¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 22, 2010
 
KALOCAINA - IX

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




– A história toda de espionagem é mentira – repeti, sem poder conter um sorriso, embora em verdade não me parecesse existirem razões para sorrir. – A confiança de seu marido, ontem, não era confiança. Ele agiu assim sob nossas ordens.

Por um segundo pareceu-me que ela iria desmaiar novamente, mas então tornou-se rija e aprumou-se. Permaneceu frágil e petrificada no meio da sala sem dar um passo para frente ou para trás. Eu nada mais tinha a dizer, mas não conseguia desviar meus olhos dela. Assim como estava, arrasada e imóvel como uma coisa morta, sem uma gota sequer de sua feliz segurança de há pouco, despertou-me viva piedade. Era uma fraqueza para se sentir vergonha, mas aquilo era forte demais para mim. Esqueci o chefe de polícia, esqueci Rissen, transbordava de um obscuro desejo de fazê-la entender que eu sentia o mesmo que ela sentia agora. Emergi deste doloroso segundo de torpor com a voz do chefe de polícia:

– Acho que a mulher deve permanecer presa. A conspiração era evidentemente simulada, mas a cumplicidade não poderia ser mais real. Por outro lado não podemos condená-la sem mais nem menos, isto precisa ser melhor ordenado legalmente.

– Impossível! – gritou Rissen desconcertado. – Isto é uma experiência, trata-se de um funcionário nosso, quero dizer, de sua mulher...

– Como poderia eu levar isto em consideração? – perguntou Karrek rindo.

Por uma vez ao menos fiquei totalmente do lado de Rissen.

– Uma prisão como esta acabará inevitavelmente sendo conhecida – disse eu –, mesmo que despeçamos seu marido e o coloquemos em outro lugar, o que não é fácil no caso de cobaias, debilitados de saúde como ficam, mesmo neste caso a história será divulgada, e um novo recrutamento para profissão, que já é mau, será então uma catástrofe. Por todas essas razões, peço-lhe que a deixe livre!

– Você exagera – respondeu Karrek. – A história, obviamente, não precisa espalhar-se. Por que seu marido não poderia ser colocado em outro lugar? Poderia ainda muito bem sofrer um acidente ao voltar para casa.

– Não creio que seja sua intenção tirar-nos uma de nossas poucas e preciosas cobaias – queixei-me. – A mulher não é mais perigosa: outra vez ela não aceitará a confiança de alguém tão facilmente. Ademais – acrescentei, num súbito ataque –, se o senhor prende nossa cobaia, isso significa que o senhor já considera a kalocaína como um método legal de interrogatório, e o senhor há de convir que ainda é muito cedo para isso, meu chefe...

O chefe de polícia uniu os olhos numa estreita linha e sorriu fria, mas gentilmente, e disse como quem fala a uma criança:

– Vê-se que o senhor tem o dom da palavra e da lógica. Em consideração ao laboratório, renuncio à prisão, não tenho prazer algum pessoal nela. Preciso ir agora (olhou para seu relógio), mas voltarei para observar novas experiências.

Ele se foi, e a mulher teve suas algemas abertas e foi solta. Suspirei aliviado, tanto, por ela como pelo laboratório. Ao ser conduzida, caminhava dura como sonâmbula e pela segunda vez um pensamento horrível percorreu-me o cérebro: e se eu estivesse enganado, se minha kalocaína demonstrasse ter os mesmos efeitos secundários danosos que suas precursoras, talvez nem sempre, mas em sistemas nervosos extremamente delicados? Mas me acalmei, e nenhum de meus maus pressentimentos ocorreu. Através de seu marido, soube mais tarde que ela parecia perfeitamente normal, embora um pouco mais reservada que antes. Se bem que reservada sempre fora, acrescentou ele.

Quando ficamos a sós novamente, disse Rissen:

– Ali você tinha o germe de outra espécie de comunidade.

– Comunidade? – perguntei surpreso. – Como?

– Nela, na mulher.

– Ah – disse ainda mais surpreso. – Mas esta espécie de comunidade, sim, o senhor tem razão, meu chefe, talvez se possa chamar a isso de germe de uma comunidade, mas não mais que isso! Este tipo de comunidade existia já na Idade da Pedra! Em nossos dias é apenas um rudimento, e um rudimento pernicioso. Não é assim?

– Hummm.

– Mas este caso é precisamente um exemplo dos mais didáticos de até onde se chega se as pessoas são excessivamente ligadas umas às outras! – tentei persuadi-lo. – Quebra-se então a mais importante das ligações, a ligação ao Estado!

– Hummm – disse ele novamente. E um instante depois: - Talvez não fosse tão idiota viver na Idade da Pedra.

– Uma questão de gosto, bem entendido. Se prefere a luta de todos contra todos ao Estado perfeitamente organizado, construído com o esforço coletivo, então talvez seja agradável viver na Idade da Pedra. Não é exatamente um pensamento agradável saber que existem homens de Neanderthal entre nós...

Eu havia pensado exatamente nele, mas tive um certo receio ao dizê-lo, e acrescentei:

– Naturalmente, refiro-me àquela mulher.

Pareceu-me que ele me voltava as costas para disfarçar um sorriso irônico. Pensei então no quanto deixamos escapar quando irritados, mesmo sem kalocaína alguma.