¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 17, 2011
 
AINDA A FALSA POLÊMICA


Continua a falsa polêmica do metrô em Higienópolis. A edição de hoje da Folha de São Paulo traz uma manchete safada:

Trabalhador prefere metrô na avenida Angélica;
morador, no Pacaembu, revela pesquisa


Segundo uma pesquisa Datafolha, para 83% dos trabalhadores, a nova estação deveria ficar na esquina entre a avenida Angélica e a rua Sergipe, onde há maior volume de pessoas e por onde passam várias linhas de ônibus. Entre os moradores, 66% consideram que a melhor alternativa seria nas cercanias do estádio do Pacaembu, região mais distante dos prédios residenciais e comerciais do bairro.

Antes de ir adiante: a discussão é ociosa. Se o ponto for transferido, mudará para apenas 200 metros à frente, segundo a última decisão do governo. E mudará para espaço ainda mais nobre, nas proximidades da praça Vilaboim. A imprensa falou que, no projeto anterior, um supermercado seria demolido. Mas omitiu que seria também demolido um prédio residencial de alto padrão, de doze andares. Na Europa, os metrôs são buracos que descem para o fundo da terra. Aqui, quer-se construir uma catedral na superfície.

Volto ao jornal. Que quer dizer a reportagem? Ao fazer uma distinção entre moradores e trabalhadores, no fundo está afirmando que os moradores do bairro não trabalham. O Datafolha está brincando de luta de classes. Higienópolis seria um reduto de uma elite ociosa, bairro ao qual acorre a laboriosa classe operária para prestar seus serviços. Ora, não é bem assim.

Crianças, estudantes e aposentados à parte, todo mundo trabalha neste bairro. Ou não viveriam aqui. Não há nada de anormal no fato de crianças e estudantes não trabalharem. Quanto aos aposentados, já trabalharam. Existirão, é claro, muitas madames que não sabem o que é carteira assinada. Mas sempre será necessário um marido que sue a camiseta para que madame e seus rebentos comam. A Folha está sofismando a partir de estatísticas manipuladas.

De uma leitora, recebo:

Boa tarde, Janer.

Sou arquiteta e urbanista e sei que no Brasil classe média e elite não quer aproximação com a pobreza. Isso é perceptível no desenho urbano das nossas cidades, por exemplo, e você já escreveu um texto muito bom sobre isso em que abordava a diferença entre as cidades brasileiras e as européias (não vou me lembrar agora exatamente qual texto é).

A classe média e as elites, em Higienópolis ou qualquer outro bairro brasileiro, não quer a presença do pobre a não ser como prestador de serviços e você deixa isso claro no seu texto. Que os pobres limpem suas casas, sirvam comida, atendam em balcões... até aí, tudo bem. Mas fazer parte do cotidiano como um cidadão igual aos das demais faixas de renda, dividir o mesmo espaço numa praça, que as crianças pobres brinquem no parquinho com as crianças ricas... isso não. Isso nem você, nem os moradores de Higienópolis e nem os defensores do povão querem.

As manifestações em defesa dos moradores de Higienópolis são tão hipócritas quanto as dos defensores do povo.


O problema, leitora, não é o desenho urbano das cidades. É o preço do metro quadrado. Que obedece às leis da oferta e da procura. Não fosse o preço do metro quadrado, eu estaria morando em Paris ou Madri. Em Capão Redondo, o metro quadrado é muito barato. Mas é claro que não me agradaria morar lá.

Sim, existirá uma elite que não quer a proximidade com pobres. Mas isso não é crime. É uma questão de preferência, exercício da liberdade pessoal. Vivo em um bairro de ricos e não tenho convívio com rico algum. Meu círculo é constituído por pessoas remediadas. Que têm onde morar, é verdade, e conseguem comer e beber decentemente. Todas vivem no bairro ou nas adjacências.

É normal que elejamos amigos ou namoradas dentro da mesma faixa de renda. Ou de cultura. Até para evitar constrangimentos. Alguém que adore jantar no Fasano ou no D.O.M. sempre acabará constrangendo quem mal consegue comer na Vilaboim. Eu, por exemplo, não me sentiria nada bem partilhando da mesa de alguém que abre uma garrafa de vinho de 16 mil reais no Fasano. Primeiro por uma questão de grana. Com esse dinheiro passo um mês em Paris. Segundo por uma questão de cultura. Quem manda baixar um vinho desse preço, pessoa inteligente não é.

Higienópolis convive tranqüilamente com os pobres. Vá no parque Buenos Aires, leitora. Lá tem muita madame com seus totós, mas também tem muito pobre, afinal não se paga nada para entrar. Isso sem falar nos mendigos dormindo na grama e nos bancos. O que, confesso, me desagrada profundamente. Banco não é cama. Vá nos botecos da Martim Francisco ou Alameda Barros, aqui ao lado de casa. Estão cheios de gente humilde tomando sua cervejinha e comendo seu franguinho com farofa. A Barão de Tatuí, paralela e a uma quadra da Angélica, é basicamente habitada por pessoas pobres. A Imaculada Conceição também. Em Granja Viana, em Carapicuíba, você precisa identificar-se para entrar e ter convite de um residente do bairro. Em Higienópolis não há barreira nenhuma. Mas não vi ninguém protestando contra as barreiras de Granja Viana.

Aqui mesmo na rua onde moro, a uma quadra do shopping, há dois grandes bares freqüentados por estudantes e operários, comendo avidamente um PF ao meio-dia. Houve época em que a Marta Suplicy despejava ônibus inteiros de crianças da periferia no shopping. O que me parece um crime, pois tais visitas vão estourar no bolso dos pais.

Que ninguém pretenda que um pobre more na São Vicente de Paula ou Albuquerque Lins. Por uma razão muito simples: ele não tem como pagar o preço do metro quadrado. A presença de pobres não me incomoda. O que não suporto são mendigos deitados na calçada e eles são muitos aqui no bairro. Não aceito esse conceito da Igreja de morador de rua. Rua não é lugar de morar. Quem gosta de mendigos são os padres católicos e as assistentes sociais.

Há alguns anos, dei um chute num mendigo que se atravessou ostensivamente na frente da porta de meu prédio, impedindo a passagem de quem quer que quisesse entrar. Era mendigo politizado, devidamente instruído por alguma assistente social: e a Constituição onde fica? E o direito de ir-e-vir? O direito de ir-e-vir continua existindo – respondi –. Mas não existe o direito de deitar na rua. Vai andando. Tenho uma amiga, assistente social, que até hoje não perdoa meu chute.

Mais uma, ocorrida também há alguns anos. Uma de minhas vizinhas, uma velhota alemã de uns setenta anos, mas rija, pegou um mendigo que deitava frente ao prédio pelos ombros e o jogou no meio da rua. O fulano estava imundo, ela ficou com as mãos pretas de tisna. Abordei-a: a senhora não tem medo de uma reação? Não, meu filho. Eu sobrevivi a um campo de concentração e não é um vagabundo qualquer que vai me assustar.

Nos anos 90, quando sumiram, sei lá por que razões, os mendigos do largo em torno ao metrô Santa Cecília, li a reclamação de uma assistente social no Ceciliano, o jornaleco do bairro: onde estão nossos mendigos? Quem os tirou da praça? Queremos nossos mendigos de volta.

O problema não é desenho urbano. Como em qualquer cidade do mundo, é poder aquisitivo. Jamais me ocorreria morar na Avenue Foch, em Paris, onde Cristina Onassis tinha apartamento. Muito menos na Serrano, em Madri.

E nunca me senti discriminado por não poder viver junto a milionários.