¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sábado, julho 17, 2010
 
KALOCAINA - IV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Não costumo perder tempo, nem durante a ginástica matutina, nem em qualquer outro momento, mas naquela manhã creio ter-me apressado um pouco mais na ducha e vesti rapidamente o uniforme de trabalho para poder estar logo em prontidão, quando a porta de meu laboratório se abriu e o chefe de controle entrou.

Naturalmente era Rissen. Exatamente como eu pensara. Se estava decepcionado, espero ao menos que isso não se notasse exteriormente. Existia uma pequena possibilidade de que fosse um outro, no entanto era Rissen. E quando parou em frente a mim, insignificante em sua postura, quase vacilante, tornou-se claro que eu não o detestava porque talvez existisse algo a descobrir entre ele e Linda, mas pelo contrário, abominava a idéia de uma relação entre ele e Linda justamente por tratar-se de Rissen. Qualquer um outro, mas não ele. Empecilhos outros, Rissen certamente não poria em minha carreira, era por demais ingênuo para fazê-lo. Mas de minha parte, preferia ter um chefe de controle menos ingênuo e mais capcioso, com que eu pudesse medir forças – e ao mesmo tempo receber mais deferência de sua parte. De Rissen não se podia esperar deferência, era diferente dos demais, excessivamente ridículo. Não era muito fácil de expressar o que faltava ao homem, mas se empregamos a palavra cadência, isto dá uma certa imagem da coisa. A atitude decidida, o modo claro e rígido de falar, o único natural e digno em um cidadão-soldado adulto, não se encontravam em Rissen. Podia tornar-se subitamente nervoso, balbuciar uma palavra sobre a outra; tinha movimentos involuntários e cômicos de mãos, e ao falar fazia longas e despropositadas pausas, absorto em pensamentos; lançava palavras descuidadas que apenas um iniciado atenderia. Podiam até mesmo ocorrer contrações animalescas involuntárias em sua face, em minha – um subordinado – presença, quando ouvia falar em algo que o interessava especialmente. Por um lado, eu sabia que ele, como cientista, tinha qualidades brilhantes; por outro, apesar de tratar-se de meu chefe, não podia ignorar que existia uma desarmonia entre seu valor como cientista e seu valor como cidadão-soldado.

– Muito bem – disse ele, fleugmaticamente, como se o horário de trabalho fosse sua propriedade privada. – Muito bem. Recebi um relatório muito minucioso sobre tudo isto aqui. Creio inclusive tê-lo entendido perfeitamente.

E começou a repetir meu relatório em seus pontos mais importantes.

– Meu chefe – atalhei impacientemente –, já tomei a liberdade de encomendar cinco pessoas do Serviço Voluntário de Cobaias. Elas esperam sentadas no corredor.

Olhou-me duramente com seus olhos pensativos. Tive a impressão de que mal enxergava. Ele era realmente estranho.

– Pois bem, chame um deles então – disse. Parecia estar pensando alto, e não expressando uma ordem.

Apertei a campainha da sala de espera. Entrou um homem com um braço na tipóia; parou após a porta, cumprimentou e identificou-se como n° 135, do Serviço Voluntário de Cobaias.

Um tanto irritado, perguntei se era realmente possível envia uma cobaia sadia. Durante meu trabalho como assistente num dos laboratórios de medicina, acontecera cair em mãos de meu chefe uma mulher com toda a atividade glandular desajustada por uma experiência anterior, e lembro muito bem de que isto modificou totalmente o resultado de suas pesquisas. Eu não queria expor-me a risco semelhante. Além disso, sabia que, segundo regulamento, devia-se insistir energicamente no direito de receber cobaias sadias: o costume de continuamente enviar as mesmas cobaias, com igual instrução, permitia a existência de uma espécie de favoritismo, de forma que mártires voluntários e inteligentes jamais tinham, durante longos períodos, ocasião de demonstrar coragem e obter pequenos ganhos extras. Um chamado como este era visivelmente mais honroso que a maioria dos casos do Serviço Voluntário, e a rigor devia ser considerado como sua própria recompensa. Em todo caso, os honorários eram sempre calculados por baixo, em consideração às muitas indenizações extras por ferimentos, o que fazia parte da profissão.

O homem aprumou-se e pediu desculpas de parte de sua seção. De fato, não dispunham de outro para enviar. Precisamente agora trabalhava-se febrilmente nos laboratórios bélicos e o Serviço Voluntário de Cobaias vivia em campos de batalha dia e noite, até o último homem. Pessoalmente, o 135 estava em excelente estado, exceto quanto a um ferimento de guerra com complicações na mão esquerda, e em sua defesa queria dizer que embora devesse estar curado há muito tempo – nem mesmo o químico que o tratou conseguiu explicar por que ainda não o estava de fato – ele se considerava praticamente sadio, e esperava que a pequena lesão provocada por gás não atrapalhasse a experiência.

De fato, não atrapalharia, e isto tranquilizou-me.

– Não é de suas mãos que precisamos, mas de seu sistema nervoso, disse-lhe. E posso lhe afirmar que a experiência não será dolorosa, não lhe causará lesões, nem mesmo passageiras.

135 aprumou-se novamente, como podia. Ao responder, sua voz lembrava uma fanfarra:

– Lamento que o Estado não exija sacrifícios ainda maiores de mim. Estou disposto a tudo.

– Naturalmente, disso não duvido, respondi seriamente.

Eu estava convencido de que ele sentia o que dissera sentir. Minha única objeção era ter acentuado excessivamente seu heroísmo. Também um cientista em seu laboratório pode ser corajoso, embora nem sempre possa demonstrá-lo, pensei. Ademais, a ocasião era oportuna: o que ele dissera sobre a atividade febril nos laboratórios bélicos era um novo sinal do começo de uma guerra. Um outro, que eu observara para mim mesmo, mas não queria discutir para não ser considerado pessimista e agitador, era de que a comida em geral piorara nos últimos meses.

Sentei o homem numa cadeira confortável, posta ali especialmente para minha experiência; arregacei sua manga, desinfetei-lhe o braço e introduzi a pequena seringa, repleta de seu líquido esverdeado. No instante em que n° 135 sentiu a picada, sua face contraiu-se de forma a quase tornar-se bela. Devo reconhecer que julguei estar vendo um herói à minha frente. Logo as cores de sua face empalideceram um pouco, o que certamente não tinha relação com o líquido esverdeado, que não poderia ter agido tão rapidamente.

– Como se sente – perguntei, encorajando-o, enquanto o conteúdo da seringa diminuía. Sempre conforme o regulamento, eu sabia perfeitamente ser recomendável interrogar a própria cobaia tanto quanto possível, isto lhe dava um sentimento de igualdade a matinha de certa forma acima das dores.

– Obrigado, como sempre! – respondeu n° 135, mas falando com visível lentidão, como para ocultar o tremor dos lábios.

Enquanto permanecia sentado e esperava pelos efeitos, estudamos sua ficha, que ele deixara na mesa. Ano de nascimento, sexo, tipo racial e físico, temperamento, tipo sanguíneo, particularidades genealógicas, doenças (em não pequeno número, naturalmente, todas contraídas em experiências). Escrevi o necessário em meu novo e cuidadosamente elaborado fichário. Surpreendi-me com o ano de nascimento que, no entanto, estava correto, e lembrei que já durante meus tempos de assistente ouvira falar, e havia constatado, que as pessoas do Serviço Voluntário de Cobaias pareciam em regra dez anos mais velhas do que realmente eram. Feito isso, voltei-me para n° 135, que começava a contorcer-se na cadeira.

– Então?

O homem riu infantilmente, perplexo.

– Estou muito bem assim. Nunca estive tão bem. Mas o que sinto é medo...

O momento chegara. Escutávamos atentos. Meu coração pulsava forte. E se o homem não dissesse absolutamente nada? Se ele não tivesse consigo nada a esconder? E se o que ele estava em vias de dizer não fosse nada especial? Como convencer então meu chefe de controle? E pessoalmente, como estaria eu seguro? Uma teoria, por mais bem fundada que seja, é e permanece teoria enquanto não é aprovada. Eu poderia ter-me enganado.

Aconteceu algo então para o que eu não estava preparado. O homem, grande e maciço, começou a soluçar, desamparado. Escorregou do assento, ficou suspenso nos braços da cadeira como um farrapo, e estremeceu lentamente, ritmadamente, em longos gemidos. Não consigo expressar quanto isso era penoso, não sabia como manter meu corpo nem meu rosto. O autocontrole de Rissen – com isto devo concordar – nada deixava a desejar. Se ele sentia tão mal quanto eu, escondia isto melhor.

A situação durou alguns minutos. Eu me envergonhava diante de meu chefe, como se fosse responsável por fazê-lo testemunhar tais cenas. No entanto, não podia de forma alguma saber antecipadamente o que as cobaias tinham a revelar. Nem eu, tampouco nosso laboratório, tinha uma atitude oficial ante eles: eram enviados para uma central onde permaneciam disponíveis para todos os institutos correspondentes.

Finalmente ele se acalmou. Os soluços diminuíram e ele ergueu-se, tomando uma posição um pouco mais digna. Impaciente para dar fim à dolorosa cena, dirigi-lhe a primeira pergunta que me ocorreu:

– Como se sente?

Ele dirigiu-nos o olhar. Via-se muito bem que estava consciente de nossa presença e nossas perguntas, embora talvez não se desse conta exatamente de quem éramos. Quando respondia, dirigia-se nitidamente a nós, mas não como se se dirigisse a seus chefes, mas como se falasse a ouvintes ocultos e anônimos:

– Sou um desgraçado, suspirou. Não sei por que fazer. Não sei como suportar.

– Suportar o quê? – perguntei.

– Isto tudo. Tenho muito medo. Sempre tenho medo. Não precisamente agora, mas em outras circunstâncias, quase sempre.

– Medo das experiências?

– Exato; das experiências. Precisamente agora, não sei de que tenho medo. Doa mais ou doa menos, fique-se mutilado ou em perfeito estado novamente, morra-se ou continue-se vivendo – que razões existem para ter medo? Mas eu sempre tenho medo; ridículo. Por que se sente tanto medo?

O torpor inicial desaparecera e fora substituído por uma nítida embriaguez e descontração.

– E depois – continuou, sacudindo ebriamente a cabeça –, todos sentem mais medo ainda do que dizem. Tu és covarde, diriam, e isto é pior que qualquer outra coisa. Tu és covarde. Eu não sou covarde. Não quero ser covarde. Ademais, que importância teria se eu realmente o fosse? Se perco o lugar... Certamente encontraria um outro. Eles sempre podem utilizar a gente em algum lugar. Mas eles não terão tempo de jogar-me fora! Sairei antes. Voluntariamente, do Serviço de Cobaias. Voluntariamente, como entrei.

Ensombreceu-se novamente, não por sua desgraça, mas por um surdo amargor.

– Eu os odeio – continuou inesperadamente, com os dentes cerrados. – Eu os odeio quando entram em seus laboratórios despreocupadamente, sem precisar temer ferimentos ou dores e consequências previstas e imprevistas. Depois, voltam para a esposa e os filhos. Vocês acham que alguém como eu pode ter uma família? Tentei casar-me uma vez, mas não deu, vocês entendem muito bem por que não deu. A gente se torna excessivamente ocupado de si neste trabalho. Nenhuma mulher consegue aguentar. Odeio todas as mulheres. Elas nos atraem, mas depois não conseguem suportar-nos. São falsas. Eu as odeio, exceto minhas colegas do Serviço de Cobaias, é claro. As mulheres do Serviço de Cobaias não são mais exatamente mulheres, não há por que odiá-las. Nós que estamos lá, não somos como os outros. Também somos chamados de cidadãos-soldados, mas como são as coisas de fato? Devemos morar na Casa, não somos mais que lixo...

– Meu chefe – disse eu –, o senhor quer que eu lhe aplique mais uma dose?

Esperava que ele dissesse não, pois o homem me era profundamente antipático. Mas Rissen anuiu, e eu nada podia fazer senão obedecer. Enquanto introduzia lentamente o líquido esverdeado no sangue de n° 135, disse-lhe asperamente:

– Você mesmo salientou muito bem que se chama voluntário o Serviço de Cobaias. De que se queixa? É desagradável ouvir um homem adulto reclamar de suas próprias atitudes. Um dia você se inscreveu, sem coação alguma, como todos os outros.