¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 19, 2010
 
KALOCAINA - VI

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Depois de examinarmos mais cinco cobaias antes do meio-dia, e mais duas outras, cada uma mais ensimesmada e miserável que a outra, eu me sentia completamente arrasado e invadido por um desespero crescente, mesclado de horror. Será apenas a ralé que busca o Serviço Voluntário de Cobaias? – perguntava-me. Mas eu sabia perfeitamente não ser assim. Sabia serem exigidas nobres qualidades de quem lá desejasse ingressar; exigia-se coragem, espírito de sacrifício, desprendimento, determinação, antes de alguém se dedicar a uma tal profissão. Tampouco podia ou queria imaginar que a profissão destruísse quem a escolhera. Mas a idéia que tive dos sentimentos privados das cobaias era desoladora.

N° 135 havia sido covarde e escondido sua covardia. Tivera ao menos um belo gesto, ao manter sagrado o grande momento de sua vida. Os demais eram tão covardes quanto ele, alguns em maior ou menor grau. Existiam os que se queixavam, não só de suas funções, ferimentos, doenças e medo, como de seus destinos auto-escolhidos, como ainda também de um amontoado de insignificâncias, as camas da Casa, a nutrição cada vez pior (eles também haviam observado isso!) negligências na assistência médica. Podia-se muito bem imaginar ter havido também um grande momento em suas vidas, mas que soçobrara irremediavelmente. Talvez não tivessem despendido tão grande força de vontade como n° 135 para mantê-lo à tona. Verdade seja dita: por pouco heróico que n° 135 parecesse sob o efeito da kalocaína – quando mais tarde eu o comparava aos outros, ele começava a impor-se a mim ao menos como um herói relativo. Mas, além disso, existia uma série de coisas que me causavam repugnância e temor nas outras cobaias que utilizamos no primeiro momento: bizarrices mais ou menos desenvolvidas, fantasias lúgubres, libertinagens cultivadas em silêncio. Havia alguns que não se beneficiavam da Casa, eram casados e tinham residência própria; expunham seus problemas conjugais de forma deplorável e ao mesmo tempo ridícula. Em sua, nada se podia esperar do Serviço Voluntário de Cobaias, nem dos cidadãos-soldados do Estado Mundial, nem mesmo da espécie biológica humana em geral.

E para cada um Rissen prometera solenemente que os valiosos segredos estavam em boa guarda. Não me era fácil engolir isto.

Após um caso especialmente grave – o último antes do meio-dia –, um ancião, que divagava sobre impulsões homicidas, embora obviamente nunca houvesse cometido algo, nem tivesse jamais ocasião de fazê-lo, não pude deixar de dar livro curso a meu penoso estado de espírito de dirigi-me a Rissen com um bastante justificado pedido de desculpas pelas cobaias...

– Você acha realmente que eles são ovos podres isolados? – perguntou Rissen em voz baixa.

– Certamente, todos são caricaturas de homicidas potenciais – respondi –, mas parecem ser mais miseráveis que o permissível.

Esperei uma aprovação. Isto teria me aliviado e distanciado de toda aquela situação embaraçosa. Quando observei que ele não participara de minha intensa aversão, tudo se tornou duplamente embaraçoso. Mesmo assim a conversa continuou enquanto nos dirigíamos à sala de refeições.

– O permissível, sim, o permissível – disse Rissen. Mudou de tom e assunto e continuou: – Esteja contente por não termos encontrado santos e heróis da espécie permissível; suspeito que eu me sentiria menos convencido então. Além do mais, tampouco encontramos um verdadeiro criminoso.

– Sim, mas veja este último, este último! Admito que ele nada fez de mau, e não creio que chegue a cometer nenhum dos crimes sobre os quais divaga, velho como é e estando sob os cuidados da Casa, onde a vigilância certamente não terá falhas. Mas imagine se fosse mais jovem e tivesse a possibilidade de colocar em prática suas intenções! Em tais casos minha kalocaína torna-se oportuníssima. Com ela pode-se prever e prevenir muitas atrocidades que agora eclodem subitamente, sem que possa vê-las aproximarem-se...

– Desde que se encontre as pessoas certas. Isto tampouco é fácil. Pois você certamente não está querendo dizer que todos deveriam ser examinados?

– Por que não? Por que não todos? Sei que se trata de um sonho distante, mas mesmo assim! Prevejo um tempo em que todos os preenchimentos de postos serão precedidos de um teste com a kalocaína, como agora são precedidos de provas psicotécnicas. Desta forma, não apenas a capacitação profissional de uma autoridade torna-se publicamente conhecida, mas também seu valor como cidadão-soldado. Sonho inclusive com um exame anual com a kalocaína de cada um dos cidadãos-soldados...

– Seus planos futuros não são dos menores – insinuou Rissen – Mas isso exige um dispositivo imenso.

– O senhor tem toda razão, meu chefe. Isto exigirá um dispositivo enorme. Seria necessário um novo órgão público com legiões de funcionários, os quais seriam removidos das atuais organizações militares e industriais. Antes de estabelecer esta nova ordem, precisamos obviamente atingir o aumento populacional pelo qual lutamos durante tantos anos, mas do qual ainda não vimos sinal algum. Talvez pudéssemos esperar por uma nova e grande guerra de conquista que nos tornasse mais ricos e produtivos.

Mas Rissen balançava a cabeça.

– De forma alguma. Basta chegar-se à conclusão de que seu plano é o mais necessário de todos, o único necessário, o único capaz de aliviar nossas superiores, sim, digamos nossas superiores apreensões, e você pode ficar certo de que este órgão público será criado. Uma vez criado, nosso nível de vida baixará, o ritmo de trabalho será aumentado e o grandioso sentimento de tranquilidade e segurança total substituirá o que perdemos.

Eu não estava muito certo se Rissen falava sério ou ironizava. Por um lado, eu deplorava a idéia de um baixo nível de vida futuro. (Somos ingratos, pensei, somos ávidos de prazeres e egoístas, mesmo quando se trata de algo superior às satisfações individuais). Por outro lado, sentia-me lisonjeado ao pensar que a kalocaína poderia um dia desempenhar tal papel. Mas antes que pudesse responder, Rissen acrescentou, em outro tom:

– Com toda certeza, será este o último refúgio de nossa vida privada a ser devassado.

– Mas isto não importa – disse eu alegremente. – A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais antes podiam esconder-se. Vejo agora claramente que a grande comunidade se aproxima de sua culminância.

– Comunidade – repetiu ele lentamente, como se duvidasse.

Eu nunca tinha tido tempo para responder. Estávamos em frente à porta do refeitório e precisávamos separar-nos para ocupar nossos lugares em diferentes mesas. Parar e concluir nossa conversa era impossível, em parte porque isso suscitaria interrogações, em parte porque estávamos no caminho da corrente de homens famintos por seus almoços. Mas enquanto me dirigia a meu lugar e sentava, pensei em seu tom dubitativo e me irritei.

Ele sabia certamente o que eu queria dizer, não era uma descoberta pessoal minha, a comunidade. Cada cidadão-soldado aprendia desde criança a diferença entre vida inferior e superior – a inferior, simples e indiferenciada, por exemplo, as plantas e os animais unicelulares, e a superior, complexa e extremamente diferenciada, por exemplo, o corpo humano, em seu perfeito e funcional desenvolvimento. Cada cidadão-soldado também aprendia ocorrer o mesmo com as formas de sociedade: de uma horda informe, o corpo social desenvolveu-se até a mais organizada e diferenciada de todas as formas: o nosso atual Estado Mundial. Do individualismo ao coletivismo; do isolamento à comunidade – este foi o caminho do colossal e sagrado organismo, no qual o indivíduo é apenas uma célula sem mais significado que o de servir a unidade do conjunto. Tudo isso sabiam os jovens desde os acampamentos juvenis, e Rissen também devia sabê-lo. Além disso, certamente ele havia compreendido o que não era difícil de compreender: que a kalocaína era um meio necessário para este desenvolvimento, pois ampliava a grande comunidade até o âmago de cada ser, até aquilo que antes cada um conservava para si mesmo. Rissen não entendeu algo assim tão lógico, ou não queria entender?

Olhei para sua mesa. Lá estava ele sentado em sua postura negligente, mexendo a sopa com um ar distraído. O homem todo inquietava-se de um modo obscuro. Não era apenas estranho, diferente dos outros, até o ridículo, era também estranho em um sentido onde eu vagamente previa perigo. Não sabia ainda em que consistia esse perigo, mas isso dirigia minha atenção involuntariamente para tudo o que ele dizia ou fazia.

Nossa experiência continuaria após o almoço, e agora se tratava de algo mais complexo. Eu planejara isso pensando em um chefe de controle mais cético que Rissen, pois em qualquer hipótese a meticulosidade era uma virtude. Minhas tentativas não ficariam ao nível do chefe de controle: se ele as aprovasse, seriam discutidas em muitas da capital. As cobaias que agora havíamos solicitado não precisavam ser sadias, isto fora especialmente salientado; bastava que estivessem em pleno uso de seus sentidos. Por outro lado, precisavam satisfazer uma outra condição, dificilmente exigida nas cobaias solicitadas: estas deveriam ser casadas.

Telefonamos ao chefe de polícia solicitando permissão para esta nova experiência. Embora tivéssemos à nossa disposição corpo e alma dos funcionários do Serviço Voluntário de Cobaias, sem mais justificativas que o bem do Estado, não dispúnhamos, no entanto, sem mais nem menos, de suas mulheres e maridos, como tampouco dos outros cidadãos-soldados. Para isto precisávamos ter assentimento especial do chefe de polícia. Ele recebeu a solicitação de malgrado no início, julgando-a desnecessária, pois existiam cobaias profissionais. Naturalmente não sabia bem do que se tratava, mas quando insistimos o suficiente para que ele, em sua pressa, se tornasse impaciente, e o convencemos de que nada pior que medo e um passageiro mal-estar aconteceriam com os escolhidos, deu finalmente sua permissão; ordenou-nos, no entanto, que passássemos lá à noite para melhores informações com calma e tranquilidade.

As dez cobaias escolhidas foram chamadas uma a uma. Em meu fichário tive de anotar não apenas seus números, como também nomes e endereços, o que não constava na ficha pessoal, e isto despertou uma certa surpresa e apreensão. Tive de tranquilizá-los e colocá-los a par do assunto.