¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 12, 2010
 
KALOCAINA - XXIX

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo



Era minha intenção escutar a conferência, mas não foi fácil. Precisava debater-me internamente para concentrar-me, e conseguira acompanhar aqui e ali algumas frases. Tanto quanto me lembro, o tema era o desenvolvimento da vida social desde o isolamento primitivo, onde os indivíduos – cada um constituindo um centro solitário – viviam em constante insegurança – insegurança ate as forças naturais e insegurança ante outros centros solitários semelhantes –, até o Estado acabado, que era o único sentido e justificava o indivíduo, oferecendo-lhe em troca uma segurança sem limites. Este era o fio condutor, mas maiores detalhes não consigo repetir, embora se referissem à vida. Mal eu me obrigava a atenção, pensamentos sobre Linda e Rissen e sobre o novo mundo que existia e avançava faziam-me esquecer de tudo a minha volta. Quando despertei de minhas elucubrações mal conseguia permanecer calmo. Não só meu íntimo, como também meus nervos e músculos exigiam que eu saísse. Se não agisse imediatamente, poderia explodir a qualquer momento por minhas próprias forças – assim me parecia.

Por fim aproximei-me da saída, em meio à conferência. O secretário de polícia mais próximo franziu desaprovativamente o cenho, e o porteiro impediu-me a passagem com um olhar interrogativo. Declinei meu nome e mostrei minha licença de superfície como prova de identidade.
– Desculpe-me, cidadão-soldado, mas estou me sentindo terrivelmente mal. Acho que melhoro se subo alguns minutos ao ar livre. Ando doente, tive de ficar hoje o dia todo de cama, nem pude ir ao trabalho...

Ele anotou meu nome, o horário de minha saída e liberou-me a porta.
Tomei o elevador, Repeti meu pedido ao ascensorista, que também o anotou e liberou-me. Subi até o terraço.

No primeiro instante, não consegui perceber o que havia de diferente. Algo absolutamente estranho ocorria no terraço deserto. Fiquei aterrorizado sem saber por quê. Após alguns segundo descobri o que me apavorava. Não ouvia o ruído de aviões que preenchia o ar dia e noite. Tudo era silêncio.

No interior dos prédios residenciais, na profundidade dos locais de trabalho eu conhecera um relativo silêncio. Lá o ruído das linhas de metrô e dos aviões era absorvido por paredes e camadas de terra, e os ventiladores giravam com um sussurro suave e sonolento; um amortecimento de todos os sons, um alívio e repouso, como quando sentimos o sono envolver-nos com seu manto e nos tornamos sós, pequenos, encolhidos. Mas o silêncio do terraço não se assemelhava a este silêncio relativo. Era sem limites.

Nas marchas noturnas e ao voltar para casa de festas e conferências, vi muitas vezes as estrelas brilharem entre as silhuetas móveis dos aviões, mas que havia de mais nisto? Elas não brilhavam o suficiente para tornar supérflua a lanterna de bolso. Ouvi falar uma vez que elas eram sóis distantes, mas não consigo lembrar se a informação causou-me alguma impressão marcante. Subitamente, vi no silêncio infinito o firmamento estender-se de uma imensidão a outra e girar vertiginosamente pelos colossais espaços vazios entre estrela a estrela. Um Nada incomensurável fez-me perder o fôlego.

Então ouvi algo que já conheci e vira os efeitos, mas que até então não tinha ouvido: o vento. Uma brisa noturna suave, que passava entre as paredes e movimentava lentamente os oleandros. E embora talvez envolvesse apenas alguns poucos distritos com seu suave murmúrio, eu com toda a minha vontade não podia defender-me de uma poderosa fantasia, a de que a brisa era o alento dos espaços noturnos, que emanava da escuridão tão suave e naturalmente como o suspiro de uma criança que dorme. A noite respirava, a noite vivia, e tão longe quanto eu podia ver, as estrelas pulsavam como corações e enchiam o vácuo com ondas vibrantes de vida.

Quando voltei à consciência de mim mesmo, estava sentado no muro do terraço e tremia, não de frio, pois a noite era morna, quase quente, mas de uma forte comoção dos sentidos. O vento ainda soprava, embora mais suavemente, e vi que não nascia da escuridão dos espaços mais de camadas de ar próximas da Terra. As estrelas ainda cintilavam da mesma forma, e lembrei-me que suas pulsações de luz eram uma ilusão de óptica. Mas isto não significava nada. P que vi e ouvi poderia ter sido ilusão. Mas tomara a forma de um outro universo, um universo interior – onde eu costumava encontrar uma carapaça seca e enrugada, que eu chamava de mim mesmo. Achei que havia roçado o abismo vivo pelo qual Rissen clamava e Linda sentira e vira. “Não sabes que aqui emerge a vida?”, dissera a mulher em meu sonho. Eu acreditava nela, e estava certo de que tudo poderia acontecer.

Eu não podia voltar à festa e à conferência. Para mim agora era indiferente que alguém tivesse notado minha ausência. Toda a atividade formigante, que exatamente agora se manifestava em mil salas de festas e conferências nos subterrâneos da Cidade Química n° 4, pareceu-me longínqua e irreal. Eu não pertencia àquilo. Eu me decidira a criar um novo mundo.

Eu queria voltar para casa, para Linda. E se ela não tivesse chegado? Se eu não a encontrasse? Então eu continuaria, iria até o jovem que denunciara Rissen, iria até a mulher de Rissen. Não sabia onde morava o jovem, mas o endereço do apartamento de Rissen eu tinha, ficava no distrito dos laboratórios, onde eu possuía licença e poderia ir e vir quanto quisesse. Ele havia dito: “Minha mulher pressente – minha mulher pode ter-me denunciado”. Tivesse ela oferecido tão desesperada resistência como eu, então estava próxima a entender. Primeiro para casa, depois para ela. Não existiam mais dúvidas em mim. Eu me decidira a criar um novo mundo.

Não se via ninguém. Tão imperceptivelmente quanto possível, galguei o baixo muro que separava o terraço da rua. No silêncio, meus passos ecoavam de modo estranho, mas não me pareceu que despertariam a atenção de alguém, tampouco existia vivalma para impedi-los. Como não havia aviões no céu, a luz das estrelas era suficiente para que eu encontrasse meu caminho, e não me preocupei em acender a lanterna de bolso.

Embora eu caminhasse completamente só sobre a terra, debaixo das estrelas, tinha um estranho pressentimento de não estar só. Assim como eu me dirigia ao desconhecido em busca do fundamento vivo e profundo do universo, também Linda talvez se dirigisse a algum lugar, a não sei quem. E não seria possível que exatamente agora um outro, nas mil cidades do Estado Mundial, também não estivesse a caminho, como nós, ou já tivesse talvez chegado? Não seria possível que milhões de seres estivessem a caminho, aberta ou ocultamente, voluntária ou involuntariamente – no imenso Estado Mundial, e por que não no Estado vizinho? Há alguns dias atrás um tal pensamento ter-me-ia feito recuar, mas como se pode fazer algo ante uma fronteira, mesmo ante mil léguas, quando sentimos que nossos impulsos nos conduzem ao coração do universo?

Ouvi a distância os passos em marcha rítmica do vigia do distrito, com suas rápidas pausas e um pequeno chiado cada vez que fazia meia volta. Era curioso ouvir tais ruídos ao ar livre. Que pensaria realmente o vigia em sua solidão na noite silenciosa? E eu – que pensava eu? Só agora me perguntava de onde vinha todo este silêncio.

Mas apenas por um momento. Eu não conseguia resolver o enigma, e isso me era indiferente. Apenas minha missão era importante. O sussurro distante começou então a tornar-se mais intenso e crescer até um ruído de motores. As máquinas voadoras estavam ali novamente. Se fora o silêncio anterior que tornava o ruído tão aterrorizador, ou se ele nunca fora tão intenso antes, não sei. De qualquer forma era tão ensurdecedor que tive de proteger-me contra o muro até que meus tímpanos se adaptassem.

O firmamento inteiro tornou-se escuro, pesado e escuro, e a escuridão formigava de uma forma que me era estranha. No fundo de mim mesmo, mas senti do que vi, corpos sólidos preenchendo o espaço em torno de mim. Empunhei minha lanterna e assestei o facho a minha frente. Encontrei uma figura humana a meio metro de distância. Pára-quedistas! Logo após dez poderosas lanternas me vasculhavam o rosto e senti meus braços presos por mãos fortes.