¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 03, 2010
 
KALOCAINA - XXI

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Meu sono, que jamais havia sido o melhor dos sonos, ultimamente era péssimo. Minha quota mensal de soníferos sempre estava esgotada, já na metade do mês, e o que Linda não precisava da sua eu consumia até a última gota. Não queria procurar um médico. Eu temia receber o carimbo “constituição nervosa” em minha ficha secreta. Isto não seria nada interessante, pois por minha própria condição não podia portar tal anotação. Ninguém podia ser mais normal que eu, minha insônia era natural e explicável, eu me julgaria anormal e doentio se tivesse dormido bem durante tais circunstâncias...

Meus pesadelos foram suficientes para que eu não ansiasse precisamente por ser interrogado com minha própria kalocaína. Acontecia-me acordar suando frio e visões terríveis, onde eu era acusado e esperava minha dose e a vergonha imensa que se seguiria. Rissen, Karrek e inclusivo um ou outro participante do curso surgiram como elementos de terror em meus sonhos, mas principalmente Linda. Ela era sempre minha denunciante, ou meu juiz, ou aquele que se curvava sobre mim com a injeção de kalocaína. No início era com alívio que eu despertava e via a Linda real de carne e sangue a meu lado na cama, mas logo foi como se as visões noturnas começassem a invadir a realidade desperta, e o alívio tornou-se menor e menor, e a real, indubitável e desperta Linda encarnava cada vez mais o espírito supremo da maldade.

Um dia estive perto de contar minha tortura noturna – mas me contive no último minuto, ante a lembrança de seu olhar gélido no sonho. Logo após sentia-me contente por nada ter dito. A suspeita de que Linda estivesse em segredo ao lado de Rissen não me deixava mais calma alguma. Soubesse o que pensava dela, podia tornar-se minha inimiga no mesmo instante, e um inimigo implacável, forte como era ela. Talvez já fosse minha inimiga e apenas esperasse o momento exato de golpear. Não, seria minha ruína se lhe dissesse uma palavra sobre o assunto.

Quero contar um outro sonho, que em verdade não pode ser situado entre os pesadelos comuns. Um sonho sobre a Cidade Deserta.

Eu me encontrava no início de uma rua e sabia que precisava percorrê-la – por que, não sei, mas pressentia angustiado que minha boa ou má fortuna dependia de que prosseguisse. As casas de ambos os lados da rua eram montem de ruínas, alguns altos como pequenas colinas, outros soterrados e semi-cobertos com areia e ferragens. Trepadeiras haviam fixado raízes em lugares isolados e galgavam com esforço os restos de paredes, mas em meio a elas apareciam longos espaços frios e sem vida sob um sol cadente de meio-dia. Pareceu-me vislumbrar que aqui e ali, nos espaços mortos , as pedras transpiravam uma leve fumaça amarela. Em outros lugares a luz se quebrava na areia em vibrações azul-brumosas que me atemorizavam. Avancei um passo hesitante entre as emanações venenosas, quando uma brisa trouxe uma nuvenzinha destacada da fumaça amarelada a minha frente. A nuvenzinha espalhou-se em suaves turbilhões e tive de dar um passo atrás para que não me atingisse. Ao longe vi que as vibrações azul-brumosas começavam a se transformar em uma chama de pouco brilho e quase inundavam a rua. Angustiei-me com o pensamento de que alguma explosão atrás de mim me cortasse o caminho de retorno, impedindo-me assim de prosseguir ou voltar, mas sinal algum indicava algo semelhante. Dei mais um passo à frente. Nada aconteceu. Um outro. Ouvi então uma detonação seca às minhas costas, e ao virar a cabeça notei que a pedra em que há pouco tropeçara se transformava. Começou a amolecer internamente, tornou-se porosa e virou poeira em um segundo, enquanto parecia-me perceber um odor leve e desagradável. Eu não me decidia nem a continuar, nem a ficar parado, nem a voltar.

Ouvi então sons misteriosos de vozes mais adiante. Lá estava aberta a porta semidestruída de um porão, revestida por trepadeiras verdes em ambos os lados. Não a havia observado antes, e em minha angústia, suava frio ao ver o verde viver sua vida tão próxima a mim. Sobre os degraus rachados e gastos de pedra alguém surgira até a luz e me acenava para entrar. Não lembro mais como cheguei até a porta, talvez tenha pulado animalescamente sobre as pedras perigosas. Seja como for, entrei em uma câmara sem teto, em ruínas, onde penetrava o sol, e grama e flores pairavam sobre minha cabeça. Jamais um aposento com teto e paredes em pedaços me parecera tão seguro refúgio. Do tapete de grama emanava um odor de sol e terra e cálida despreocupação, e as vozes cantavam ainda, embora distantes. A mulher que me acenara antes estava lá e nos abraçamos um ao outro. Eu estava salvo e queria dormir de cansaço e alívio. Tornara-se totalmente desnecessário que continuasse a percorrer a rua. Ela disse “Tu ficas comigo”. – “Sim, deixa que eu fique!”, respondi, sentindo-me livre de todas as preocupações, como uma criança. Quando me inclinei para ver o que me molhava os pés, notei que do chão de terra brotava uma fonte clara, e isto me inundou de uma indescritível gratidão. “Não sabes que daqui emerge a vida?”, disse a mulher. Ao mesmo tempo, eu sabia ser isto um sonho do qual despertaria, e busquei em pensamentos uma forma de guardá-lo – tão furiosamente que o coração começou a pulsar com violência e acordei.

Este sonho lindo como era, talvez pudesse ser considerado ainda mais grave que um pesadelo, e eu não queria contá-lo nem para Linda nem para qualquer outro. Não porque Linda tivesse ciúmes da mulher de meu sonho – ela tinha certos traços daquela prisioneira com voz profunda, de quem já falei muitas vezes, mas tinha os olhos de Linda –, mas por ser isto uma resposta óbvia à pergunta de Rissen: “Você está seguro de que não lhes inveja a cidade deserta infestada de gases?” Tão profundamente me havia penetrado a sugestão de Rissen que inclusive minha vida onírica estava sob sua influência. De que me servia defender-me de mim mesmo quando devia defender-me de Rissen! Tal defesa não comoveria juiz algum no mundo.

Sonhei isto antes de ter sido chamado por Karrek, antes também da promulgação da nova lei, quando eu tinha outros problemas a resolver que não uma indefinida vingança futura.