¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, agosto 04, 2010
 
KALOCAINA - XXII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Ao voltar do encontro com Karrek e saber que já amanhã poderia pôr em ação meus ímpetos de vingança, senti-me em um estado de espírito abominável e revoltado. O objetivo, que antes parecia tão distante, estava agora a meu alcance, mas todos os detalhes a serem observados pareciam subitamente intransponíveis. Se Linda realmente amava Rissen, não acabaria descobrindo de uma forma ou outra quem o denunciara? Como se comportaria, não sei, mas eu estava perfeitamente seguro de que teria êxito. Ela teria êxito, e se vingaria. Eu tremia ante sua vingança. Acontecesse o que acontecesse, eu não queria ser submetido a minha própria kalocaína.
Naquela noite não dormi quase nada.

Na manhã seguinte o jornal trazia um artigo com a rubrica: PENSAMENTOS PODEM SER CONDENADOS.

Era um apanhado da nova lei, com uma menção a minha kalocaína, que a tornara possível. Nada podia ser mais sensato que as novas decisões penais: daqui por diante, não se poderia mais seguir rígidos e fixos parágrafos que prescreviam a mesma pena tanto para o reincidente como para o principiante, desde que presos pela mesma ação. O próprio cidadão-soldado seria o centro do procedimento legal, não suas ações isoladas. Seu caráter seria examinado e registrado, não em função da antiga pergunta sem sentido “capaz ou incapaz”, mas para separar material utilizável de material inútil. A pena não mais consistiria em um certo número de anos mecanicamente divididos, mas seria meticulosamente elaborada por cálculos de psicólogos e economistas eminentes, que decidiriam sua conveniência. Um farrapo físico e espiritual que jamais beneficiaria o Estado não devia esperar continuar vivendo apenas porque não conseguira fazer nenhum dano. Por outro lado, tinha-se de considerar o decréscimo de população e, no pior dos casos, conservar material não muito desejável, que poderia ser utilizado como força de trabalho. A nova lei contra idéias subversivas entrava em vigor naquele mesmo dia, mas ao mesmo tempo salientava-se que todas as denúncias deveriam ser justificadas e, além disso, assinadas com o nome do denunciante. Não mais seriam anônimas, como antes, para impedir-se uma inundação de denúncias pouco importantes e a consequente despesa estatal desnecessária com kalocaína e funcionários da justiça. Em todo caso, a polícia reservava-se o direito de levar ou não em consideração as denúncias que julgava oportunas.

Karrek nada me havia dito sobre isso de assinar o nome. Seria então bem mais fácil para Linda, se quisesse furungar o nome do denunciante de Rissen.

O dia transcorreu sem incidentes no trabalho, mas não posso dizer: em paz e tranquilidade. Não troquei palavra alguma com Rissen durante o almoço. Mal ousava olhá-lo. Tinha uma impressão terrível de que ele conhecia meus pensamentos e intenções e a qualquer momento poderia golpear e abater-me. Ao mesmo tempo eu não ousava tomar a iniciativa, pois não confiava em Linda. O adiamento de cada hora era perigoso, mas eu tinha de correr esse risco.

Quando mais tarde cheguei em casa, foi como se se repetisse o suplício do almoço. A mesma dificuldade para encontrar os olhos de Linda como antes os de Rissen, a mesma sensação de que ela sabia de tudo, a mesma inimizade que carregava o ar entre nós. Os segundos se arrastavam e parecia que a criada jamais sairia nem as crianças dormiriam. Quando fiquei só com Linda, para evitar a escuta liguei o rádio a todo volume e nos sentamos de modo que o alto-falante ficasse entre nós e o ouvido da polícia.

Não lembro mais sobre o que falávamos, eu estava por demais tomado por minha intranquilidade para guardá-lo. Linda não indicava por sinal algum o que pensava do que falávamos nem de meu esforço por tentar colocá-la exatamente naquela cadeira – mas provavelmente imaginava o que estava por vir e escutava tão pouco quanto eu. Quando aproximei minha cadeira para bem perto dela, olhou para mim interrogativa.
– Linda! Preciso te perguntar algo.
– Sim – disse ela, sem demonstrar surpresa alguma.

Eu sempre soubera que seu domínio era total. Como também sabia que, se alguma vez nós dois tivéssemos de abrir o jogo e nos lançarmos numa luta de vida ou morte, ela seria o mais terrível dos adversários. Seria por isto que eu simplesmente não conseguia abandoná-la? Teria medo do que aconteceria depois? Em meu próprio amor existia o grande medo, eu sabia disto perfeitamente, e o sabia desde há muito. Mas nele também existia um sonho de segurança sem limites, um sonho de que meu amor obstinado um dia a forçaria a ser minha aliada. Como isto aconteceria, ou como eu saberia que acontecera, disto eu não tinha idéia – era um sonho tão indefinido e tão distante da realidade como o de uma vida futura. O que eu sabia era que, no momento seguinte, poderia dilapidar esta segurança sonhada. De aliados incertos podíamos em um minuto tornarmo-nos inimigos ferozes, inclusive sem que eu o soubesse, sem que um gesto em sua face ou tremor em sua voz a traísse. Mesmo assim eu tinha de continuar.

– Pergunto, isto, naturalmente, por motivos apenas formais – continuei, tentando sorrir. – Estou pessoalmente certo de tua resposta, jamais acreditaria em algo semelhante, e se isto fosse afinal verdade, par mim não teria importância alguma. Suponho que me conheces bem, e que te conheço da mesma forma.
Enxuguei minha testa com o lenço.
– Sim? – disse Linda, olhando interrogativamente para mim. Seus olhos imensos pareciam faróis, tão exposto me senti quando ela os assestou para mim.
– Bem, é apenas isto, disse eu (e sorri com certo amargor): tiveste alguma relação amorosa com Rissen?
– Não.
– Mas tu não o amas?
– Não, Leo, não o amo.

Mais longe não fomos. Tivesse ela dito sim, eu acreditaria imediatamente – suponho. Agora, que negara, não ousava crê-la por um segundo. De que me servira perguntar? Ela notava que eu mentira, ela percebera que sua resposta me preocupava obsessivamente. Amanhã ou depois de amanhã ela entenderia por que eu lhe perguntara, talvez ela até já o soubesse agora, talvez Rissen já a tivesse alertado do perigo que o ameaçava. Meu coração quase parou, quando me pareceu perceber um movimento, fraco, mal perceptível, uma espécie de inquietude da própria pele – mas mesmo assim um sinal. Eu acreditaria mais neste sinal que em todas as suas palavras.

– Tu não acreditas em mim? – perguntou séria.
– Claro que acredito em ti – respondi em tom exagerado. Como se ela também acreditasse em mim! Pudesse eu incutir-lhe em segurança, pelo menos o ruim não se tornaria pior. Mas senti que ela não se deixaria enganar.

Não pudemos ir além disto. Esta conversa exigira tanta superação de mim mesmo que me esgotara – e no entanto nada fora ganho. Nunca sentira este abismo hiante, tão real e tão intransponível. Meu domínio não foi suficiente para preencher o resto do tempo com piadas e futilidades, embora se tratasse de apenas uma hora, pois ambos tínhamos serviço noturno. Linda calou-se também, e entre nós permaneceu uma inquietude silenciosa, que corroia a própria medula dos ossos.

Por fim a hora passou. Voltamos esgotados tarde da noite. Linda dormia, eu ouvia sua respiração regular, sem conseguir dormir. De quando em quando mergulhava numa semivigilha, da qual pulava sempre sobressaltado com um agudo pressentimento de perigo. Talvez fosse imaginação, o quarto estava tranquilo e Linda dormia tão profundamente quanto antes.

Mas eu estava próximo ao desespero. Ninguém ainda pensou de fato no risco de dormir lado a lado com um outro, dois seres solitários na longa noite, sem outras testemunhas que o olho e ouvido da polícia – que ademais nenhuma segurança davam: primeiro porque não permaneciam sempre ativos, e segundo porque certamente podiam controlar e vigiar, mas não impedir o que acontecia. Dois seres sós, noite após noite, ano após ano, e talvez ambos se odeiem. Se ela desperta, o que não poderia fazer ao outro... Se Linda estivesse sob efeito da kalocaína...

A idéia assaltou-me como uma onda ergue destroço de barco. Não tinha mais escolha, precisava continuar o que iniciara, agira em autodefesa, para salvar minha vida. Precisava de alguma forma dar um jeito. Com algum pretexto qualquer eu poderia subtrair a pequena quantidade de kalocaína necessária. Linda seria forçada a entregar seus segredos, a qualquer preço.

Ela estaria então sob minha violência como eu jamais estivera sob a sua. Ela jamais ousaria ferir-me. Eu poderia prosseguir e denunciar Rissen.
Seria então livre.