¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quinta-feira, julho 01, 2010
 
NOBEL DE MEDICINA
RECUPERA VIGARICE



Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".

Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hamburguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada. O redator responsável pela barriga é hoje o diretor de redação da revista. Mediocridade compensa.

Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Inserm), na França, criou a teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato.

A quem aproveitava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória
da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.

Mais de vinte anos após esta escroquerie científica, a memória da água volta à baila. Desta vez pela boca de um prêmio Nobel em Medicina. Fosse um Nobel da Paz ou da Literatura, não me espantaria. Estes dois prêmios costumam acolher os mais ilustres vigaristas que a humanidade produz, vide Mikail Cholokov, Pablo Neruda, Yasser Arafat, Tenzin Gyatso, Rigoberta Menchu, madre Teresa de Calcutá. Mas o Nobel de Medicina eu respeitava. Apesar de já ter sido concedido ao médico português Egas Moniz, que desenvolveu a lobotomia.

Em Lindau, Alemanha, a cada ano se realiza um encontro de prêmios Nobel. Em despacho do enviado especial da Folha de São Paulo à cidade alemã, leio que nesta 60ª edição o francês Luc Montagnier – que dividiu o prêmio em Medicina ou Fisiologia de 2008 com Françoise Barré-Sinoussi pela descoberta do vírus da Aids – ressuscitou a vigarice da memória da água. Em uma palestra para 675 jovens pesquisadores, intitulada "O DNA entre a Física e a Biologia", discorreu sobre marcas que seriam deixadas pelo DNA de algumas bactérias e alguns vírus no arranjo de moléculas de água, mesmo após sucessivas diluições. Num dos dois artigos que publicou sobre o assunto em 2009, Luc Montagnier cita Benveniste como fonte do aparelho empregado para captar os sinais. Uma das aplicações de sua teoria seria encontrar vestígios do vírus HIV ocultos no sangue de pacientes mesmo depois que a carga viral é zerada com drogas.

Longe de mim pretender discutir vestígios do vírus HIV ocultos no sangue. Sou leigo total no assunto. Mas de vigarices entendo um pouco. A história da memória da água ridicularizou urbe et orbi a Nature e o Le Monde. O jornal francês passou vários dias se desculpando pela barriga. O episódio desmoralizou definitivamente a homeopatia e Benveniste perdeu financiamentos públicos e prestígio, tendo merecido duas vezes o Prêmio Ig Nobel.

Segundo a exótica teoria, um volume ao ser mergulhado n’água deixaria a memória de suas dimensões. Memória onde, se as águas fluem? A inconsistência da teoria é tal que se custa acreditar que um jornal como Le Monde tenha caído em tal conto do vigário. Da mesma forma, espanta que um Nobel de Medicina a retome.

A estupidez é universal e se dá ao luxo de ter como porta-voz cientistas de renome.