¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, junho 09, 2010
 
Revisitando Porto Alegre:
FUGA PARA O ORIENTE



Em um ímpeto de ascetismo – coisa que não me ocorre todos os dias – resolvi fugir por algum tempo às frituras e molhos da cozinha ocidental. Nenhuma impulsão mística ou propensão a filosofias orientais levou-me a um restaurante macrobiótico. Apenas curiosidade e a vaga intenção de mudar, por alguns dias, o regime dietético.

Chego lá e, em meio a senhores pálidos que mastigam solenemente cinqüenta vezes – nada menos – cada bocado de alimento, sob cartazes que insistem em “fale menos e mastigue mais”, reencontro uma velha amiga, adepta incondicional da cozinha macrobiótica.

Sentei à sua mesa. Enquanto eu hesitava em levar à boca certas substâncias para mim desconhecidas e de aspecto nada convidativo, a moça me falava das virtudes da culinária macrô, como dizia. Sentia-se bem melhor após ter começado com a nova dieta e há muito não consultava psicanalista nem se internava em clínicas.

Ora, entendo perfeitamente que as madames zoraidas da vida substituam, com maior eficácia e a mais baixo preço, os psicanalistas. Sempre que um amigo me fala em recorrer à análise, sugiro logo Madame Zoraida. Cobra menos e diz mais rápido o que ele quer ouvir, sem meter Freud no meio. Mas nunca me ocorrera que a macrobiótica fosse sucedâneo eficaz da psicanálise ou quiromancia. Me interessei pelo assunto e a moça começou a explicar-me o que comia.

- Este prato, por exemplo, o Dieta 7, é puro Yin.

Como achei que não havia entendido bem, perguntei para certificar-me:

- Yin?

- Yin – repetiu a moça -. Ou não conheces o que sejas Yin-Yang?

Bem, isso eu conhecia. A doutrina do Yin-Yang é uma das Cem Escolas do período clássico da filosofia chinesa. Surge na história ao lado do taoísmo, mohismo, da escola de Chuang-tse e a dos chamados dialéticos. Yin e Yang são princípios opostos e ao mesmo tempo complementares. Yin é o masculino, a luz, a firmeza, a ação. Yang é o feminino, a escuridão, a suavidade, a passividade. Enquanto o Yin cria, o Yang se detém e fixa, sendo ambos necessários para o equilíbrio do universo. Quando o Yin avança demasiadamente, o Yang o detém para equilibrá-lo. Como se vê, o porco-chauvinismo tem sólidas raízes no pensamento oriental, enquanto muitas feministas acham que é coisa de latinos.

- Mas o que tem a ver uma doutrina das Cem Escolas do período clássico da filosofia chinesa com o Dieta 7? – perguntei -. Ou com tua tranqüilidade espiritual?

A moça começou a se enfurecer aos poucos.

- Pô, cara, esse prato me faz bem. Qual é a tua?

- Se faz bem, ótimo. Só quero saber porque meter Yin e Yang no meio.

Me respondeu que em algo precisamos acreditar. Que não é possível andar contestando tudo a torto e a direito. Que se fosse para criticar o Dieta 7, que não sentasse outra vez em sua mesa.

Senti que seu continuasse digredindo sobre filosofias orientais, ia receber um prato cheio de puro Yin na cara. Decididamente, macrobiótica ainda não substitui com eficácia Madame Zoraida ou o psicanalista. A tranqüilidade da moça era apenas epidérmica.

Estamos assistindo, nestes últimos anos, uma crescente fuga para o Oriente. Jovens e gente não tão jovem, insatisfeitos consigo próprios e com os valores que lhes são oferecidos, buscam tranqüilidade no yoga, karatê, zenbudismo, macrobiótica, seicho-no-iê. Não me parece que a paz esteja no Oriente. Mas dentro de cada um.

Em algo precisamos acreditar, dizia a moça. Concordo. Mas por que não em ti mesma, minha cara?


(Porto Alegre, Folha da Manhã, 18 outubro 1976)

Comentário 2010 – Em verdade, quatro décadas depois, pouco ou nada mudou.