¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 21, 2010
 
KALOCAINA - VIII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




A experiência tomou logo uma direção bastante ameaçadora. Já cedo pela manhã telefonamos à Casa de Polícia para saber se algo ocorrera, e mesmo assim estávamos atrasados. Dos dez casos, nove já haviam sido denunciados por seus cônjuges. Ainda não se sabia se o décimo estava ou não a caminho – em todo caso a ordem de prisão fora expedida, e podíamos contar com a pessoa em questão em nosso laboratório em duas ou três horas.

As perspectivas não eram exatamente brilhantes. Devo admitir ter ficado um pouco surpreso com a lealdade e rapidez de reações demonstradas pelos denunciantes – feliz constatação naturalmente, caso não se tratasse de uma experiência. A tentativa precisava ser repetida, isto era certo. Precisávamos apresentar pelo menos alguns casos seguros, antes que a descoberta pudesse ser utilizada pelo Estado.

Pedimos um outro grupo de dez cobaias casadas, e eu lhes repeti minha rápida palestra do dia anterior. Tudo transcorria da mesma forma, a única diferença é que todos se encontravam em pior estado ainda – dois, inclusive, caminhavam com bengalas e um outro tinha uma bandagem cobrindo a cabeça toda. Certo, cobaias casadas geralmente são raras, e precisamente nesta experiência as bengalas eram zero à esquerda – mas mesmo assim! Nos últimos tempos a falta de cobaias tornara-se cada vez mais evidente. Eram consumidas no transcurso dos anos, e algo precisava ser feito para que o trabalho pudesse continuar no mesmo ritmo anterior. Mal se afastaram da sala e explodi:

– Mas isto é um escândalo! Em breve não disporemos de cobaia alguma. Teremos de utilizar moribundos e doentes mentais! Não estaria já em tempo de as autoridades lançarem imediatamente uma nova campanha como a de que falou nosso primeiro número, para preencher os claros?

– Nada o impede de reclamar – disse Rissen e encolheu os ombros.

Sugeriu-me uma idéia. Naturalmente, e com razão, as autoridades não poderiam dar muita atenção à reclamação de um cidadão-soldado isolado. Por outro lado podia-se muito bem arranjar uma lista de nomes em todos os laboratórios da cidade onde se utilizassem cobaias e se observasse a falta destas. Decidi-me a empregar uma noite em que não estivesse excessivamente cansado, na pior das hipóteses uma noite livre, para formular o pedido, que depois poderia ser reproduzido e enviado às diferentes instituições. Um tal espírito de iniciativa não podia ser tão meritório, pensei.

As horas transcorridas até a chegada do prisioneiro se transformaram numa espécie de interrogatório, conduzido por Rissen, a respeito da kalocaína e seus similares mais próximos do ponto de vista químico e medicinal. Ele era competente em sua especialidade, isso não posso negar. Creio ter-me saído muito bem, e estava surpreso por ele ter-me julgado digno de um tal exame. Seria sua intenção declarar-me competente para um posto mais alto? Vendo as coisas objetivamente, eu estava certo disto, no entanto... Pareceu-me que ele teria sentido minha desconfiança como uma chicotada, e queria responder-me na mesma moeda. Mas no fundo eu não alimentava grandes esperanças em relação a sua amabilidade. O que ele esperava ou exigia de mim no futuro era imprevisível. No entanto, eu não me deixava embalar por falsas incertezas.

Próximo à hora marcada, um homem entrou e anunciou-se como Karrek, o próprio chefe de polícia. Seu interesse não era então dos menores. Evidentemente era uma honra para toda a instituição, mas especialmente para mim, que um homem tão poderoso se interessasse por minha experiência. Com um ar um tanto irônico – provavelmente pensava consigo estar manifestando com desenvoltura sua curiosidade –, jogou-se na cadeira que lhe passamos. Logo após foi trazido o prisioneiro, uma mulher bastante jovem, delicada e um pouco consumida. Sua pele era incomumente branca, ou talvez a brancura do rosto dependesse do espanto.

– Você enviou uma denúncia à polícia? – perguntei para certificar-me.

– Não – disse ela estupefata, e tornou-se um pouco transparente. (Mais pálida não poderia tornar-se).

– E você tampouco tem algo a confessar? – perguntou Rissen.

– Não! (Agora a voz era firme, sem tom algum de surpresa).

– Você é acusada de cumplicidade em conspiração contra o Estado. Pense bem: nenhuma pessoa próxima a você falou algo sobre manobras subversivas?

– Não! – respondeu com firmeza.

Suspirei aliviado. Ela deixara de denunciar a tempo seu marido, ou por atitude criminosa ou por simples demora, em todo caso agora não estava inclinada a confessar. Provavelmente tinha medo. Sua postura tensa e feições rijas deixavam entrever em circunstâncias normais uma brava e enérgica cidadã-soldado. Agora, davam-lhe um aspecto insubmisso e rebelde. Quase sorri, ao pensar que ilusão ela esconderia como um precioso segredo e como nós arrancaríamos dela – nós, que sabíamos o seu valor... Ainda mais, quando se pensava em tudo que ela suportara inutilmente: fora conduzida expressamente em vagões blindados pelos mais profundos subterrâneos do metrô, somente utilizados pelo Exército e Polícia, com mordaça e algemas, vigiada por dois policiais, como era praxe no transporte de subversivos. Mas meu sorriso não veria jamais a luz do dia. Embora a história não passasse de uma mentira e o interrogatório de uma comédia, sua participação era, no entanto, verdadeira e criminosa, dependesse tanto de má intenção como de negligência.

Quando foi sentada na cadeira, estava prestes a desmaiar. Certamente tomara meu inocente laboratório por uma câmara de torturas, onde tentaríamos obter dela o que não queria dizer. Enquanto Rissen a amparava em seu desmaio, injetei-lhe a droga e em silêncio, esperamos os três, o chefe de polícia, Rissen e eu.

Desta frágil e aterrorizada cobaia, que nem mesmo era profissional, senão amadora, se nos é permitido utilizar uma expressão tão consagrada, podia-se me bem esperar uma reação chorosa como a de n° 135, minha primeira cobaia. Mas ocorreu o contrário. Os traços rijos e tensos se distenderam lentamente, dando-lhe à face, aos poucos, a pureza interior de uma criança. As veias congestionadas da testa desapareceram. Sobre as faces magras, os pontos salientes deixaram escapar um sorriso quase feliz. Aprumou-se bruscamente na cadeira, abriu enormemente os olhos suspirou fundo. Permaneceu longos minutos em silêncio, que até comecei a temer que minha kalocaína se mostrasse ineficaz.

– Não, não há motivo algum para ter medo – disse ela finalmente, em tom hesitante e aliviado. – Ele deve conhecer isto também. Nada de dor, nada de morte. Coisa alguma. Ele sabe disso. Por que eu não diria nada então? Por que também eu não queria falar sobre isto? Claro, ele contou-me isto, falou-me sobre isto ontem à noite, e agora compreendo que ele já sabia muito bem o que eu só soube agora: que não existe nada a temer. Ele sabia isto, quando falou comigo. Jamais esquecerei isto. Que ele ousou. Eu jamais teria ousado. Que ele tenha ousado é um orgulho para minha vida, serei agradecida até o resto de meus dias, viverei de gratidão para poder retribuir-lhe.

– O que é que ele ousou? – interrompi, ansioso por chegar ao cerne da questão.

– Falar comigo. Sobre algum que eu não teria ousado...

– E sobre o que ele falou?

– Isso não importa. Não significa nada. Uma besteira qualquer. Alguém queria informações dele, esboço de mapas, e lhe daria dinheiro por isso. Ele ainda não o fez. Disse que pensa em fazê-lo, não entendo por quê. Eu jamais o faria. Ele falou comigo sobre isso; eu quero continuar falando com ele. Ele acabará me entendendo, ou eu entendendo a ele. Chegaremos a nos entender mutuamente e ter uma vida comum. Estou com ele. Com ele nada tenho a temer. Ele não teve medo de mim.

– Esboços de mapas? Mas você não sabe que toda tentativa de fazer mapas desta espécie é estritamente proibida e considerada conspiração contra o Estado?

– Claro, sei muito bem disso, estou dizendo é que não o entendo – disse ela impacientemente. – Mas nós vamos nos entender. Eu a ele ou ele a mim. Depois passaremos a agir em conjunto. O senhor talvez não entenda, mas antes eu tinha medo dele. E ele não teve medo de mim. Pois falou-me sobre isso. Ele não tem motivos para temer. Nunca os terá. Jamais. Compreendi que era isto que eu tinha...

– Então – interrompi rapidamente, como se nada soubesse –, então: ele combinou vender mapas a alguém. Que espécie de mapas?

– Dos laboratórios – respondeu com indiferença. – Mas eu compreendi que o que eu tinha...

– E você sabia que isto era conspiração? E que não denunciá-lo é cumplicidade na conspiração?

– Sim, sim. Mas não é isto o mais importante.

– Você sabe algo sobre o homem que queria os mapas?

– Eu lhe perguntei, mas ele pouco sabia. Sentou-se ao lado dele no metrô e disse que apareceria novamente, mas não quis dizer onde nem quando, disse apenas que pagaria quando recebesse os mapas. Até lá nós deveríamos chegar a uma conclusão comum...

– Isto é o suficiente – disse eu, meio voltado para Rissen, meio voltado para o chefe de polícia. – Conseguimos extrair dela todas as informações que seu marido deveria dar-lhe. O resto é insignificante.

– Realmente interessante – disse o chefe de polícia. – Extremamente interessante. Poderíamos de fato tornar as pessoas tão expansivas com um meio tão simples? Mas o senhor deve desculpar-me, sou cético por natureza. Naturalmente, deposito uma confiança total em sua honra e meticulosidade, absoluta. No entanto eu assistiria com prazer a algumas experiências mais. Não me interprete mal, cidadão soldado. É perfeitamente razoável que a polícia esteja interessada em sua descoberta.

Com grande alegria lhe dissemos ser bem-vindo quando quisesse, e que ao mesmo tempo poderia verificar a lista das novas cobaias. Tomara que o novo grupo não tenha sido exposto a tão grande massacre como o último! – pensei. Mal aflorou-me o pensamento, estremeci interiormente de terror: aqui estava eu esperando que um certo número de pessoas fossem cidadãos-soldados com tendências subversivas... As palavras de Rissen vieram à tona: nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa. E imediatamente fui tomado por uma forte aversão a Rissen, como se tivesse sido ele o responsável por este desejo contrário ao Estado. De certa forma talvez tivesse razão – não que meu desejo fosse sua obra –, mas sem suas palavras talvez jamais tivesse pensado nesta oposição.

A mulher moveu-se na cadeira com um gemido, e Rissen passou-lhe um frasco com cânfora.

A mulher despertou subitamente com um grito. Encurvou-se aterrorizada, pôs as mãos na cabeça e lamentou-se aos berros. Estava novamente em pleno uso de seus sentidos e se dera conta do que fizera.

A cena era terrível, dolorosa, embora me dessa certa satisfação. Há pouco, quando estava sentada com uma desenvoltura infantil, eu respirara mais fundo e mais calmo, contra minha vontade. Ela irradiava um certo repouso que me lembrara o sono – aliás, nem mesmo sei se costumo repousar assim quando durmo, e muito menos quando desperto. Ela acreditara estar segura com alguém, com seu marido – e ele já a havia traído, traíra-a desde o início – e agora também ela o traíra, embora contra a vontade. Tão irreal como seu crime havia sido sua calma de há pouco, como também era irreal seu terror agora. Pensei na Fada Morgana que os viajantes do deserto vêem sobre as camadas de sal: palmas, oásis, fontes – e em desespero se curvam, bebem nas poças salgadas e morrem. Ela agira assim, pensei, e está é a bebida que sorvemos nas fontes anti-sociais, sentimentais e individualistas. Uma ilusão, uma perigosa ilusão.

Ocorreu-me que ela deveria saber toda a verdade, não para salvá-la de um remorso interno, mas para mostrar-lhe o vazio da curta segurança que ostentara.

– Acalme-se. Você não tem razão alguma para se lamentar, ao menos por seu marido. Preste atenção no que vou dizer: Seu marido jamais encontrou aquele homem. Ele é totalmente inocente. Ele contou aquela história toda a nosso mando. Era uma experiência – com você!

Ela arregalou os olhos e parecia não entender.