¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 31, 2010
 
SÃO PAULO CHAMA


Há pouco, escrevi sobre a cacrolândia que se aproximava de meu bairro, Higienópolis. Um leitor entendeu que vivo nas cercanias do inferno.

Tenho verdadeiro repúdio pela cidade na qual escolheste viver. Sempre que vou para esse lugar, me desagrado de algo. É o provincianismo metropolitano (parece contradição? Não é. São os Fasanos da vida, o paulistano que se julga rei do mundo, atrás talvez só do nova-iorquino...), o trânsito insuportável, as intermináveis filas, o aglomerado humano, os preços elevadíssimos, as pessoas - especialmente as mulheres - extraordinariamente feias (nasci e cresci em Santa Maria e moro em Porto Alegre, convenhamos que tenho razão no que falo).

Essa cidade é a ante-sala do inferno. E olha que já visitei outras metrópoles. Como consegues viver aí, não faço idéia. Mesmo em Higienópolis, Alphaville, munido de helicóptero e de uma horda de serviçais, ainda assim creio que não conseguiria viver aí.


Não é bem assim, caro leitor. Isso é o que eu pensava quando cheguei aqui, nos anos 70. A primeira impressão que se tem de uma cidade marca muito. Entrei por uma marginal, não lembro agora se a do Tietê ou Pinheiros, um fedor abominável perfurava a janela do ônibus. Isso era o de menos. No rio, duas pessoas faziam regata, sem importar-se com o mau cheiro. O homem se adapta a tudo, pensei na ocasião. Mas eu não penso adaptar-me a esta cidade.

Me prometi jamais viver aqui. Tive acenos da Veja, não aceitei. Em 90, estava desempregado em Curitiba e a Folha de São Paulo me chamou. Abandonei o marasmo de Curitiba – cidade confortável de morar, confesso – e vim. Hoje, não saio daqui nem morto. Pela primeira vez em minha vida, sei onde vou morrer, salvo acidente. São Paulo tem as melhores cabeças do país, os melhores salários, o melhor jornalismo, o maior parque gráfico, o maior número de editoras, livrarias, cinemas e universidades, a mais farta escolha culinária.

Aqui pertinho de casa, só numa ruela de menos de 200 metros, a praça Vilaboim, posso escolher entre três restaurantes japoneses, um francês, um alemão, um mexicano, um italiano, um árabe, um brasileiro. Santa Maria toda não chegará nem daqui a um século às opções culinárias daquela ruelinha. Estou falando, reitero, apenas de uma pequena rua aqui do bairro.

No Fasano ninguém é obrigado a ir. Freqüento ótimos restaurantes, nos quais não pago nem um terço dos preços do Fasano. Se há paulistanos que se julgam o centro do mundo, eu os desconheço. Meus amigos são pessoas que perambularam pelo mundo todo e sabem muito bem que o mundo não tem centro. Em uma cidade que faz seis ou sete Uruguais, há muita opção de amigos.

Os preços são caros? Isso é verdade. Mas sempre se paga um pouco mais para viver bem. Em função da supervalorização do real, há uma distorção dos preços no Brasil. Posso comer muito bem por 25 reais em Paris ou Madri, com entrada, prato principal, sobremesa e eventualmente vinho. Aqui, por esse preço, não consigo nem vinho decente.

As mulheres são feias? Pode ser. No centro da cidade, onde circula o povão. Povão é sempre pobre e beleza é mercadoria escassa entre os pobres, que se vai fazer? No shopping aqui ao lado de casa, há um desfile diário de beldades que se esparrama pelas ruas adjacentes. Ao deambular por meu bairro, seguido tropeço com mulheres de sonho.

O trânsito é insuportável? De fato. Mas isto para quem se locomove. Não tenho carro. Nunca tive. Sou pedestre inveterado e conheço muito pouco da cidade, talvez nem um décimo de seu território. É o que me basta. Raramente saio de meu bairro. Não há por quê. O bairro mais distante que conheço é Vila Madalena, a seis quilômetros do meu. Às vezes, nos fins de semana, vou almoçar lá. Isso é distância muito curta aqui. São Paulo é pandemônio para quem trabalha longe de casa. Aí é complicado. Em verdade, de São Paulo não gosto muito. Só me reconciliei com a cidade no dia em que tomei uma decisão intelectual: não vivo em São Paulo. Vivo em Higienópolis.

Cidades verticais não me agradam. Mas nem sempre se come pão quente. Faço vida de bairro, não dou cem passos sem ser cumprimentado por alguém. Em um raio de 500 metros de meu apartamento, posso esquecer a carteira que tenho crédito. Vivo em uma pequena cidade. Minha geografia é menor do que a que uso em Dom Pedrito. Os garçons todos do pedaço me conhecem pelo nome e me recebem com alegria.

Tenho boa imprensa em minha porta todos os dias. Estive há pouco em Santa Maria, cidade universitária. Estadão ou Folha não chegam mais lá. O jornal mais abrangente que informa os santa-marienses é aquela excrescência, a Zero Hora. A RBS atrasou culturalmente o Rio Grande do Sul. Porto Alegre, cidade onde vivi meus melhores anos, não suporto mais. Só vou para rever amigos e namoradas.

Tenho uma sobrinha que nasceu em Santa Maria e veio trabalhar aqui. A cada feriadão, se tocava de ônibus para o Sul. Isso agora no início, disse para ela. Mais um pouco, e 24 horas em Santa Maria será uma tortura para ti. Não deu outra. Ela ainda volta para visitar os seus. Mas não consegue esquentar banco na cidade. Eu também volto a Dom Pedrito. Para rever amigos de adolescência. Não fosse por isso, acho que meus pés jamais pisariam aquelas ruas. Apesar do afeto que tenho por Dom Pedrito. “A cidade pequena, olha e passa”, dizia Kavafis.

São Paulo tem muitas ilhas. As nobres e as pobres. Se você consegue viver em uma ilha nobre, sem ter de percorrer as pobres, viver aqui se torna agradável. Feriadão em São Paulo é algo delicioso. Dois ou três milhões de pessoas saem da cidade, que vira uma espécie de Dom Pedrito em domingo. Em feriadão, daqui não saio nem atado.

Hoje, enfrentei uma Angélica deserta quando fui a uma mesa eleitoral – para não votar, bem entendido. De lá, fui para a praia. Isto é, para o Prainha, meu boteco, uma espécie de sala de estar onde recebo meus amigos. A quinze minutos de caminhada, está a Vilaboim, onde em poucos metros tenho a culinária de seis ou sete países.

Claro que é melhor viver em Paris ou Madri. Hoje, até poderia morar lá. Ocorre que meus amigos estão aqui e não tenho mais idade para construir novos círculos. Mas são cidades que estão a meu alcance, na hora em que quiser. Então, viver aqui continua sendo mais conveniente. Se você passa uma semana em São Paulo, pode voltar assustado para a aldeia. Quem mora aqui algum tempo não volta mais.

São Paulo chama. E vicia.

sábado, outubro 30, 2010
 
CONSELHO CENSURA LOBATO (I)


Leio na Folha de São Paulo que um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicado no Diário Oficial da União, sugere que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, não seja distribuído a escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob a alegação de que é racista. Para entrar em vigor, o parecer precisa ser homologado pelo ministro da Educação, Fernando Haddad. O texto será analisado pelo ministro e pela Secretaria de Educação Básica.

Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem da personagem Tia Nastácia e de animais como o urubu e o macaco. "Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano", diz a conselheira que redigiu o documento, Nilma Lino Gomes, professora da UFMG. Entre os trechos que justificariam a conclusão, o texto cita alguns em que Tia Nastácia é chamada de "negra". Outra diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão". Em relação aos animais, um exemplo mencionado é: "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens".

Para começar, digam o que quiserem os arautos do movimento negro, não vejo porque não chamar negro de negro. Não há nenhum desprestígio nisso, como tampouco há em chamar um branco de branco ou um árabe de árabe. Dona Nilma está exagerando. Foi possuída pela histeria dos movimentos negros.

A autora do documento sugere ao governo duas opções: 1) não selecionar para o PNBE obras que descumpram o preceito de "ausência de preconceitos e estereótipos"; 2) caso a obra seja adotada, tenha nota "sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura".

A moça, ao que tudo indica, desconhece a obra de Lobato. Se lesse O Presidente Negro, queimaria em efígie o escritor taubateano.

Para Miss Jane, personagem americana de Lobato, a América seria a privilegiada zona que havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um segundo “entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto”. As leis de imigração se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo mundo resta a flor dos imigrantes. Ocorre então o que Miss Jane chama de “o erro inicial”: entra no país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.

Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas raças ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolva m paralelas dentro do mesmo território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para ela, o ódio impede mantém as raças em estado de relativa pureza.

– Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...

Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde quer que se encontrassem e atraídos para a Canaã americana. Estando o país bastante povoado, fecha-se as portas ao fluxo europeu e a nação passa a crescer apenas vegetativamente. É quando surge a inflação do pigmento. As elites pensantes haviam-se convencido que a restrição da natalidade se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade. Rompe-se então o equilíbrio: “Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso”.

Urge desembaraçar-se dos negros. A solução branca é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil “não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana”.

Para Miss Jane, os negros se batiam por uma solução muito mais viável: queriam a divisão do país em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço conjunto de ambas as raças.

Se não era possível gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Temos então, já no início deste século, um escritor brasileiro antecipando as propostas de líderes negros contemporâneos como Farrakhan. É bom lembrar que nessa época Lobato ainda não havia viajado para os Estados Unidos.
Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se ameaçador. É quando surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele -vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926).

Na época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era “horrivelmente esbranquiçado”. O espírito visionário de Lobato antecipa, en passant, a tendência negra americana que gerou um Michael Jackson, por exemplo. Inaugurando, já no início do século, a atual categoria do “politicamente incorreto”, diz o estupefato sr. Ayrton:

– Barata descascada, sei...

No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camuflagem da despigmentação. Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato à reeleição.

 
CONSELHO CENSURA LOBATO (II)


Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy. Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça de 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam nosso mundo de hoje, 1998.

É esta possibilidade de “radio -transportar” os dados que opera uma reviravolta nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.


Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros – a ebriedade negra e o orgulho branco –, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade.

Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação.

Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea. Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a segunda camuflagem do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.

– Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos.

A vida da América voltou à normalidade. Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor. Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...

Confesso que ainda não entendi como os ditos movimentos negros ainda não pediram a proibição de O Presidente Negro. Pois nesta obra-prima – e premonitória – de Lobato, o negro não fica muito bem fotografado. Os institutos de desencarapinhamento são uma ironia um tanto perversa. O negro branqueado é uma barata descascada. O final da ficção não é nada encorajador: a raça negra se extingue. Vai ver que os militantes da negritude ainda não a leram.

No ritmo em que vamos, qualquer dia será censurado O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. Ou o Chapadão do Bugre, de Mário Palmério. Nestes dias de racismo índio e negro, crioulo e bugre viraram palavrões.

sexta-feira, outubro 29, 2010
 
SUPREMO APEDEUTA RIDES AGAIN


Sem dúvida alguma, ele é um fenômeno de comunicação. A imprensa lhe confere o direito de proferir qualquer despautério impunemente. Hoje, em São Paulo, na 26ª edição do Salão Internacional do Automóvel, comentando as declarações sobre o aborto do cabo eleitoral vaticano de Serra, disse Lula:

"Não vejo nenhuma novidade na declaração do Papa. Esse é o comportamento da Igreja Católica desde que ela existe. Se você for ver o que a Igreja Católica falava há 2 mil anos, ela falava exatamente o que o papa falou”.

Espírito de síntese é o que não falta ao Supremo Apedeuta. Conseguiu resumir em três frases um amontoado de bobagens. Jornalista algum comentou esta solene besteira. Ainda no início deste mês escrevi que dois dos campeões da Igreja, são Tomás e santo Agostinho, eram favoráveis ao aborto. Segundo Agostinho (séc. IV), chamado pela Igreja de Doutor da Graça, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana, o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Isto é, só a partir de 40 dias após a fecundação, quando é infundida no embrião a "alma racional", se pode falar em pessoa.

Para o Doutor Angélico (séc. XIII), como os católicos chamam o aquinata, a chegada da alma ao corpo também só ocorre no 40º dia de gravidez. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312. Foi em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. Ou seja, durante dezoito séculos a Igreja nada teve contra o aborto.

A Igreja nunca falou a mesma coisa de dois mil anos para cá. Mandou Joana d’Arc para a fogueira, em 1431. E canonizou-a cinco séculos depois, em 1920. Ameaçou Galileu com a fogueira, em 1633, e obrigou-o a dobrar-se ante o obscurantismo:

“Eu, Galileu, filho do falecido Vincenzo Galilei, florentino, de setenta anos de idade, intimado pessoalmente à presença deste tribunal e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Senhores Cardeais Inquisidores-Gerais contra a gravidade herética em toda a comunidade cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as mãos os Santos Evangelhos, juro que sempre acreditei que acredito, e, mercê de Deus, acreditarei no futuro, em tudo quanto é defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e Apostólica. Mas, considerando que (...) escrevi e imprimi um livro no qual discuto a nova doutrina (o heliocentrismo) já condenada e aduzo argumentos de grande força em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles, fui pelo Santo Oficio acusado de veementemente suspeito de heresia, isto é, de haver sustentado e acreditado que o Sol está no centro do mundo e imóvel, e que a Terra não está no centro, mas se move; desejando eliminar do espírito de Vossas Eminências e de todos os cristãos fiéis essa veemente suspeita concebida mui justamente contra mim, com sinceridade e fé verdadeira, abjuro, amaldiçoo e detesto os citados erros e heresias, e em geral qualquer outro erro, heresia e seita contrários à Santa Igreja, e juro que no futuro nunca mais direi nem afirmarei, verbalmente nem por escrito, nada que proporcione motivo para tal suspeita a meu respeito."

Foi só no ano 2000, quase quatro séculos depois, que o papa João Paulo II pediu desculpas por todos os erros da Igreja cometidos nos últimos dois mil anos, inclusive o julgamento de Galileu.

A Igreja muda, sim senhor. No século XIV, um tratado jurídico escrito por Frei Nicolau Emérico (1320 – 1399), da Ordem dos Pregadores e grande Inquisidor de Aragão, intitulado O Manual dos Inquisidores, regulamentava a tortura para obter confissões de hereges e bruxas. Uma outra obra, de autoria dos dominicanos Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, o Malleus Maleficarum (Martelo dos Bruxos), dedicava-se exclusivamente aos crimes de bruxaria. Se em nossos dias a tortura é escondida nos porões das ditaduras, naqueles radiosos dias do Medievo era regulamentada publicamente por autoridades eclesiásticas.

Muitos eram os métodos para descobrir se uma mulher era bruxa. Os mais populares eram as chamadas ordálias, ou juízos de Deus. Eram de uma simplicidade e eficácia extraordinárias. A acusada era amarrada pelos braços e pernas e jogada num rio. Se não afundasse, era óbvio que era feiticeira: a água, elemento puro, não aceitava a bruxa, elemento impuro. Era então enviada à fogueira. Se afundasse, era porque a água, elemento puro a considerava também pura. Morria afogada. Mas pelo menos sua alma estava salva.

Uma outra ordália era carregar nas mãos, de um ponto a outro, por uma distância de cerca de dez metros, um ferro em brasa. Se a infeliz tivesse as mãos queimadas, era óbvio que era bruxa ou herege. Se não as queimasse, ficava claro que era inocente.

Se a Igreja não mudasse, dona Dilma provavelmente seria jogada ao Tietê, para vermos se boiava ou afundava. Ou teria de descer a rampa do Palácio do Planalto, segurando um ferro em brasas, para provar que não era bruxa. O Supremo Apedeuta deveria dar graças a Deus pelo fato de a Igreja não falar hoje o que falava de dois mil anos para cá.

 
PSDB APÓIA ABORTO


De Vicente da Silveira Limberger, recebo esta oportuna mensagem:

Caro Janer.

Gostaria de começar te felicitando pelo fato de ser um dos raros articulistas brasileiros a manterem a lucidez durante o período eleitoral e mostrar os dois postulantes ao cargo de presidente da república e seus respectivos partidos como eles realmente são: dois lados da mesma moeda.

Tenho mantido uma distância saudável da campanha eleitoral, mas pude perceber que temas como aborto e a discussão moral e religiosa ganharam espaço na campanha, especialmente do candidato "oposicionista", que até pouco tempo atrás fazia de tudo para colocar Lula na sua propaganda. Ao descobrir que sua oponente perdeu votos na reta final do primeiro turno graças ao lobby anti-aborto promovido por religiosos, agora Serra tenta posar farsescamente de defensor da vida e guardião da moral e dos bons costumes. Não tenho nada contra a inclusão desses temas no debate eleitoral, pessoalmente acho mais produtivo do que ver dois candidatos discutindo tarifa de ônibus ou mutirão da catarata. O problema é ver posições sendo defendidas da boca pra fora, apenas para iludir os idiotas úteis que constituem a esmagadora maioria do eleitorado, como se opiniões de ambos os candidatos em período eleitoral valessem mais que documentos oficiais redigidos pelos seus partidos ou toda uma biografia de serviços prestados a causa comunista por ambos os candidatos.

Dilma foi pega na mentira ao dizer-se contrária a descriminalização do aborto, contrariando o que ela mesmo dizia até pouco tempo atrás, estando também o aborto no programa oficial do PT, até aí, nenhuma novidade, os petistas sustentam a toda hora farsas desse tipo para conquistar o poder, mas estaria o seu oponente imune a atos dessa natureza? Não acredito.

Serra também se diz contrário a descriminalização do aborto, porém a segunda edição do famigerado Plano Nacional de Direitos Humanos, publicada no último ano do governo FHC, em sua diretriz 179 diz sobre o "alargamento dos permissivos para a prática do aborto legal, em conformidade com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro no marco da Plataforma de Ação de Pequim", em sua diretriz 334, o plano fala sobre "Considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde para os casos previstos em lei”. Querer considerar o aborto como "tema de saúde pública" é exatamente aquilo que Dilma é acusada pelos tucanóides de plantão, que segundo os mesmos seria uma forma velada de defender a liberação do aborto. Onde estavam eles quando esta edição do plano foi assinada?

Até onde eu sei, tanto Serra quanto o PSDB jamais abjuraram do que foi escrito nas duas primeiras edições do PNDH, sendo a oposição destes ao aborto e ao PNDH 3 tão verdadeira quanto uma nota de 3 reais. Chego a sentir pena de amigos meus, que se consideram direitistas, consentirem em serem usados como idiotas úteis a serviço dos tucanos, e ainda acreditando que estão prestando um grande serviço ao país...

Abraço.



Meu caro Vicente:

Parece que o Serra beijando um terço comoveu Sua Santidade. A tal ponto que ontem, a três dias das eleições, baixou encíclica manifestando apoio escancarado ao PSDB. Pelo jeito, Bento XVI está mal assessorado. A propósito, dona Ruth Cardoso, ícone dos tucanos, era francamente favorável ao aborto.

quinta-feira, outubro 28, 2010
 
AS CEPAS SÃO MUITAS


Meu caro Carlos,

De fato, não sou varietal. Bebi em muitas fontes em minha vida e não estou acostumado com uma só. Tenho meus escritores diletos, mas nunca consegui concordar integralmente com nenhum deles. Sempre leio livros com caneta em punho. À menor discordância vai anotação à margem. Por essa razão, não gosto de livros emprestados. Não posso sublinhar. Tampouco gosto de emprestar livros: os meus estão sublinhados.

Em meus verdes anos, li uma História da Filosofia, de autor que não é muito bem visto pelos acadêmicos, Will Durant. É que acadêmicos em geral são metafísicos, e ianques são pragmáticos. Um Husserl ou Heidegger jamais seriam americanos. Bom, o Durant listava uma série de livros que deveriam ser lidos por todo homem medianamente culto. Os autores iam de Aristóteles e Platão a Montaigne e Descartes. Eu teria uns quinze anos e vivia ainda em Dom Pedrito, onde a livraria do seu Naziazeno só tinha livros didáticos. Fui a Santa Maria, onde a Globo tinha uma filial. E apresentei ao balconista minha listinha.

Para meu espanto, encontrei muita coisa. A Globo editava na época uma das coleções que teve enorme importância na formação dos brasileiros, a Biblioteca dos Séculos. Encontrei Aristóteles e Platão, Montaigne e Descartes, Agostinho e Diderot, e muitos outros. Faltou-me a Suma Teológica. Ainda bem. Na época, eu não imaginava que a Suma tinha dez tomos.

Voltei a Dom Pedrito com uma pesada carga nos ombros. De lápis em punho, fui derrubando os livros. Aristóteles não me tocou muito, mas os Diálogos receberam anotações de ponta a ponta. Platão escreve com clareza, nada a ver com as confusas considerações de Heidegger ou Sartre. Certamente aquelas considerações de um pivete de quinze anos eram descabidas, eu não tinha elementos para julgar a cultura da época. Mas me reservava o sagrado direito de discordar.

Hoje, mais adulto, vejo em Platão as raízes de Pol Pot. Mas na época Pol Pot ainda não mostrara ao que vinha. Nem por isso deixo de admirar o imenso esforço intelectual de Platão, feito em época em que apenas se começava a tatear o pensamento.

Descartes foi decepção total. O cogito me pareceu extremamente precário. Que história é essa de reduzir a certeza da existência à existência do pensamento? Um animal não pensa e no entanto existe. Diga-se o mesmo de uma pedra. Se eu afirmasse, lá em Dom Pedrito, que concluíra que existia porque pensava, seria tomado como doido varrido. Mas Descartes era francês. O mundo está cheio de bobagens que só convencem pessoas cultas.

Um proveito tive daquelas leituras. Ao cursar Filosofia, já tinha uma boa noção de Filosofia. Outras vantagens colaterais: abandonei o cristianismo que me fora enfiado a fórceps na cabeça. Não crer em Deus me foi extremamente salutar. Me senti dono de minha vida, em vez de instrumento de uma vontade alheia. Foi como se recém tivesse nascido. Quando fui assediado pelos comunistas, considerei o marxismo uma ideologia muito tosca. Desse sarampo não padeci.

A descoberta seguinte foi Nietzsche, o alemão que filosofava a golpes de martelo. Derrubou o que restava de minhas convicções. Foi com certeza um dos pensadores que mais me influenciou. Me senti renovado após sua leitura, como serpente que joga fora a pele antiga. Mas jamais consegui concordar com ele em um conceito que é chave em sua obra, o eterno retorno. Creio que na História não há retorno algum. E sempre desconfiei de sua idéia da morte de Deus. Era mais wishful thinking que outra coisa. Deus não morre. A estupidez humana é eterna.

Comecei com Ecce Homo, sua última obra antes de penetrar nas trevas. Lembro muito bem de sua leitura. O livro me foi trazido por um amigo um tanto maluco, mescla de físico, matemático e halterofilista. "Janer, tens de ler esse alemão". Comecei a leitura lá pelas dez da manhã. Perdi o almoço, não conseguia parar. Lá pelas tantas, diz Nietzsche: "Sei que minha leitura absorve e não pode ser interrompida". Seriam umas três ou quatro da tarde. Vontade de jogá-lo no lixo. É claro que não joguei.

Na universidade, quando cheguei a Heidegger e Sartre, já estava vacinado. Bocejei de tédio e cheguei a dormir nas aulas. Quando começava a roncar, minha companheira me cutucava para que acordasse. Só fui entender Sartre quando li as memórias de Simone. Nelas, la Beauvoir contava que um dia Sartre chegou todo contente e lhe disse: ontem escrevi um período que nem eu consegui entender.

Em suma, nunca aceitei pensador nenhum de mão beijada. Mesmo em relação aos que mais admiro, tenho minhas restrições. Jamais assumi uma filosofia, fosse qual fosse. Deve ser por isso, suponho, que sou considerado polêmico. Se alguém me pergunta qual é minha filosofia, respondo sem hesitar: nenhuma. Livre pensar é só pensar, dizia o Millôr.

Desisti da Filosofia já na metade do curso, quando um dos mais conceituados professores da universidade afirmou: o objeto da Filosofia hoje é buscar o objeto da Filosofia. Chega de masturbação, disse a meus botões. E me voltei para a literatura. Se a Filosofia discutia o homem abstrato, com H maiúsculo, na literatura eu encontrava os homenzinhos concretos do dia-a-dia, aqueles com H minúsculo.

Sempre me considerei um pouco adiante dos meus. Em minha juventude, escandalizei não pouca gente, seja pelo que pensava, seja por meu comportamento. Os tempos eram outros, moralistas. Hoje tudo mudou e ninguém consegue mais escandalizar ninguém. Saudades dos 70.

Dificilmente algo me choca. Mas um companheiro de bar conseguiu o milagre. “Te cuida, Janer, não há vantagem alguma em estar à frente de sua época”. Era um publicitário. Ele precisava estar dentro de sua época, para bem exercer seu ofício. O que mais me chocou foi ouvir aquela insanidade de pessoa que eu tinha por culta.

E assim tenho vivido, meu caro Carlos, bebendo ao sabor dos ventos. As cepas são muitas. Não vejo porque beber de uma só.

 
MENSAGEM DO CARLOS


Não sou muito de me jogar confetes, mas um leitor, com quem tomei um vinho há algumas semanas, me envia mail que merece algumas reflexões:

A personalidade humana é composta de infinitas facetas. Muitas delas têm certa harmonia entre si, mas a maioria é independente. Um ateu, por exemplo, dificilmente vai ser supersticioso, porque as duas características são antagônicas.

Mas pode ser honesto ou malfeitor, porque uma coisa não tem nada com a outra, por mais que o Olavo diga o contrário. Os grupos sociais envolvem definições de características em graus mais ou menos abrangentes. Ás vezes a variável que os define é uma só, como o fato de ser gremista ou colorado.

Mas no campo da ideologia ou da religião, o número de variáveis que caracteriza os grupos sociais é maior. Algumas das características não são harmônicas de raiz, mas são agregadas no curso do tempo, a ponto de definir subgrupos homogêneos, que muitas vezes mantêm conflitos entre si por essas limitadas diferenças.

É o caso de grupos conservadores e liberais, por exemplo. Alguns desses grupos acabam definindo um nicho muito complexo de características, e tendem a repelir quem não as aceita todas, mesmo que tenha identidade com a maior parte. Sucede que, então, muitos dos que tem afinidade com esses grupos sacrificam suas singularidades no altar da unidade.

Mas cada homem é uma criatura única, porque somos compostos de um tal número de variáveis, que não somos dois no mundo, tal como acontece com nossos genes. Então, como conciliar a diversidade da pessoa humana com a justa e necessária convivência em grupos sociais?

Com democracia e tolerância, não há outra forma. Mas, por outro lado, exercitando, como faz o Janer, o direito de ser Janer, e não um liberal, ou um socialista , um ateu, um apreciador da cidade ou do campo.

O que diz o Janer é que ele é um pouco ou nada dessas e de muitas outras coisas, como um vinho composto de muitas cepas.Tem algo de Merlot, algo de Cabernet, um toque de Tannat, e não vê por que adaptar seu corte ao gosto de todos, bastando-lhe a obrigação de ser um bom e honesto vinho. Quem não gostar, que não o compre. Tem razão o Janer. Há um certo custo em não abrir mão de certas coisas. Mas é a única maneira de fazer bons vinhos com personalidade.

Os verdadeiros enólogos agradecemos por não ter um só pastiche no mundo para beber.

Salud, Janer!

Carlos

quarta-feira, outubro 27, 2010
 
ZWEI SEITEN?


Em um momento dos mais profundos – e menos conhecidos – de sua obra, escreveu Kafka:

Zwei Seiten
gab es schon und wird es auch immer geben,
zu allen Zeiten,
in allen Dingen:
die Seite hier
und die Seite dort!

Traduzindo:

Sempre houve e sempre haverá,
em todos os tempos
e em todas as coisas,
dois lados:
o lado de cá
e o lado de lá!

Nem sempre, meu caro Kafka! Neste nosso país, justo no momento em que deveria haver dois lados, as eleições, há um lado só. Dois candidatos de extração marxista, ambos ex-militantes de movimentos terroristas, que até hoje não se penitenciaram por seus passados. Pelo contrário, deles se orgulham. Lutaram ombro a ombro com os celerados que pretendiam fazer do Brasil uma republiqueta soviética e hoje se candidatam a salvadores da pátria.

Não há nestas eleições – nem houve nas últimas – aquele outro lado de que falava Kafka. Quando jovem, sempre imaginei que comunismo fosse pensamento dominante na União Soviética, China, Cuba. Certa vez, um bom amigo, o Anibal Damasceno Ferreira, disse-me:

- Janer, tu estás contra toda tua geração.

Na época, meus dias de universidade, não entendi bem a frase. Só fui entendê-la bem mais tarde. Minha geração toda era comunista. No curso de Filosofia, meus colegas – e a maioria de meus professores – eram comunistas. Filosofia, aliás, era sinônimo de marxismo. Os professores começavam falando de dialética em Platão para chegar, obviamente, à dialética de Hegel e Marx. Como se o conceito de dialética em Platão tivesse algo a ver com a dialética marxista.

O Brasil sempre teve o coração à esquerda. Desde os anos 30, com a fundação da USP, a maior difusora da peste no país. Como diziam os moleques de 68 em Paris: o fundo do ar é vermelho. Mas se na França o fundo do ar já não é mais vermelho, cá entre nós continua sendo. O muro de Berlim caiu há mais de duas décadas e os brasileiros não têm alternativa alguma a dois marxistas.

Claro que nenhum dos dois candidatos confessaria professar o marxismo hoje. Mas tampouco renegam o marxismo juvenil. Pior ainda: se pretendem católicos desde o berço. Serra beija um terço. Dilma faz o sinal da cruz. Divina hipocrisia.

Desde há muito não há dois lados no Brasil. Neste sentido, os ex-países comunistas tiveram mais sorte que nós. Lá, ninguém quer mais ouvir falar de comunismo. Chez nous, ainda há não poucos malucos messiânicos - vide Marilena Chauí - propondo um futuro socialista para o Brasil. E não só para o Brasil, mas também para a América Latina e Europa.

Continuamos a reboque da História.


PS – A frase com que abri a crônica não é de Kafka coisa nenhuma. É um versinho que ouvi de uma poetisa gaúcha, daquelas que freqüentavam tertúlias no restaurante Dona Maria, em Porto Alegre. Reuniam-se uma vez por mês, no chamado Cafezinho Poético. Eu não perdia nenhum. Divertia-me ver aquelas senhoras macróbias desenrolando um pergaminho e recitando poemas que se pretendiam eróticos.

Pus a frase em alemão porque confere mais autoridade ao texto. Sem falar que a atribui a Kafka. Uma obviedade proferida por Kafka sempre cala fundo. Nem por isso, minha reflexão tem menos sentido.

 
CÂNCER GERA ALEGRIA
EM SANTA CRUZ DO SUL



A respeito da crônica “Brasil exporta câncer”, recebo de um gaúcho de Santa Cruz do Sul:

Pois é, mas isto é "normal" com muitos produtos, especialmente químicos. A Alemanha produz alguns produtos que não podem ser usados em seu território.

Santa Cruz e região vivem do tabaco, é a locomotiva. Tenho amigos que nunca haviam fumado antes de trabalhar na indústria do fumo. Hoje recebem salários nababescos e todos fumam. Trabalhei dentro da indústria do fumo, na área de gestão ambiental, a conheço um pouco. Tudo é grandioso. Especialmente a fatia de impostos que os governos tomam. Duvido que se proíba a indústria do tabaco, 85% de imposto, num negócio de bilhão, é grana.

O câncer do cigarro sustenta a bela Santa Cruz, a oktoberfest, a eleição da família Moraes (o deputado que se lixa para opinião publica... esposa prefeita, filho deputado estadual e ele reeleito federal. Na próxima legislatura municipal quer emplacar mais um filho como vereador) e a especial ENART.

Janer, veja como em terra de alemão, no mesmo espaço da "quitôba-fest" a alemoada organiza, e bem, o ENART. Tudo a meia quadra da casa de minha mãe... num mês bandinhas de alemão e no outro musica gaúcha... baita festa, muito turismo, grana para a cidade...


Do Canadá, recebo:

Por aqui temos uma controvérsia similar, a respeito do asbesto. O Canadá é grande produtor, e faz um lobby tremendo pelo mundo afora para evitar que se proíba o uso do asbesto na construção civil. É claro que o uso e venda são proibidos no Canadá há muito tempo...

Por sinal, a maior mina de asbesto do mundo é na cidadezinha de Asbestos, em Quebec. No dia em que fecharem a mina, acaba a cidade.

terça-feira, outubro 26, 2010
 
ESPANHÓIS QUEREM CANONIZAR
NEGRÍN, O TRAIDOR DA ESPANHA



A Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939 – há sete décadas, portanto – parece ainda não ter terminado. As esquerdas remanescentes da Queda do Muro até hoje continuam desenterrando os cadáveres dos espanhóis mortos por Franco. Ainda em agosto passado, uma equipe que trabalha na escavação de uma vala comum no monte de La Pedraja (norte do país) encontrou cerca de 60 corpos de pessoas executadas pelas tropas franquistas. A Lei da Memória Histórica, adotada no final de 2007 para reabilitar as vítimas da Guerra Civil, prevê que as instituições apóiem a abertura de valas comuns e a identificação de corpos. Quanto aos cadáveres dos espanhóis mortos pelos comunistas, destes as esquerdas não querem nem ouvir falar.

Em 1936, por exemplo, em Paracuellos del Jarama, sítio que ninguém gosta de lembrar, foram fuzilados pelo Partido Comunista nada menos que dois mil e quatrocentos espanhóis que se opunham à Frente Popular. Há quem fale em cinco mil. Outros em oito mil. À frente do PC espanhol estava Santiago Carrillo.

A matança de Paracuellos é plenamente confirmada por historiadores e foi bem mais feia que o suposto bombardeio de Guernica. Entre 7 de novembro e 4 de dezembro de 1936, militares que haviam participado do levante franquista ou que não haviam se incorporado aos comunistas, falangistas, religiosos, militantes de direita, cidadãos comuns e outras pessoas que haviam sido detidas por serem consideradas partidárias da sublevação, foram retiradas das prisões, atadas pelos punhos e conduzidas em ônibus e caminhões e conduzidas às margens do Jarama, onde foram sumariamente fuziladas. São cadáveres que não interessam.

Leio no El País de hoje uma insólita reportagem que endeusa o homem que entregou todo o ouro do erário espanhol a Stalin. Trata-se de Juan Negrín, presidente de governo da República de 1937 a 1939, visto como “um homem incompreendido e olvidado, que viveu os últimos anos de seu exílio no anonimato, ocupado em Paris com a tutela de seus netos”. Para Enrique Moradiellos, historiador e autor da biografia Negrín, foi um homem que deu seus melhores anos ao serviço da Segunda República e que, após perder a guerra sendo chefe de governo, se exilou e seguiu lutando por aqueles ideais socialistas que marcaram sua trajetória vital.

Um documentário intitulado Ciudadano Negrín, dirigido por Sigfrid Monleón, Carlos Álvarez e Imanol Uribe, eleva Negrín à condição de grande estadista. “Quisemos resgatar o personagem ensombrecido e esquecido, o estadista mais importante da política contemporânea espanhola, e devolver a emoção do homem que teve de assumir a responsabilidade de um governo no momento mais trágico de nossa história recente” - afirma Monleón.

Vamos ao episódio do outro entregue a Moscou, que já evoquei várias vezes nesta bitácora. Em 1936, quando ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, Juan Negrín raspou os cofres do país em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver suas orelhas".

Serviam para que estas armas? Para matar os espanhóis que lutavam por uma Espanha livre e democrática. Em 1937, a União Soviética já havia colocado na Espanha pilotos de guerra, marinheiros, intérpretes e policiais. Neste mesmo ano, a URSS já tinha na Espanha mais de cem aviões de combate. Os mais utilizados foram os I-15 (biplanos), conhecidos com Chatos, e os I-16 (monoplanos), conhecidos como Moscas. No ano seguinte continuaram chegando à zona republicana mais aviões soviéticos, entre estes vários bombardeiros, cada vez mais aperfeiçoados, alguns ultrapassando a velocidade de 300 milhas, como os Katiuska.

Costumo afirmar que Franco salvou a Espanha das ambições continentais de Stalin. Salvando a Espanha, salvou a Europa. Dominasse Stalin a Espanha, Portugal cairia no dia seguinte. Dominada a península, teria controle do mar do Norte, Atlântico e Mediterrâneo. França e Itália ficariam estranguladas. E todo o sul da Europa estaria dominado por Moscou. O muro de Berlim demoraria muitas décadas ainda para cair.

Não resta, hoje, na Espanha, mais nenhuma estátua do homem que salvou a Espanha. Enquanto isso, intelectuais erguem monumentos ao homem que queria destruí-la.

segunda-feira, outubro 25, 2010
 
BRASIL EXPORTA CÂNCER


Quando descobri ter sido premiado, ano passado, por um carcinoma de palato, a primeira pergunta que ouvi dos médicos foi: você fuma? Não, nunca fumei na vida. A menos que meu câncer tenho sido provocado por uma tragada que dei, lá pelos meus dez anos. Em uma pecinha de teatro na escola, fazíamos o papel de gaúchos. Como as professoras achavam que gaúcho pra ser gaúcho tem de fumar, permitiram à piazada chupar câncer. Foi a festa para meus colegas. Quanto a mim, pus o cigarro na boca, não gostei e o joguei pela janela.

Suponho que aquela tragada, há mais de meio século, não tenha sido a causa de meus dissabores no ano passado. Mas aventei a meus médicos a hipótese do fumo passivo, circunstância da qual dificilmente escapamos. Apesar do que os jornais afirmam sobre o fumo passivo, todos caíram na gargalhada.

Tenho amigas que fumam e outras que fumavam. Estas últimas, sofreram para largar o hábito. Não passa dia sem que me falem que a culpa é da publicidade, “que nos conduz a fumar”. Ora, nasci tão exposto quanto elas a esta publicidade, vivi minha adolescência vendo filmes onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Meus parentes todos fumavam. No entanto, jamais fumei. Há quem fale na propaganda subliminar do cinema. Podem atar-me em uma cadeira e passar filmes 24 horas por dia com propaganda subliminar do cigarro. Comigo não adianta. Ninguém me obriga a fazer o que não gosto.

Que o cigarro provoca câncer – e não só câncer, como várias outras doenças letais -, disto não temos dúvida. Quem fuma está matematicamente encurtando seus dias. É uma opção. Mas que depois não se queixem. Certa vez, um amigo fumante – que deixou de fumar mas hoje só tem 22% de capacidade respiratória – fez um cursinho contra o tabagismo. Teve em mãos fotos de pulmões de fumantes e não-fumantes. Procurou-me em meu boteco com o fervor de um cristão novo. “Janer, pelo amor de Deus, tens de parar de fumar”. Ora, ele sabia muito bem que eu jamais havia fumado.

Não tenho a notícia em mãos, mas tenho certeza que não sonhei. Em sua campanha anterior à Presidência da República, José Serra, em uma visita a Santa Cruz do Sul, manifestou seu apoio aos produtores de fumo. O mesmo Serra que, em agosto de 2008, quando governador do Estado de São Paulo, assinou projeto de lei que proibia completamente o fumo em ambientes de uso coletivo, fossem públicos ou privados. A medida incluía bares, restaurantes, boates, hotéis e áreas comuns de condomínios. O texto assinado pelo atual candidato não limitava a restrição apenas a ambientes onde havia comércio de alimentos - como açougues, padarias e supermercados -, mas estendia a proibição para áreas de lazer, esporte e entretenimento, entre outras.

A medida não deixa de ter seu lado ridículo. Nos bares com mesa na calçada, não se pode fumar debaixo do toldo. Há uma faixa amarela que delimita a área onde não se pode fumar. As pessoas saem então de suas mesas e vão fumar ao lado das mesas, mas fora da área coberta pelo toldo. Outros, mais pragmáticos, sentam-se ao lado da faixa amarela e estendem a mão que segura o cigarro para além da faixa. Tecnicamente, não estão transgredindo a lei.

Leio na Folha de São Paulo que Serra tentou amenizar sua fama de antitabagista para ganhar o voto de agricultores do Rio Grande do Sul. Aliados do tucano estão fazendo circular uma carta em que o candidato promete assistência técnica e crédito para as lavouras de tabaco.

Tudo pelo voto, inclusive jogar ao lixo qualquer indício de coerência. O Brasil é o segundo maior produtor e o principal exportador mundial de fumo. O Sul concentra 90% da atividade. O Sul vota. Portanto, nada de guerra ao tabaco. Fumo provoca câncer? Proíba-se o fumo no Brasil. Mas não vamos proibir uma indústria que dá emprego e lucros a milhares de pessoas, não é verdade?

"Minha luta contra os malefícios do cigarro são notórias, desde quando comandava o Ministério da Saúde. Jamais, porém, combati nem denegri o agricultor que luta, através da produção de fumo, para garantir o sustento de sua família", disse Serra recentemente. Seus propósitos são sublimes.

Que fazer então? Exporte-se o câncer. Amigos e leitores me alertam que Serra é o menos pior dos candidatos. Pode ser. Mas menos pior também é pior.

Por esta e por outras, no próximo domingo, de novo vou não votar. Como faço há vinte anos.

domingo, outubro 24, 2010
 
DE QUAL PLANETA VIERAM
ESTES DOUTOS SENHORES?


Comentei, há alguns meses, o fenômeno que chamei de zumbis da Guaianases, a rua que mais concentra drogados em São Paulo. A Guaianases fica na chamada Cracolândia, nas imediações da Estação da Luz, onde está a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a sala São Paulo, uma belíssima sala de concertos que nada fica a dever para as congêneres de Paris ou Londres. É algo assustador. Centenas de mortos-vivos, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, estão deitados na rua ou por ela perambulam em busca de droga. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.

Higienópolis, o bairro onde moro, é um dos mais aprazíveis e seguros de São Paulo. A Cracolândia fica a uns dois quilômetros de meu prédio, distância muito curta nesta cidade. A Prefeitura quer revitalizar a Cracolândia. Para isso, está tocando um projeto que chamou de Nova Luz. Uma vasta área está sendo desapropriada e será demolida para dar lugar a um centro administrativo. A tal de revitalização está gerando um efeito funesto. Os nóias estão se espalhando pelas áreas adjacentes, inclusive pelo centro histórico da cidade. Hoje, na praça da República, e mesmo junto ao terminal de Cumbica, você vê pobres diabos jogados na sarjeta, sempre em grupos, chupando tranqüilamente seus cachimbos, em plena luz do dia.

É um belo cartão de visita para quem chega de Nova York ou Paris. Desembarca no maior aeroporto do continente, toma um ônibus de luxo e cai em meio a um amontoado de lixo humano. O número de usuários de crack quase dobrou no Brasil: de 380 mil para 600 mil. O problema está – ou estava - mobilizando o governo federal, que planejava dobrar o número de vagas para internação de usuários neste ano - de 2,5 mil para 5 mil - e lançou ontem um programa de R$ 410 milhões. Só tem um problema. O usuário se interna se concordar em internar-se. Se não concorda, permanece na rua livre como um passarinho, consumindo a droga na frente da polícia.

Higienópolis, mais que um bairro, é um estado de espírito. Administrativamente, não existe. Para efeitos legais, é Santa Cecília. É um fenômeno típico de São Paulo. Quando um bairro começa a degradar-se, sua parte mais rica e sadia muda de nome. Não há fronteiras precisas entre o que se convencionou chamar de Higienópolis e o que permanece como Santa Cecília. Se você vive na região limítrofe e quer vender seu apartamento, mesmo que ele fique obviamente em Santa Cecília, dirá que é Higienópolis. Mas se você quer comprar o mesmo apartamento, dirá que fica em Santa Cecília, embora o proprietário jure de pés juntos que está em Higienópolis.

Com a tentativa de revitalização da Cracolândia, os nóias estão se aproximando de Higienópolis. Jazem agora em torno ao metrô Santa Cecília, que obviamente fica em Santa Cecília. Mas se antes a Cracolândia estava a uns dois quilômetros de minha rua, agora já está a um quilômetro. Os usuários do metrô adotaram uma estratégia: combinam horários para encontrar-se na estação e, ao sair, formam comboios para enfrentar os zumbis de Santa Cecília. Polícia, que é bom, nem pensar.

A polícia vê mas não faz nada. Considera-se que o problema é social, não policial. Às vezes, para mostrar serviço, esvaziam as ruas do crack por algumas horas. Apenas por algumas horas. Ninguém é preso, nem usuários nem traficantes.

Moro a uma quadra do shopping Pátio Higienópolis, um dos mais imponentes de São Paulo, segundo freqüentadores de shoppings. Não posso afirmar o mesmo porque é o único que conheço. No shopping fica o auditório da Folha de São Paulo, onde desfilam desde Fernando Henrique Cardoso a Mário Vargas Llosa.

Na última sexta-feira, a Folha organizou um debate sobre a droga em seu auditório. Em reportagem de Reinaldo Lopes, editor de Ciência do jornal, leio que Ronaldo Laranjeira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), disse que sua posição "era lógica do ponto de vista da saúde pública". "A experiência de legalização das drogas ilícitas está aqui perto da gente, é a Cracolândia", ironizou, criticando o fato de que não há um movimento nacional para tentar controlar o uso do crack com a mesma expressão do que defende descriminalizar a maconha.

A jurista Maria Lúcia Karam, membro da ONG internacional Lead, favorável ao fim da proibição da venda de drogas, argumentou por sua vez que a guerra contra substâncias ilícitas aumentou a violência e ainda fez baixar o preço delas mundo afora. "Legalizar é controlar os danos causados pela droga. As pessoas só morrem de overdose porque não sabem o que estão usando".

O neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, manifestou-se favorável à legalização das drogas. "Algumas pessoas realmente precisam ser protegidas da maconha, como grávidas e jovens com cérebro em formação -assim como outras pessoas precisam ser protegidas do leite porque têm intolerância à lactose."

Enquanto acadêmicos, juristas e especialistas discutiam a legalização da droga, ali ao lado, na estação Santa Cecília, os nóias fumavam e comerciavam a droga, imbuídos da tranqüilidade dos justos.

De que planeta vieram estes senhores que insistem em legalizar a droga? No Brasil, a droga está há muito legalizada.

sábado, outubro 23, 2010
 
SERIA JEOVÁ NEONAZISTA?


Uma das coisas boas do jornalismo on line é que um artigo fica permanentemente ao alcance dos leitores. No jornalismo em papel, para reencontrar uma crônica, só pesquisando em arquivos. Na Internet, está sempre ao alcance de um ou dois cliques. Tenho recebido retorno de crônicas que escrevi há vários anos. Em setembro do ano passado, por exemplo, escrevi sobre a cerimônia judia das Kaparot, o galinocídio judeu.

Nos tempos bíblicos, havia o Azazel, lugar no deserto para o qual era enviado pelo Grande Sacerdote um entre dois bodes, durante o Yom Kippur celebrado no templo de Jerusalém. Este bode devia portar consigo todos os pecados de Israel, daí o conceito de bode expiatório. Nenhum dos dois bodes tinha alguma chance. Um era sacrificado e o outro enviado a Azazel, onde seria morto. Tudo muito confortável: você peca e debita seus pecados ao bode. Segundo os sábios do Talmude, a lei de Azazel pertence à categoria dos houqquim, as leis que o intelecto humano não pode compreender.

Mas Israel um dia abandonou o deserto e invadiu as urbes do Ocidente. Como não é fácil criar bodes na cidade, sobrou para os galináceos. Nas vésperas do Yom Kippur, todo judeu adulto deve pegar pelo pescoço uma galinha (para as mulheres) ou um galo (para os homens), girar a ave três vezes em torno à sua cabeça, dizendo: “Esta é minha expiação, esta é minha redenção, esta é minha substituição. Este galo (esta galinha) será morta, enquanto eu terei uma vida longa e feliz”. Logo após degola-se a ave que é dada aos pobres, a menos que seu valor seja dado a uma obra de caridade. Para uma mulher grávida, sacrifica-se um galo e uma galinha. As entranhas são jogadas aos pássaros, o que também é considerado uma obra de caridade. Os pecados do penitente são assim transferidos simbolicamente à ave, salvando o judeu de um eventual julgamento negativo no Yom Kippur. A galinha, que nada tinha a ver com o peixe, faz o papel do bode.

Recebi ontem uma contestação de um leitor judeu, daqueles que escrevem D’us em vez de Deus. Diz o leitor: “Essa prática do Kaparot não é compartilhada por todos os judeus, e é, na verdade, desestimulada pelo simples motivo de que uma das profecias para a vinda do Mashiach diz que toda a humanidade será vegetariana e os animais respeitados e tidos como amigos e companheiros. Logo, como o senhor vê, infelizmente, existem ainda judeus que também ainda não se deram conta (tomaram consciência) dessa verdade. E também tal prática vai de encontro às instruções na Torah que educam no sentido de não maltratar animais. O fato de toda a humanidade se tornar vegetariana é um dos motivos de não aceitarmos jesus como o meshiach, que também será alguém de carne e osso e não um deus que se faz carne...”

Confesso que essa do Messias vegetariano eu desconhecia. Deve ser obra de algum profeta contemporâneo, daqueles voltados para o Oriente e para o budismo. Seja como for, soa muito estranho em uma religião cujo centro, o Templo, era um verdadeiro açougue onde se sacrificavam desde pombas até bois, ovelhas e bodes. Sacerdote não trabalha, não planta nem cria gado, mas tem de comer. A melhor carne ia para eles, o que sobrava para Jeová. O templo provavelmente exalava um odor abominável. Estes sacrifícios só terminaram com a destruição do Templo pelos romanos, em 70 D.C. Só não valia porco. É a vantagem de ser considerado animal imundo. Quando o Templo foi profanado por Antíoco IV, que mandou sacrificar uma porca sobre o altar, o incidente deu origem à revolta dos Macabeus.

Meu leitor é judeu, mas parece não ter lido o Livro. Sua mensagem demonstra desconhecimento total da Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Vou me ater a apenas dois pontos mais. O leitor afirma: “jesus é só uma máscara muito bem confeccionada, pois, no fundo, prega justamente o contrário: ódio aos judeus, ódio a satanás, ódio a outros povos”.

Em texto de quem escreve D'us em vez de Deus, suponho que a minúscula em Jesus - duas vezes repetida - seja intencional e não mero erro de digitação. Os ortodoxos não suportam dissidências. Ora, quem apregoava ódio a outros povos era o deus do leitor, o bom Jeová. Já na Torá, encontramos incitações ao genocídio a toda hora. Jeová ordena Israel a matar os amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus, mais tribos do que massacrou Maomé. O bom deus dos judeus e cristãos manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire. Quanto a ódio aos judeus, só o santo homem Moisés mandou degolar três mil judeus. No Novo Testamento, no Apocalipse, o Cordeiro volta para exterminar o que sobrou da humanidade. Maomé, que também ordenou grandes degolas, deve ter-se inspirado na Bíblia.

O leitor continua: “Seu comentário é muito grosseiro, pois acusa os judeus de várias coisas, inclusive de incivilização, e é lamentável que se dirija aos mesmos como sendo 'uma raça'. O senhor precisa se reciclar, pois o conceito de raça não existe na espécie humana, e foi abandonado já há muito tempo, sendo mantido apenas por neonazistas e figurinhas afins: todos uns vermes, diga-se de passagem”.

Pelo jeito, os santos profetas bíblicos eram também vermes, neonazistas e figurinhas afins. Pois nos diz Esdras: “Ora, logo que essas coisas foram terminadas, vieram ter comigo os príncipes, dizendo: O povo de Israel, e os sacerdotes, e os levitas, não se têm separado dos povos destas terras, das abominações dos cananeus, dos heteus, dos perizeus, dos jebuseus, dos amonitas, dos moabitas, dos egípcios e dos amorreus; pois tomaram das suas filhas para si e para seus filhos; de maneira que a raça santa se tem misturado com os povos de outras terras; e até os oficiais e magistrados foram os primeiros nesta transgressão.

Esdras não fala apenas em raça, mas em raça santa, isto é, uma raça superior às demais raças. Se estou bem lembrado, já ouvimos falar disto no século passado. Diz Jeremias: “ E procuras tu grandezas para ti mesmo? Não as busques; pois eis que estou trazendo o mal sobre toda a raça, diz o Senhor; porém te darei a tua vida por despojo, em todos os lugares para onde fores”.

Não bastasse isto, temos em Atos, já no Novo Testamento: “Enquanto se aproximava o tempo da promessa que Deus tinha feito a Abraão, o povo crescia e se multiplicava no Egito; até que se levantou ali outro rei, que não tinha conhecido José. Usando esse de astúcia contra a nossa raça, maltratou a nossos pais, ao ponto de fazê-los enjeitar seus filhos, para que não vivessem”.

Nossa raça. Certamente não é a raça de cristãos, pois cristianismo nada tem a ver com raça. Cristão é quem professa o cristianismo. Judeu é quem nasce de mãe judia. Lemos na Epístola aos Romanos: “Mas é a vós, gentios, que falo; e, porquanto sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se de algum modo posso incitar à emulação os da minha raça e salvar alguns deles”.

Minha raça. Paulo é judeu. Ou ainda em Coríntios: “Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos dos da minha raça, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar”.

Minha raça, diz de novo o judeu Paulo. Se o leitor tivesse lido com atenção a Bíblia, pelo menos uma vez na vida, talvez entendesse pelo menos um pouco da doutrina que professa. Ou diz professar.

sexta-feira, outubro 22, 2010
 
DICHOSOS TIEMPOS LOS NUESTROS


Comprei meu primeiro PC em 1990. Há duas décadas, portanto. Custou-me 4 mil dólares e tinha um disco rígido de ridículos 40 MBs. Atenção, eu disse megabytes. Era um dos maiores HDs encontráveis na época. Monitor de fósforo verde. E quando disse dólares, quis dizer dólares. Meu assessor de assuntos além-fronteiras não aceitava moeda nossa. Encomendei-o do Paraguai. Na época, os computadores nacionais eram ainda bem mais caros. Além disso, para comprar uma máquina, você tinha de preencher um cadastro quilométrico. Só faltava fornecer atestado de boa conduta. Em Assunción, burocracia nenhuma. Telefonei, encomendei o PC, dei meu endereço e o recebi em casa, dois dias depois. O entregador pegou meus dólares e se foi. A operação durou segundos.

Eram os tempos do DOS. Comprei um manual, fotocopiei uma longa tira de páginas com os comandos e colei-a na parede, ao lado do rack. Não havia memória que guardasse aquilo tudo. Na época, eu não sabia muito bem para que servia um computador. Queria apenas uma máquina de escrever mais sofisticada. Não havia Internet então. Apenas o Bulletin Board System (BBS), se alguém ainda lembra o que é isso. Certa madrugada, me emocionei ao encontrar na precária rede o Jayme Copstein, antigo colega da Caldas Júnior. O mundo era pequeno.

Bem entendido, não tínhamos na época a transmissão de arquivos de imagens ou sons. Era só texto, e olhe lá. Hoje, olhando vinte anos para trás, me parece estar contemplando a pré-história. Naquele ano, quando ainda vivia o marasmo de Curitiba, fui chamado para trabalhar na Folha de São Paulo. Mas ainda não dominava nenhum processador de texto, recém havia comprado o computador. Na redação, me disseram que esperasse pela Tonha, ela iria me iniciar na coisa. Mas a Tonha estava de férias. Fiquei sentado na redação, olhando com cara de besta para a tela do monitor.

Não agüentei. Pedi socorro a um colega. Sabes ligar o computador? - me perguntou. Bom, isso eu sabia. Conheces datilografia? Conhecia. Então vai digitando o texto, que depois te explico os comandos. Não havia Word na época. A formatação de títulos exigia extensos códigos que só os iniciados da redação possuíam. Bom redator era quem tinha uma agenda com todos os códigos. Um dos redatores, o Davi Cohen, judeu e carioca, era o virtuose do teclado. Digitava em ritmo de samba.

A duras penas, dominei o ofício. Foi quando surgiu o Windows e o Word. Nossa, foi um colírio para todos. O software da Folha era americano e a simples feitura de um trema exigia um código de oito ou dez caracteres. Por estas razões, a Folha eliminou o trema de seus textos. A redação se tornou muito mais rápida. Aquele código atrapalhava demais na hora do fechamento.

Com o Windows, o universo da informática deslanchou. Algo como a descoberta da escrita. Depois surgiram os sites de relacionamento. Se nos dias dos BBSs eu me surpreendera encontrando um amigo, hoje encontrar pessoas que não vejo há trinta ou mais anos faz parte da rotina. Meus computadores foram se sucedendo, HDs cada vez maiores, velocidade de processamento também maior, monitores mais sofisticados e, o mais importante, preços mais baratos.

Surgiram depois os notebooks e, agora, os netbooks. O que provoca erros de avaliação. Pensando em algo portátil, andei comprando um notebook, do Itautec. Portátil umas ovas. Com pilhas, deve pesar um três quilos. Optei então por um diminuto netbook da Sony, o Vaio. Portatilíssimo, mas teclado muito apertado. Serve para navegar, mas é hostil à escritura. Para viajar, e para caso de pane do PC, assinei um 3G. Interessante, mas tem um defeito. Não funciona no Exterior.

Dia 12 passado, meu PC emperrou. Também, pudera, tinha seis ou sete anos. Hoje vou dar-me um presente, pensei, em homenagem ao Día de la Raza. Há horas eu vinha paquerando um Mac, daqueles compactos, sem CPU, monitor 27”, um terabyte de memória. Só não me agradava trocar de sistema operacional. Mas poderia particionar o disco e instalar o Windows. Fui ao shopping cá do bairro, para uma primeira abordagem. Lá estavam os Macs, imponentes, mas a preço a meu ver um tanto salgado, em torno aos cinco e seis mil reais. Em todo caso, era mais ou menos o que eu pagara, vinte anos atrás, por uma carroça com monitor de fósforo e 40 megas de memória.

Não queria migrar para o Mac OS, dizia. Um pouco por preguiça intelectual. Outro, porque o Windows me satisfaz plenamente. Perguntei ao vendedor se não existiria um PC naquele formato compacto, com Windows. Para minha surpresa, existia. Parece que é máquina recente, terá coisa de um ano de idade. Fui apresentado a um HP All-in-One, monitor 21,5”, charmoso e com 750 gigas de memória. Caiu-me o queixo com o preço. Apenas 2.225 reais. Amor à primeira vista. Eu, que imaginava uma longa peregrinação até chegar a meu objeto de desejo, saí da Fast de computador em punho. É o computador mais barato que já comprei e ao mesmo tempo o mais poderoso. O PC que eu tinha em casa veio com um HD de 40 gigas e custou-me 3.111 reais. Em 2003.

O melhor de tudo foi dar adeus à CPU. Aquele emaranhado de fios quase me provocava uma eclâmpsia. A cada vez que precisava desconectar e reconectar o computador, começava a suar frio, juro. Sem falar da poeira que a ventoinha absorve. Da última vez que abri a CPU, cheguei a ficar assustado com a maçaroca densa formada pela poeira. Era um punhado de algo parecido a penugem, que me encheu as duas mãos. CPU já era. Suponho que em dois ou três anos serão peças de museu.

Dichosa edad y dichosos tiempos aquellos, dizia Alonso Quijana. Dichosa edad y dichosos tiempos los nuestros, digo yo. Estou feliz com a nova máquina. Mas quem ficou feliz mesmo foi minha assessora de assuntos domésticos. Perguntei à Cristina: teu filho já tem computador? Ainda não – me respondeu. Quem disse que não tem? Ela me olhou perplexa, desconfiando do que ouvia mas ainda não acreditando no que ouvia.

É teu – disse – apontando o antigo PC -. É antigo mas funciona bem. Ela teve de controlar-se para não chorar. Abraçou-me, pediu-me desculpas pela efusão. Mas algo vou te cobrar – alertei. Se eu puder pagar aos poucos... – murmurou.

Nada disso, Cristina. Não se trata de dinheiro. Daqui a um mês, vais sentar em minha mesa. Quero te ver navegando.

 
AINDA CARMEN


A propósito da última crônica, Antônio Augusto Silveira Escobar me escreve:

Olá

Ernest Newman, em sua História das Grandes Óperas, contesta a tese de que Bizet teria morrido de desgosto após o fracasso da estréia de Carmen. "Se Carmen foi ou não um desastre, depende do significado que damos ao termo. Ela alcançou trinta e cinco representações durante os três meses da temporada de 1875; se depois disso teve pouca aceitação em Paris, tal fato pode ser atribuído a uma série de circunstâncias nada extraordinárias em teatros líricos com as suas mudanças de direção e sortes várias. A despeito das censuras que a obra recebeu por parte de alguns críticos, o público sempre se mostrou interessado por ela". O autor também alega que Bizet já era um homem doente na época e ele já obtivera "mais oportunidades que as proporcionadas pela sorte à maioria dos jovens compositores numa capital onde era feroz a competição."


Ok, Antônio Augusto. Pode ser que tenha me deixado enganar quanto ao morrer de desgosto. Mas Carmen, pelo jeito, não foi bem sucedida em sua estréia. Em Complet Stories of the Great Operas, de Milton Cross, mestre de cerimônias do Metropolitan Opera, lemos:

“Tem sido dito que sua apresentação foi um fracasso tão terrível que Bizet morreu pouco depois da estréia de desapontamento e humilhação. A história é diferente. É verdade que o compositor sucumbiu cerca de três meses após a estréia, mas sua morte foi atribuída a causas físicas agravadas por excesso de trabalho.

“Carmen foi, de fato, moderadamente bem recebida. Paris era, até certo ponto, fria por diversas razões. Não o era no idioma convencionasl operístico da época. O uso de Bizet de melodia continuamente fluente levou os críticos a acusá-lo de wagnerianismo, contra quem havia violento preconceito na Paris daquela época. A ópera também não tinha um final feliz. Além disso, as platéias parisienses disseram que ficaram chocadas com o caráter cigano da própria Carmen.

“Embora retirada do palco da Opéra-Comique, Carmen foi entusiasticamente aclamada em outras capitais européias muitos meses após sua primeira apresentação. Mais tarde, conquistou não apenas o favor de Paris, mas de todo o mundo operístico”.

Ou seja, Paris custou a render-se ao gênio de Bizet.

quinta-feira, outubro 21, 2010
 
BIZET NO METRÔ


Justo hoje, quando uma leitora me perguntava sobre minhas preferências musicais, foi apresentada, às 11h, a ópera Carmen, de Bizet, no metrô Paraíso, em São Paulo. Ora, Carmen é minha ópera favorita. Mas não em uma estação de metrô. Carmen no metrô é vigarice.

Antes de chegar lá, vamos à pergunta da leitora. Meu gênero predileto é a ópera. E minhas três óperas prediletas são Carmen, Don Giovanni e a Flauta Mágica. Como paixão é obsessão, tenho em casa várias encenações de cada uma delas. Minha Carmen preferida é a de Francesco Rosi. Não é espetáculo de palco. Foi filmada em Sevilha, Ronda e na montanha.

Cheguei tarde ao gênero. Música erudita é como literatura. Você começa lendo autores como Machado e passa a detestar toda a literatura. Já contei, mas conto de novo. Adquiri ojeriza à ópera quando jovem. A soprano pra toda obra, em Porto Alegre, era uma rotunda senhora, a Eny Camargo. Até poderia ser uma aventura intelectual ouvi-la cantar, já não lembro. E não lembro porque havia uma barreira, aquela mulher baixinha, velha e quadrada representando uma cigana jovem, sedutora e sensual. Assim, não há quem possa gostar do gênero. Há alguns anos, comprei uma Carmen com a mezzo-soprano grega Agnes Baltsa. Não dá. Passou da idade. Voz também envelhece. Prova disto, é que você consegue identificar a voz de um velho ao telefone.

Vou mais longe: Carmen, se não tiver cara de puta, não convence. Neste sentido, a Julia Migenes, que a interpreta no filme de Rosi, está perfeita. Há não poucas Carmens que não têm o physique du rôle. Na época do bolachão e do CD, passavam. Afinal, da Carmen só ouvíamos a voz. Em um teatro ou no cinema, são inviáveis. Só fui me reconciliar com o gênero aos trinta anos, em Paris, quando vi uma Carmen divina, toda meneios, dançando chez Lillas Pastia. Ópera podia ser algo lindo, não aquele espetáculo grotesco que eu via na Reitoria da UFRGS, em Porto Alegre.

Mas nem só de ópera me alimento. Gosto de muita coisa da música latino-americana, Ataualpa Yupanqui é um dos meus diletos. Adoro tangos, este “pensamiento triste que se baila”, como dizia Discépolo. Aliás, meu tango preferido é Siglo XX Cambalache. Define todo um século, o passado.

Hoy resulta que es lo mismo
ser derecho que traidor..!
Ignorante, sabio, chorro,
generoso o estafador!
Todo es igual! Nada es mejor!
Lo mismo un burro
que un gran profesor!

No hay aplazaos ni escalafon,
los inmorales nos han igualao.
Si uno vive en la impostura
y otro roba en su ambicion,
da lo mismo que sea cura,
colchonero, rey de bastos,
caradura o polizon...

Que falta de respeto,
que atropello a la razon!
Cualquiera es un señor!
Cualquiera es un ladron!


Gosto de fado e flamenco, de sevilhanas e cante hondo, das sardanas catalãs e das folias canarinas. São canções que embalaram meus dias em Madri e Lisboa. Gosto da canção francesa, que hoje já nem chega aqui. Meu cantor francês predileto é um belga, Jacques Brel. Suas letras são reflexões profundas sobre o mundo, a vida, as mulheres, o amor e a morte. Eu estava na França, em 1978, quando ele voltou das Îles Marquises para morrer em grande estilo, em Paris. Foi um momento de comoção nacional. Duvido que os franceses tenham chorado tanto por outro artista. Até eu, que nada tinha a ver com Brel, chorei.

Em meus dias de Estocolmo, curti muito o troubadour Evert Taube, desconhecido entre nós, apesar de ter vivido no Brasil. Seu filho, Sven Bertil Taube, corre parelho com o pai.

Det finns ett hav som ingen ser
Det finns en grav där ingen dör
Det finns en sol som ej går ner
Det finns en strand i varje själ.


Traduzindo:

Existe um mar que ninguém vê
Existe uma tumba onde ninguém morre
Existe um sol que não se põe
Existe uma praia em cada alma

Foi também na Suécia que aprendi a gostar de Mikis Theodorakis, grego que raras pessoas conhecem no Brasil. E tenho meu vício secreto, adoro música mexicana. É vício de infância. Sei lá como, nos dias de Upamaruty e Ponche Verde, quando o único meio de comunicação com o mundo era o rádio, curtíamos Miguel Aceves Mejía e Jorge Negrete. Só bem mais velho, fui descobrir uma soberba cantora mexicana – na verdade, costarricense -, hoje centenária, Chavela Vargas. Foi amante da Frida Khalo e outro dia li uma entrevista dela, aos 96, na qual se orgulhava de jamais ter conhecido homem. Cá entre nós, no mínimo uma falta de curiosidade. O que me agrada na música mexicana é sua breguice, sua dor de corno. De vez em quando vou ao El Mariachi, aqui em São Paulo, cantar con los charros.

Mira como ando mujer
Por tu querer
Borracho y apasionado
No más por tu amor.

Mira como ando mi bien
Muy dado a la borrachera
Y a la perdición.

(...)

Sólo tu sombra fatal
Sombra del mal
Me sigue por dondequiera
Con ostinación
Y por quererte olvidar
Me tiro a la borrachera
Y a la perdición.


Mas falava da Carmen no metrô. Não pode. Ópera é para sala com boa acústica, assentos confortáveis, arquitetura à altura. Ópera não é para rua. Música erudita não cabe em espaços públicos. Certa vez, fui ver a Sinfônica de Nova York no Ibirapuera. Horror! Cães latindo, vendedores de pipocas batendo matraca no parque.

A apresentação no metrô faz parte do lançamento do Projeto Encontros, da Secretaria dos Transportes Metropolitanos. Traduzindo: a mão do Estado no bolso do contribuinte. Não existe almoço gratuito. Muito menos ópera gratuita. Isso é coisa de grupos musicais que não conseguem lotar uma sala e apelam aos amigos no poder para venderem seus peixes podres. Mas se passa uma boa Carmen no Teatro Municipal, quem não tem pistolão só entra se pagar o preço dos cambistas. Você entra na fila dos ingressos na primeira hora e já não consegue lugar decente. Metade foi distribuída para gente ligada ao Estado – que vai à ópera não pela ópera, mas para exibir uma cultura que não possuem – e a outra metade para os cambistas.

Há muita gente cantando ou fazendo música nos metrôs em Paris, Londres, Estocolmo ou Berlim. Mas vivem da caridade pública, dos euros que os transeuntes lhes jogam. Entre nós, a esmola foi oficializada. Quem financia estes pedintes é o Estado. Ou seja, você, contribuinte.

A ironia disto tudo é que Bizet morreu de desgosto, trinta dias após o fracasso da encenação de Carmen. Hoje, serve para subsidiar esmoleiros regulamentados.

quarta-feira, outubro 20, 2010
 
HONRA E GLÓRIA A
BERNARD D. SADOW



Há descobertas geniais que estão a nosso lado e se tornaram tão banais que a elas não damos importância. Os restaurantes, por exemplo. Considero estas casas um dos mais esplêndidos achados da história humana e atualmente viajo quase só para visitá-los. Foi no livro A Invenção do Restaurante, de Rebecca L. Spang, onde descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante.

A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

O mundo seria triste sem restaurantes e as viagens uma tortura. Você imaginou chegar em um país estranho e não ter onde comer? Enfim, havia as estalagens, onde se servia uma table d’hôte, mesa onde as comidas estavam à disposição dos comensais. Curiosamente, as tables d’hôte ressuscitaram hoje na forma de bufês. Outro grande achado que revolucionou a restauração foi o cardápio. Se antes quatro pessoas em uma mesa acabavam comendo os mesmos pratos, com o cardápio cada um pode eleger o seu. Hoje, quando nos sentamos em um restaurante, sequer imaginamos os séculos que a humanidade levou para chegar lá.

Houve também a roda. E depois da roda, a mala de rodinhas, utensílio hoje banal, mas que praticamente não existia quando comecei a viajar. O surgimento da mala de rodinhas ocorreu há quarenta anos, quando fiz minha primeira esticada ao exterior. É o que nos conta Joe Sharkey, no The New York Times. O benemérito e quase desconhecido inventor teria sido Bernard D. Sadow, dono de uma fábrica de malas que, ao voltar de uma viagem de férias com a família, na caribenha Aruba, teve a melhor idéia de sua vida. Atormentado com duas malas imensas e pesadas, olhou em volta e notou que, no terminal, uma esteira com rodinhas fazia as malas deslizarem sem esforço. "Olhei para a minha mulher e disse: quer saber? É disso que precisamos para a nossa bagagem”. Chegando a seu escritório, Sadow pegou as quatro rodinhas de um armário e instalou numa mala grande. "Completei com uma alça na frente e puxei. Funcionou".

É espantoso que tenham decorrido milênios entre a descoberta da roda e a da mala de rodinhas. Enfim, antes tarde do que nunca. Ainda segundo o NYT, a partir do modelo de Sadow surgiram outras inovações. A melhor delas feita em 1987, por Robert Plath, piloto da Northwest Airlines, que acrescentou uma longa alça à mala de rodas, criando a mala de carrinho. A mudança permitia que os viajantes puxassem a bagagem na vertical, de forma mais confortável e ergonômica.

Por outro lado, a invenção de Sadow esperava uma certa infra-estrutura, ruas planas e bem cuidadas. Você pode rolar estas malas por Paris ou Nova York, mas dificilmente conseguirá usá-las em Amalfi ou Positano, ou nalguma aldeia africana. É de supor-se que antes do calçamento seu uso fosse inviável. Uma coisa é carregar 40 ou mais quilos no ombro. Outra é puxá-los apoiados no chão. Estas malas inclusive identificam o desenvolvimento econômico dos países dos que a portam. Mala de rodinhas é coisa do Ocidente. Se você vê alguém num aeroporto com malas quadradas e de alça, pode estar certo que ele é ressortissant da Bósnia, Chechênia ou de algum país árabe ou africano.

Minha primeira viagem, em 1971, eu a fiz com uma dessas malas de imigrante. Pesava uns 25 quilos e sofri não pouco com ela pelos trens da Europa. Inexperiente, levei roupa em excesso, calças e blusas que sequer cheguei a usar. Lembro que, ao desembarcar em Barcelona, carregadores me ofereceram seus serviços. Naqueles anos, a Espanha ainda não era rica e existiam carregadores. Com arrogância de jovem, respondi: “Gracias, señor, soy joven y fuerte”. “Que Diós le mantenga así”, respondeu-me o carregador.

Mas não manteve. Hoje, que já não sou jovem nem forte, não encontramos mais carregadores de malas na Europa. Mas existe a mala de rodinhas. Isso sem falar que a vida me ensinou a viajar. Resolvo minha bagagem para um mês com seis ou sete quilos, no máximo. Um par de calças no corpo, outro na mala. Mais umas quatro ou cinco camisas, alguma blusa conforme a estação, meias e cuecas. Pra que mais? Suja uma peça, mando lavar no hotel. Sapatos vão nos pés. Abrigo mais pesado vai no corpo. A rigor, dispensaria as rodinhas. Mas há a volta. E livros pesam.

O século passado teve grandes achados, que nos tornaram a vida mais fácil. Máquina de calcular, zíper, microondas, computador, celular e outros que agora não me ocorrem. Mas a mala de rodinhas foi sem dúvida um dos mais importantes.

terça-feira, outubro 19, 2010
 
JORNAL GAÚCHO ASSUME
VIGARICE DO FENG SHUI



Comentei há poucos meses. Em janeiro de 2004, a ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, sancionou lei que permite a oferta, na rede de saúde, de "terapias naturais" não reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, como aromaterapia e cromoterapia, fitoterapia (tratamento com plantas), terapia floral, geoterapia (terapia com terra, argila, barro), e até a iridiologia.

A vigarice tornou-se oficial e arrisca ser regulamentada. Há um projeto no Congresso Nacional que pretende regulamentar a profissão de terapeuta naturista, entendida como um “profissional da área de saúde, que se utiliza dos recursos primordiais da natureza e do fluxo de energia vital que permeia e anima o ser humano com a finalidade de manter ou restabelecer a saúde do indivíduo”.

A profissão seria exercida por profissionais devidamente qualificados em cursos de Terapias Naturais, em nível médio ou de graduação, reconhecidos por órgãos competentes ou portadores de certificados ou diplomas de curso congêneres por instituições estrangeiras, revalidados na forma da legislação brasileira em vigor. Ou seja, mais uma universidade formadora de vigaristas está prestes a surgir no Brasil.

Nada de espantar, em país em que a Universidade de Brasília (UNB) mantém um curso de Astrologia. Promovido pelo Núcleo de Estudos dos Fenômenos Paranormais, o curso se dedica ainda a outros temas do gênero, como ufologia e conscientologia, seja lá o que isto quer dizer. As lições de astrologia duram quatro meses. Os estudantes, a maioria com diploma universitário, vêm das mais diversas áreas - da psicologia à física.

Comentei na ocasião que com a regulamentação da vigarice, sobra mercado também para o magistério da vigarice. Do jeito em que marcha esta mania de regulamentações, qualquer dia teremos a profissão de instalador de feng shui, de preparador de despachos nas encruzilhadas, de especialista em florais de Bach, pajés e feiticeiras.

Para a imprensa, feng shui já adquiriu o status de ciência. Não passa semana sem que um jornal dedique eruditos artigos a esta superstição oriental tão em voga no Ocidente. Raras vozes se erguem contra o obscurantismo. Mas sempre há quem manifeste sua indignação. De mãos amigas, recebo carta de protesto ao jornal Zero Hora de Porto Alegre. Como a carta certamente não será publicada, a reproduzo nesta bitácora:

Prezados senhores:

Sou leitora assídua do caderno "Casa & Cia" e aproveito várias sugestões ali colocadas. Porém, no caderno de hoje, 19.10.2010, fiquei surpresa com a cobertura dada ao obscurantismo e às trevas na matéria "Feng Shui". Como se estivéssemos na Idade Média, ali se aconselha a não colocar espelhos no quarto, refletindo a cama, "para evitar sobressaltos", além de advertir que espelhos com manchas poderão induzir a pessoa que nele se olha a concluir que "sua aparência tem problema".

Também se recomenda desligar os aparelhos elétricos do quarto uma hora antes de dormir, para "dissipar a energia", além de indicar que o rádio-relógio deverá ficar distante um metro da cabeceira, pois poderá "gerar estresse e dificuldade para acordar".

Segue dizendo que a cor amarela "atrai doença", verde e azul atrai "fofoca e confusão" e vermelha (pobres colorados!) atrai "estagnação, atraso em projetos e energia desequilibrada". Conclui com a pérola seguinte: "lençóis vermelhos criam dificuldade para dormir ou induzem sono agitado". Saibam que dormi, esta noite, sobre lençóis vermelhos e não ocorreu nada de anormal em meu sono.

A pá de cal ocorre quando a "sábia" diz que colocar imagens de pares ou casais de elementos ativam, energeticamente, a busca de um parceiro. Quanta bobagem! Quanto trabalho e dinheiro o laboratório Pfizer teria poupado ao criar o "Viagra", não? A autora já ouviu falar em hormônios, desejo, tesão, atração, etc?

A autora do "laudo" (cruzes!) invade as áreas médicas e comportamentais sem o menor pudor, passando com o trator da ignorância sobre a ciência e o conhecimento. E o pior de tudo, com o beneplácito de um jornal nacionalmente reconhecido. É uma lástima.

Atenciosamente,

Laís Legg da Silveira Rodrigues - médica psiquiatra


Não é só a Zero Hora, minha cara Laís. Qual grande jornal não tem hoje uma coluna de horóscopos? A bem da verdade, até eu já tive meus dias de astrólogo. Quando comecei no jornalismo, no Diário de Notícias, de Porto Alegre, lá pelas tantas faltou horoscopista. O editor me pediu que interpretasse os astros. Adorei a nova função. A rigor, deveria reproduzir horóscopos de edições passadas. Como não vivíamos na era digital, do copy and paste, eu tinha de datilografar tudo de novo. E se tinha de datilografar, não me furtaria a exercer minha criatividade.

Quem lesse meus horóscopos não sairia de casa. Eu previa tempestades, desastres, chuva de canivetes para todo leitor. Me diverti à beça naqueles dias. Certa vez, eu ria e datilografava freneticamente, quando seu Olinto, o editor, quis saber porque ria tanto. “É que estou fazendo o horóscopo”.

Naquela noite, terminou minha carreira como astrólogo.

 
JUÍZA DE BARUERI
JULGA URBI ET ORBI


De Cilon Mello, recebo:

Janer, saudações;

Como tu bem colocas nos teus textos, o judiciário brasileiro há muito perdeu completamente a idéia de qual é o seu papel. A maioria dos senhores juízes decide se pôr a legislar, o que por si só é tão triste quanto perigoso, mas então me deparei com essa noticia que mostra o escárnio que virou o nosso judiciário.

http://jogos.uol.com.br/ultnot/multi/2010/10/18/ult530u8459.jhtm

O resumo da história é que devido a um imbróglio legal, a vara cível de Barueri mandou que fosse proibida a venda de um videogame cuja trilha sonora está sob litígio. Esse não é o ponto realmente interessante aqui, o ponto realmente interessante é esse: "Portanto, determino que a Ré Rockstar Games se abstenha da veiculação do jogo em testilha, versão "Episodes From Liberty City", recolhendo os exemplares distribuídos ao redor do mundo."

Tem tantas coisas erradas nessa frase que é até difícil comentar. Os nossos excelentes juízes não só não fazem idéia de qual o seu papel, mas também não fazem a mais remota idéia de como funcionam seus poderes ou mesmo quais são. Da próxima vez que visitar o exterior e for adquirir algum produto qualquer, lembre-se de avisar ao lojista sueco para verificar antes se a justiça brasileira não baniu sua comercialização.

Seria cômico se não fosse trágico.


Meu caro Cilon:

A meritíssima deve ter sido acometida pela Síndrome de Baltasar Garzón, aquele juiz espanhol que decidiu prolatar sentenças para a cidade e para o mundo.

segunda-feira, outubro 18, 2010
 
JUIZ REVOGA CONSTITUIÇÃO
E ESTUPRA O LEGISLATIVO


Aconteceu ontem algo insólito em São Paulo. Não bastasse um filhote do Sarney ter exigido na Justiça a censura do Estadão – que denunciava suas corrupções - a Polícia Federal apreendeu, no bairro Cambuci, por determinação da Justiça Eleitoral, cerca de um milhão de panfletos que pregam voto contra o PT devido à posição favorável à descriminalização do aborto. Os impressos continham um manifesto, o “Apelo a Todos os Brasileiros”, elaborado pela Comissão de Defesa da Vida da Regional Sul I, da CNBB.

Dilma Rousseff considerou crime eleitoral a distribuição dos panfletos assinados por uma diocese, recomendando voto contra o PT. "É crime eleitoral. Eu acho que tem uma central de boatos fazendo ofensivas contra a minha candidatura. Que são nitidamente ilegais e merecem ser investigados". Afirmou ainda que a ação beneficia José Serra, mas evitou ligá-lo diretamente à confecção dos panfletos. "Não é do meu feitio sair acusando sem ter investigação. Sabemos a quem beneficia: ao meu adversário. Se foi ele ou não, resta ser provado."

Antes mesmo de ser eleita, a moça está mostrando ao que vem. Isso sem falar que não tem noção nenhuma do que seja direito, noção das mais úteis em um candidato à Presidência da República. Desde quando desrecomendar – ou recomendar – um candidato constitui crime eleitoral? Admitamos, para efeitos de argumentação, que Serra estivesse ligado à produção dos impressos. Desde quando um candidato não pode recomendar a não votar em seu adversário? Isto é o que tem feito Lula todos os dias e neste caso, evidentemente, Dona Dilma não fala em crime eleitoral. Pelo que se depreende das declarações da candidata, só o PT tem o direito de desrecomendar o adversário. A oposição não tem direito algum a fazer oposição.

Stalin não faria melhor. É o bracinho nazista do Dr. Strangelove que o PT porta e não consegue controlar. Longe de mim defender Serra ou a Igreja Católica.
Considero inclusive que os religiosos não têm razão alguma para meter-se em questões de Estado. Mas jamais me ocorreria negar-lhes o direito a manifestar sua opinião. Sempre fui a favor do aborto. Mas se alguém é contra, que se manifeste.

Toda vez que alguém cita a ex-terrorista como defensora do aborto, ela fala em calúnias e central de boatos. Ora, não se trata de calúnia nem de boatos. Os vídeos que têm sido divulgados nas Internet e jornais a mostram defendendo a descriminalização do aborto em alto em bom som. Isso há apenas três anos. Dona Dilma, em busca do voto religioso, evita tocar no assunto. Nem confirma o que disse, nem desmente e nem ao menos declara que mudou de idéia.

A liminar para a apreensão dos panfletos, atendendo a representação do PT, foi concedida pelo ministro do TSE Henrique Neves, que revogou o direito à livre expressão conferido pela Constituição. Está ocorrendo no Brasil um estupro contínuo do Legislativo pelo Judiciário. Os legisladores fazem leis e os juízes as revogam. Ora, não é função de juiz revogar leis. A função de um juiz é julgar se os fatos estão de acordo com as leis.

Espanta ver a facilidade como um juizeco qualquer neste país revoga de uma penada a Constituição e estupra o Legislativo. Isso sem falar na asnice atroz dos petistas. Ao pedirem a proibição do manifesto, deram ao mesmo uma divulgação que jamais teria se não fosse proibido. Tanto na imprensa como na Internet. Pelo jeito, estes neoluditas ainda não perceberam que, em dias de Internet, toda censura é inviável.

domingo, outubro 17, 2010
 
SOBRE O SEGUNDO TURNO


Me envia o leitor Eugenio Bezerra, de Jaboatão dos Guararapes/PE:



PARASITAS

Guerra Junqueiro


No meio duma feira, uns poucos de palhaços
andavam a mostrar, em cima dum jumento
um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriôes, hipócritas, devassos,
exploravam assim a flor do sentimento,
e o monstro arregalava os grandes olhos baços,
uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,

eu lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
que andais pelo universo, há mil e tantos anos,
exibindo, explorando o corpo de Jesus.

 
ÍNDICE BIG MAC
INCITA A VIAJAR



Quem me acompanha, sabe que abomino os McDonalds da vida. Para começar, sanduíche é algo que se come rápido e meus almoços geralmente duram duas horas. É meu momento de ler ou confraternizar. Continuando, McDonald não é lugar para se beber. Pelo que me contam, neles não se serve vinho. Então não me serve. De modo geral, não me relaciono com clientes de Mcs. Se observo meus amigos e amigas, são pessoas que freqüentam bares e restaurantes onde se pode beber e comer sem pressa.

Mas tenho de confessar um pecado: certa vez entrei em um desses estábulos, onde as pessoas parecem estar comendo em bornais. Era São Paulo e chovia, como diria o Eça. Estava na Paulista, abriguei-me sob a marquise de um desses antros de abominação. As águas foram subindo. Minha única opção para não encharcar os sapatos era entrar. Entrei. Acabei comendo um sanduichinho. Não era mau, devo admitir.

O que me desagrada é o ambiente. Já cortei inclusive relações em função dessas casas. Nos dias de Florianópolis, uma colega de magistério viajou para a Espanha. Passei-lhe os melhores endereços gastronômicos de Madri e Barcelona. Melhores não só pela bona-xira, mas também pelo ambiente, pelos séculos de existência. Quando ela voltou, perguntei-lhe o que havia achado daqueles restaurantes que adoro.
- Não sei. Só comi em McDonalds.

Ir à Espanha, país de uma culinária soberba, e só comer nos Mcs? Isso é gente que envergonha a raça humana. Exclui a moça de minhas relações. No fundo, até que a entendo. É pessoa que tem medo de enfrentar um cardápio em outra língua. Medo da aventura, do desconhecido. Nos Mcs, ela sabe precisamente o que vai comer. Os Big Macs são sempre iguais em todo mundo. Mas não me agrada conviver com covardes.

Em virtude dessa massificação do sanduíche, a revista britânica Economist estabeleceu o índice Big Mac para avaliar a paridade de compra de moedas em diversos países do mundo. Em sua edição mais recente, concluiu que a desvalorização do yuan barateou o custo do Big Mac na China, enquanto o real forte causou o efeito contrário no Brasil: encareceu o sanduíche. O preço brasileiro é o segundo mais caro em uma lista de 15 países selecionados pela revista: equivale a US$ 5,26, só perdendo para a Suíça.

Para efeitos de comparação, o Big Mac custa US$ 3,71 nos EUA e em média US$ 4,79 nos países da zona do euro. Na China, custa apenas US$ 2,18. Segundo a revista, o índice é baseado na idéia de paridade do poder de compra, segundo o qual o valor da moeda deve refletir a quantidade de bens e serviços que ela compra. Conclusão: a moeda brasileira está sobrevalorizada em 42%.

Bons dias para viajar, leitor. Há horas venho afirmando que está mais barato comer em Paris ou Madri do que em São Paulo ou Porto Alegre. Outra noite, fui a um café aqui no bairro para comer algo na madrugada. Pedi um sanduíche de presunto e queijo e acabei tomando duas taças de café com leite. Preço? Ao lembrar de meus dias na França e Espanha, fiquei perplexo: 25 reais. Ao câmbio de hoje, 10,8 euros. Ora, por dez euros, tanto em Paris como Madri, tenho almoços executivos com entrada, prato principal, sobremesa e eventualmente meia jarra de vinho. Claro que nem sempre se come bem em tais restaurantes. Mas se você tiver feeling para auscultar o ambiente, poderá ter gratas surpresas.

Em janeiro passado, comentei a entrevista concedida à Veja por Rogério Fasano, um dos papas da gastronomia em São Paulo. Seu restaurante é o preferido por nove entre dez corruptos de Brasília. (É o que chamo de restaurante para pessoas jurídicas. Ninguém paga do próprio bolso, mas com os impostos do contribuinte). Comentei também seus sofismas, ao tentar justificar porque cobra 27 reais por um pãozinho com manteiga. Reagiu uma de minhas interlocutoras: “se tu és pão-duro ou pobre, não vai no Fasano, simples!”

Não vou mesmo. Não vejo porque pagar uma fortuna num restaurante metido à besta no Brasil, quando por um terço ou menos do preço posso pagar uma excelente refeição regada a bom vinho na Europa. Em novembro passado, entre outros, revisitei um de meus diletos em Madri, El Espejo. Ambiente solene, sofisticado, tem mais de século. Os espelhos refletem as imagens ao infinito. Refeição para duas pessoas, com um excelente Marqués de Riscal e um chinchón para rebater: 84,51 euros. 42 euros por cabeça. 105 reais, na cotação daqueles dias. 3,8 pãezinhos com manteiga do Fasano.

Esse foi um dos cafés que jamais me permitiu ir até a Biblioteca Nacional, em meus dias de Madri. O outro foi o Gijón, também centenário, a uns 200 metros do El Espejo, onde se come e se bebe por menos ainda. Ambos ficam no Paseo de Recoletos e a biblioteca fica do outro lado. Nunca consegui atravessar o Paseo. Saía da universidade com minhas amigas latinas, a las tres del mediodía, rumo à biblioteca. A meio caminho, éramos interceptados por um dos dois cafés. Vinho da casa quase a preço de água. As pesquisas que se lixassem.

No solene Comedor d'El Rey, sala do Café Oriente onde Juan Carlos recebe de vez em quando os estadistas que o visitam, em uma cave do século XVI, com talheres e baixelas de prata e copos de cristal, almocei com a Primeira-Namorada. Dois pratos, um bom Penedès, mais dois Carlos III para finalizar os trabalhos. 84,20 euros. De novo, 3,8 pãezinhos com manteiga do Fasano.

No Sobrino de Botín, tido como o mais antigo restaurante do mundo (fundado em 1725), comemos um soberbo cochinillo e um cordero lechal, mais um bom Rioja e de novo um chinchón para rematar. Custo: 75,75 euros. No Salamanca, na Barceloneta, o mais reputado restaurante de frutos do mar de Barcelona, comemos os dois, com vinho mais aperitivos, por 72,26 euros. No Caracoles, outra casa centenária de Barcelona, comemos e bebemos a gosto por 61 euros. No belíssimo Méson de Cándido, em Segovia (dois séculos), junto aos arcos do aqueduto, pelo mesmo passadio, pagamos 89,76 euros. Este foi o almoço mais caro que paguei na Espanha. 226 reais para dois. 113 por cabeça. Quatro pãezinhos com manteiga no Fasano.

Certo, o Fasano não é critério para medirmos os preços de São Paulo. Mas por 113 reais por cabeça você não vai longe nas metrópoles brasileiras. Mal se consegue tomar um vinho decente, e já nem falo da comida.

A hora é boa para partir. Vai logo, leitor, voa rumo às terras de restaurantes seculares, comida e vinhos soberbos, a preços humanos. Vai antes que seja tarde.