¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 05, 2010
 
KALOCAINA - XXIII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Não dormi muito aquela noite, mas quando me dirigi ao trabalho, havia sacudido de mim a angústia e indecisão que me pesava nos dias anteriores. Estava pronto para agir; isto já era uma libertação.

Nada mais simples que arranjar a kalocaína suficiente para uma dose. Pequenas porções sempre se perdiam durante as aplicações, e o controle era mínimo, principalmente que agora a pressa atrapalhava a boa marcha dos trabalhos. E mais: quem pesava era Rissen. Se não lhe ocorresse o infeliz capricho de hoje ou amanhã lançar-se sobre mim com um controle de peso, nunca mais teria oportunidade de fazê-lo. Seus auxiliares e eventuais testemunhas certamente não pensariam, em meio à confusão geral, em tal detalhe. Ao amanhecer do dia seguinte, eu já teria certeza. Precisava confiar em minha boa sorte e na pressa de Rissen.

Cheguei em casa com uma seringa no bolso e um pequeno frasco cheio de um inocente líquido esverdeado. A libertação dos primeiros passos para a ação me dava forças novas, e inclusive conversei e brinquei com a criada e as crianças durante a janta. Apenas acenei para Linda, desta vez sem recuar diante de seus olhos. Eles eram como faróis, mas não tão devastadores como os que eu escondia no bolso.
Era dia de serviço noturno e fomos tarde para a cama.

Fiquei bastante tempo quieto esperando que ela dormisse. Quando finalmente estava seguro, levantei-me discretamente sob o brilho da pequena lâmpada noturna e cobri o olho da polícia. Contra o ouvido pus uma almofada, com o mesmo embaraço com que vira Karrek fazer o mesmo. Naturalmente isto era proibido, mas eu me encontrava nos limites do desespero, e acontecesse o que acontecesse, não queria que a polícia vigiasse minha ocupação.

Linda, deitada sob a iluminação difusa, estava bela como eu jamais a vira antes. Com seu braço dourado e nu havia puxado o cobertor até o queixo, como se tentasse esconder-se. Voltara a cabeça para o outro lado, de modo que seu perfil regular se desenhava claramente contra as sombras da almofada. A pele luzia como um veludo vivo contra suas pesadas sobrancelhas negras e cílios. O arco tenso e vermelho se relaxara no sono até tornar-se uma doce e cansada boca de menina. Jamais a vira tão jovem quando desperta, nem mesmo quando nos conhecemos, nem tão comovente. Eu, que geralmente a temia por ser tão forte, fui quase atacado de compaixão ante sua fraqueza infantil e desprotegia. Desta Linda, que dormia à minha frente, gostaria de me aproximar de outra forma, terna e delicadamente, como se fosse a primeira vez em que nos encontrássemos. Mas eu sabia que, se a acordasse, o arco vermelho se contrairia e os olhos se tornariam faróis novamente. Ela se ergueria totalmente desperta na cama, e com cenhos franzidos descobriria o tapete e a almofada na parede. E se eu ainda quisesse me aproximar, se lhe oferecesse amor para dissimular minha desconfiança, serviria isto para algo? Um segundo de ilusão de afinidade, uma embriaguez que não mais existiria amanhã – e eu nem mesmo saberia o que sentia por Rissen.

Comecei atando-lhe um lenço na boca, para que não gritasse em meio à luta. Naturalmente ela despertou e tentou libertar-se, mas como eu era bem mais forte, tinha todas as vantagens a meu favor. Não era difícil mantê-la imóvel enquanto a atava de pós e mãos para que não me escapasse. Eu necessitava ter as duas mãos livres.

Ela enrijeceu-se quando lhe apliquei a droga, e depois imobilizou-se. Percebera ser inútil qualquer resistência.

Oito minutos contei como tempo necessário para que o líquido atuasse. Quando passaram, desatei o lenço. Notei em suas faces que a droga a dominara. Ela voltou a ter o mesmo rosto de criança que tinha durante o sono.

– Eu sei o que estás fazendo, disse ela gravemente, e inclusive sua voz tinha nuanças da mesma infantilidade de seu rosto. Queres saber algo. O quê? Existem muitas coisas que deves saber. Tenho muito a dizer. Nem sei mesmo como começar. Eu queria fazer isso, não precisavas me forçar. Mas talvez eu jamais conseguisse a não ser desta forma. Assim foi durante todos nossos anos. Existe algo que quero dizer ou fazer, mas não sei o que é. Talvez uma porção de futilidades, gentilezas, agrados e carinhos, e quando estes eram impossível, impossível também era o maior e mais importante. Só sei uma coisa, isto eu sei: eu queria te matar. Se tivesse a certeza de jamais ser descoberta, eu teria te matado. Mas também pouco me importa ser descoberta, ainda faço isso. É melhor do que continuar assim. Te odeio por não teres me salvado disto, já teria te matado se não tivesse medo. Agora eu ouso. Não enquanto puder falar contigo. Nunca pude falar contigo. Tu tens medo, eu tenho medo, todos têm medo. Só, totalmente só, nem mesmo alegremente só como quando se é jovem. Isto é horrível. Nunca pude falar contigo sobre as crianças, não pude te dizer minha tristeza pela partida de Ossu, e o medo que tive no dia em que saiu Maryl e Laila. Eu pensava que tu me desprezarias. Podes me desprezar agora, não me importo mais. Muitas vezes desejo voltar a ser menina novamente, ser infeliz no amor em vez de amada. Não compreendes que é invejável ser-se menina e infeliz no amor, embora não se entenda isso então? Quando se é menina, imaginamos que existe algo mais, uma libertação que virá com o amor, uma espécie de refúgio naquele que amamos, uma espécie de calor e repouso, que não existe. Infeliz no amor, a gente vive e sofre intensamente o desespero do por que exatamente eu não tive a grande felicidade, exatamente contigo, e acreditamos que os outros talvez tenham tido, que ela existe, que existe para que a tenhamos, e tu deves saber que quando existe tanta alegria no mundo e quando toda sede tem um algo, nem mesmo ser infeliz é desesperador. Mas ser feliz no amor, nos leva ao vazio. Não existe mais objetivo, existe apenas solidão, e por que existiria algo mais, por que existiria um sentido para nós, indivíduos? Gostei muito de ti, Leo, e tu achas que não. Acho que agora, poderia te matar tranquilamente.

– E Rissen? – perguntei aflito, temendo que os preciosos minutos corressem sem que eu soubesse o que desejava saber. Que achas de Rissen?
– Rissen – repetiu pensativa. – Sim, Rissen... Rissen tinha algo especial. O quê? Ele não era tão distante como os outros. Não assustava ninguém, ele próprio não tinha medo.
– Tu o amavas? Ainda o amas?
– Rissen? Se eu o amava? Não, não, não. Se ao menos eu pudesse! Ele era diferente dos outros. Próximo. Calmo. Tranquilo. Diferente de ti, Leo, e diferente de mim. Fosse um de nós como ele... Ou os dois, os dois, Leo... Teria sido tu. Por isso quero te matar, para libertar-me, pois jamais será um outro que não tu, e tampouco serás tu.
Começou a agitar-se e piscar os olhos. Eu não ousara apanhar mais kalocaína que para uma dose, seria muito perigoso. E agora não sabia o que lhe perguntar.
– Como pode ser tudo assim? – sussurrou angustiada. – Como pode ser tudo assim, por que buscamos o que não existe? Estamos mortalmente doentes, quando somos completamente sãos, quando tudo é como...

A voz tornou-se um murmúrio, e pela cor esverdeada de suas faces vi que ela estava por despertar. Apoiei-a pela nuca e levei-lhe um como aos lábios. Ela continuava ainda amarrada – e nem mesmo notara isso durante a anestesia. Soltei-a embora com certo receio de seu comportamento, agora que estava livre. O tempo todo eu esperava por esse momento, com um misto de angústia e triunfo, quando ela seria acometida de remorso e vergonha pela abertura involuntária de seu coração. Notei que minha mão tremia, a ponto de não conseguir manter sua cabeça quieta. Larguei-a então no travesseiro e olhei-a fixa e ansiosamente em seus traços relaxados.

Mas a reação que eu esperava pareceu não ocorrer. Quando ela abriu novamente os olhos, estes eram mediativos, mas abertos e tranquilos como sempre, e encontraram os meus sem desviá-los. Sua boca me assustava. O arco vermelho não se distendia como de hábito, permanecia relaxado em repouso, dando ao rosto a mesma expressão infantil que durante o sono e a embriaguez. Eu não sabia que podia existir uma gravidade aterrorizante em uma tal falta de controle. Os lábios se moviam molemente como se ela repetisse palavras para si mesma. Eu nada tinha a lhe dizer, nem queria interrompê-la. Sentei-me e fiquei olhando seu rosto.

Por fim ela adormeceu, enquanto eu a vigiava. Dormiu, eu me despi e tentei também dormir, mas não pude. Um arrependimento e vergonha surda me inundavam. Sentia-me como se o interrogado desmascarado fosse eu, não ela. Tivera sempre claro para mim que, dissesse ela o que dissesse, continuaria depois sob minha violência, mas de uma forma diferente da anterior. Quando despertasse, já teria revelado segredos que não deviam ter sido confessados, com os quais nem poderia ameaçá-la se dirigisse um único passo hostil contra mim. Talvez ela tivesse feito isso, não sei. Sua ameaça de matar-me - eu ouvira isso muitas vezes durante meu trabalho e sabia que dificilmente eram executadas – talvez fosse perigosa para ela, por que não? Era possível que eu tivesse em mãos, era possível que tudo tivesse corrido conforme meus cálculos.

Exceto em um ponto: eu jamais poderia utilizar-me de qualquer trunfo. Tudo que ela dissera fora sobre mim mesmo. Eu estava doente, dilacerado até as entranhas, enquanto ela se mantivera como um espelho diante de mim. Eu não havia adivinhado que ela, com seus lábios tensos, com seu silêncio e com seus olhos penetrantes, era da mesma têmpera frágil, que eu. Como poderia eu ameaçá-la, como poderia forçá-la em tais circunstâncias?

Após um curto sono, acordei algumas horas adiantado. Linda dormia. Os acontecimentos da noite de assaltaram nítidos no exato momento em que acordei, mas me restava ainda um remorso cavo por algo não feito. Adivinhei sua causa no momento imediato: Rissen. Hoje.

Tive vontade de adiar tudo novamente, mas não existia razão alguma para minha inércia. O problema de ontem não era exatamente o mesmo de hoje? Rissen era precisamente o mesmo. Jamais fora por ser meu eventual rival que senti que precisava livrar-me dele. Minha repulsa era mais profunda. Mas parecia menos exigente hoje. Mas se não o fizesse agora, desprezaria a mim mesmo. E agora, por pura sorte, dispunha de tempo livre para formular minha denúncia antes que Linda acordasse, e uma coisa pelo menos os acontecimentos da noite haviam revelado: eu sabia que ela não estava do lado de Rissen, mas do meu.