¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 09, 2010
 
REFLEXÕES ANTE O
POLVO DO FRANÇÊS



Dia dos pais é dia complicado para almoçar em São Paulo. O da mães também. De repente, não mais que de repente, as famílias sentem-se imbuídas de profundos sentimentos de amor e invadem os restaurantes. São dias em que convido os meus para comer algo chez moi. Como nestes dias minha gente anda batendo pernas pelo mundo, e como não gosto de comer sozinho em casa, tentei um de meus botecos diletos. Talvez não estivesse lotado. Não estava. Como companheiro de trago, convidei Karl Kaustky.

Falo da Mercearia do Francês, na esquina da Pará com a Itacolomi. É um restaurante com visão do futuro: fica em frente ao cemitério da Consolação. Do lado de cá da rua, os que ainda estão aqui. Do lado de lá, os que já partiram. No lado de cá, a vida e as angústias e alegrias inerentes à vida: amor, afeto, amizade, boa conversa, doenças, dívidas, preocupações, fome, sede e satisfação da fome e da sede, cardápios e a bona-chira. Do lado de lá, a paz de quem já não se preocupa mais com essas veleidades. Ainda há pouco, um vizinho de mesa atravessou a rua. Acontece. Ainda mais nesta idade.

Pedi o polvo do françês – assim mesmo com ce cedilha, que se vai fazer? O restaurante é francês, mas os serviçais são tupiniquins. Seja como for, era grelhado, com mel e açafrão, mais risoto à parmigiana e feijão fradinho. Estava pensando em um Nero d’Avola, quando uma adorável sommelière me propôs um Malbec Terrazas, com um canivete suíço de brinde. Como jamais tive um em minha vida, topei. Sou, doravante, o feliz proprietário de um canivete suíço.

Há quem abomine cemitérios. Eu gosto e por esta preferência já fui chamado de necrófilo. Nada disso. O que neles me atrai não são os mortos, mas a arquitetura e o silêncio, seus ciprestes e sua história. Quando visito tais ilhas de tranqüilidade, no que menos penso é nos que lá estão enterrados. Todo cemitério é um arquivo histórico. Ali estão vidas passadas e suas trajetórias, ambições e projetos, vaidades e misérias. Nos países escandinavos, ficam em torno às igrejas e têm um nome simpático, kyrkogård, o jardim da igreja. Os fiéis, ao cumprirem seu ritos litúrgicos, revisitam os seus.

Talvez o sentido seja outro: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris. Certa vez, li em uma tumba forrada de ossos, creio que em Évora, Portugal: aqui estão os nossos, esperando pelos vossos. Ou, como disse certa vez uma atriz pornô espanhola: recuerda-te hombre, que del polvo vienes y al polvo revertirás. Polvo, em espanhol, não significa apenas pó.

Se hoje a visão dos cemitérios me traz paz, nem sempre foi assim. Em minha infância, cemitérios me aterrorizavam. Os mais velhos me contavam histórias de almas penadas, mulas sem cabeça, cadáveres que ressuscitavam, coisas que aconteciam geralmente à meia-noite. Os causos terminavam tarde e era justo nessa hora maldita em que eu cavalgava de volta para casa. Ao passar por um cemitério, sei lá se impressão minha, o cavalo resfolegava e seu trote se tornava nervoso, e eu sentia nitidamente algo gelado na garupa. E de nada adiantava galopar, a coisa continuava grudada junto. Só me sentia a salvo quando avistava meu rancho. A coisa gelada aquela apeava e eu conseguia respirar serenamente.

Histórias dos antigos para impressionar crianças, penso hoje. Duvido que acreditassem naquilo. Mas deviam se divertir à beça nos incutindo aqueles pavores. Claro que tais medos vinham imbuídos em crenças tipo eternidade, vidas futuras, existência da alma, céus e infernos. Durante muito tempo cultivei este meu medo a cemitérios. Foi preciso limpar minha mente de superstições e conhecer outras culturas, para sentir que tais campos nos inspiram paz. Um dos mais simpáticos cemitérios que conheci foi o de Salzburg, a cidade de Mozart. Belíssimo, com suas tumbas rasas e cruzes em ferro trabalhado, está em plena cidade e se confunde com os bares. Não é mau beber junto aos que já beberam.

Nos cemitérios estão as raízes das cidades. Enquanto o homo sapiens não sepultava os seus, nada o prendia a algum lugar. Em A Cidade na História, diz Lewis Mumford:

“O respeito daquele homem antigo pelos mortos, em si mesmo uma expressão de fascínio pelas suas poderosas imagens em vigília e de sonho noturno, teve talvez um papel maior ainda (no desenvolvimento dos aglomerados humanos) que as necessidades de ordem mais prática, ao fazer com que se procurasse um local fixo de encontro e afinal um ponto contínuo de fixação. Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um túmulo coletivo. Constituíam marcos aos quais provavelmente retornavam os vivos, a intervalos, a fim de comungar com os espíritos ancestrais ou aplacá-los. (...) A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos. Num sentido, aliás, a cidade dos mortos é a precursora, quase o núcleo, de todas as cidades vivas”.

Frente a este núcleo ancestral da São Paulo viva, passei ontem minha tarde. Acompanhado por Karl Kautsky, que escreve em A Origem do Cristianismo:

“A suposição de uma vida nas trevas, após a morte, era, repetimos, uma hipótese ingênua requerida para as explicações de certos fenômenos dos sonhos e não o resultado de uma necessidade real do espírito. A situação mudou quando a comunidade entrou em decadência e o indivíduo começou a desvincular-se dela. Ele não mais tinha a sensação de que sua atividade perduraria no Estado. Sua atitude para com o Estado era de indiferença e muitas vezes até de hostilidade. Era-lhe intolerável, entretanto, a idéia de que seria completamente aniquilado. Surgiu um temor da morte como nunca se conhecera na Antiguidade. A covardia prosperou, a Morte tornou-se a imagem do terror, quando anteriormente era considerada a irmã do Sono”.

Deste medo, que curti quando criança, não mais padeço. De meu boteco, contemplo serenamente meu futuro. Mas não atravessarei aquela rua. Os vermes não degustarão minhas carnes como degustei aquele polvo do françês. Essa de “os nossos esperando pelos vossos”, decididamente nada tem a ver comigo. A Primeira-Namorada tem recomendação expressa não para grelhar-me, mas para reduzir-me a cinzas, tão logo parta.

Enquanto isso, a vida – esta vida que sabe ser cruel e ao mesmo tempo generosa – continua. O polvo, apesar do ce cedilha, estava sublime. O Malbec também. E Kautsky é sempre bom interlocutor. Santé!