 1977)
Comentário 2010 – Em verdade, quatro décadas depois, pouco ou nada mudou. Se mudou, não notei.