¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 06, 2010
 
KALOCAINA - XXIV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Sob o fraco brilho da lâmpada, escrevi um esboço da denúncia. A motivação genérica era algo fácil, tantas vezes eu a formulara em meus pensamentos. Repeti solene e convincentemente tudo o que dissera a Karrek. Ainda dispunha de bastante tempo, e, sentado na cama, escrevi a própria denúncia, que mereceu ser feita com caneta tinteiro, o papel apoiado na Revista Química. Subscrevi sem hesitações meu nome e endereço, já que assim devia ser, e pus no envelope o endereço da polícia. Levei quase uma hora lendo e relendo o que havia escrito e ruminando novas indecisões e dúvidas. Só quando o despertador do vizinho tocou lembrei-me de que quase não dispunha de mais tempo, e pus o sinal secreto de Karrek em um canto, como já o fizera diversas vezes em fantasia; coloquei a denúncia no envelope e o escondi na revista.

Linda despertou com um toque de nosso relógio. Olhamos um para o outro como se a noite tivesse sido um sonho. Antes, eu imaginara uma manhã completamente diferente, na qual eu era vencedor e juiz e impunha as condições do vitorioso a uma Linda desmascarada e arrasada, que devia submeter-se à minha mercê. Mas não foi assim.

Apenas nos levantamos, vestimo-nos, comemos em silêncio, tomamos o elevador juntos e nos separamos diante da estação de metrô. Quando me voltei para ver se ela já se fora, vi que ela também se voltara – e acenava com a cabeça. Tive um sobressalto. Pretenderia ela talvez inspirar-me confiança para depois vingar-se? Por alguma razão qualquer, isto não me parecia viável. Assim que ela submergiu na escada do metrô, pus a carta na caixa.

Extraordinário, este pequeno sinal no canto do envelope. Eu conhecia Karrek o suficiente para saber que ele faria Rissen sumir da face da Terra. Na rua, em meio ao formigar de cidadãos-soldados que se apresentavam para a ginástica matutina e trabalho, parei subitamente um instante, tomado por uma terrível consciência de poder. Podia repetir minha manobra quantas vezes quisesse. Enquanto não colidisse com os próprios interesses de Karrek, ele prazerosamente sacrificaria para mim algumas dúzias de vida pelo serviço que eu lhe prestara. Eu tinha poder.

Já falei antes sobre a escada que vejo como símbolo da vida. Um símbolo bastante inocente, embora ridículo: a imagem da caminhada de classe a classe de um aluno obediente, a correta promoção de graus de um servidor. Com uma sensação de náusea, senti subitamente estar no topo da escada. Não que me faltasse fantasia para imaginar mais altos graus de poder que estar nas boas graças do chefe de polícia da Cidade Química n° 4. Para isto eu tinha fantasia, dispunha de material para construir, se quisesse atingir maiores alturas e panoramas: a carreira militar, ministérios da capital – Tuareg, Lavris. Mas esta diminuta porção de poder que via frente a mim já bastava como símbolo de todo o resto. E me enauseava.

Era perfeitamente correto, perfeitamente desejável que um animal nocivo como Rissen fosse exterminado. Mas não! Eu lutava com a dúvida de que se pudesse chegar por demais longe com tal guerra de extermínio. Por alguns dias, pareceu-me simples: matava-se Rissen e Rissen não mais existiria, nem mesmo o Rissen que existia dentro de mim, que fora inoculado pelo outro, o vivo. Morto Rissen, eu seria novamente um autêntico cidadão-soldado, uma célula feliz, sadia, do organismo estatal. Mas após isso aconteceu algo que me tornou inseguro: os acontecimentos da noite – meu fracasso com Linda.

Que fora um fracasso, eu não podia esconder para mim mesmo. Verdade que conseguira saber o que queria – que ela não era um obstáculo à minha decisão quanto a Rissen. Verdade que no fundo eu não tinha medo de sua vingança, pois ela, tudo bem pesado, estava tão indissolúvel e desesperadamente ligada a mim quanto eu a ela. Verdade que eu a tinha sob minha violência, que eu estava em posse de seus segredos que ela não queria ter revelado. Tudo verdade. Não fora pois um fracasso, se apenas pensasse no objetivo limitado e idiota que me propus. E no entanto, por outro e mais importante lado, fora um fracasso total, abominável.

Suas palavras sobre o invejável amor infeliz pareciam romantismos de adolescente, embora contivessem uma certa verdade, que muito bem se adequava à minha própria atitude em relação a Linda. Meu casamento era de uma certa forma um amor infeliz, evidentemente correspondido, mas mesmo assim infeliz. Em um rosto sério, em uma boca vermelha contraída, em dois olhos grandemente abertos, eu sonhara um mundo cheio de mistérios, que saciara minha sede, apaziguaria minha intranquilidade, dar-me-ia uma segurança definitiva, se eu apenas soubesse como atingi-lo. E agora – agora que com minha violência eu penetrara tão profundamente quanto era possível penetrar, arrancar o que ela não queria entregar-me – mesmo assim persistia minha sede, minha intranquilidade e insegurança eram maiores do que nunca. Se existia alguma correspondência para o mundo por mim sonhado, era inacessível a todos os meus esforços. E eu estava, como Linda, prestes a desejar-me de volta à minha perdida ilusão, quando ainda acreditava que o paraíso atrás do muro seria conquistado.

Que relação tinha isto com minha náusea ante o poder não me é fácil explicar, mas eu sentia que a relação existia. Eu sentia que matar Rissen era desferir um golpe no ar. Assim como eu atingira o que me propunha quanto a Linda, assim como havia descoberto o que queria saber e no entanto fracassado tão profundamente que sem exagero se poderia falar em desespero, poderia também alcançar o que me propunha quanto a Rissen – uma condenação, uma execução – sem no entanto ter avançado uma polegada em direção ao que buscava.

Pela primeira vez em minha vida senti o que era poder, senti-o em minha mão como uma arma – e estava desesperado.