¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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segunda-feira, maio 09, 2011
UM MESTRE CONTROVERSO * Uma visita ao retiro do escritor admirado por muitos, detraído por outros, que encarnou a grande consciência trágica da Argentina Ernesto Sábato festejaria seus cem anos em junho. Tinha se esquecido de morrer, como disse seu filho, Mario. Amado e admirado por muitos, e odiado na mesma proporção, continuava morando, como sempre, em Santos Lugares, na Província de Buenos Aires, mas já não caminhava pelas ruas como até pouco tempo atrás. Estava recluso em sua casa, e dizem que passava os dias sendo atendido por duas enfermeiras e dois assistentes que se alternavam para satisfazer seu desejo: gostava que lessem em voz alta o que ele tinha escrito, principalmente seu livro preferido: Sobre Heróis e Tumbas. Luís Augusto Fischer, meu amigo e colega, tem insistido para que eu conte como foi meu encontro com Sábato. Embora esse episódio pessoal não reflita a dimensão do escritor, serve como pretexto para estas linhas de despedida. O ano era 1994. Eu estava às voltas com o mestrado, precisava escolher um autor e um tema para minha dissertação. Devia considerar as limitações de informação existentes no que se refere aos autores hispano-americanos e, sobretudo, as minhas próprias limitações, “o enorme repertório da minha ignorância”, sábia frase do autor que eu viria a estudar. Uma coisa eu sabia: analisaria um escritor do qual eu tivesse lido boa parte da sua produção. Naquela época, não se encontravam com facilidade informações e fontes de pesquisa sobre autores que usassem minha língua materna, a espanhola. A ideia, ou melhor, a solução, veio por acaso, lendo um artigo de Janer Cristaldo em Zero Hora. O jornalista e doutor em Letras contava em seu texto como a banca da Sorbonne o tinha atacado, tendo incorporado nela o espírito do grande inquisidor Torquemada, enfurecida que estava pelo escândalo da análise de um escritor sem o suporte de uma teoria europeia. A defesa da tese, que em Paris, em média, deveria durar mais ou menos uma hora – porque há coisas melhores que a cidade oferece para assistir, há espetáculos mais dinâmicos –, havia se estendido por quatro horas ininterruptas. A mise-en-scène da peça teatral em defesa da tese em torno da literatura de Sábato havia se transformado em uma batalha. Certamente, nesse embate, sentia-se a força do autor argentino, que resumo a seguir. Nascido em 24 de junho de 1911, em Rojas, um povoado agrícola de 5 mil habitantes que fica a 300 quilômetros de Buenos Aires, foi o décimo de 11 meninos de uma família de imigrantes italianos anarquistas. Realizou os estudos primários e secundários no interior da Argentina e, em Buenos Aires, cursou a Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas, onde se vinculou primeiro aos grupos anarquistas e posteriormente ao Partido Comunista – que abandonou pouco tempo depois de começarem os Processos de Moscou. Também abandonou a ciência após o doutorado e depois de haver trabalhado nos laboratórios Joliot-Curie, de Paris, meca científica da época, passando, a partir de então, a dedicar-se à literatura. Era 1938, e Sábato alternava suas personalidades de Dr. Jekyll, de dia, como cientista no laboratório, e de Mr. Hyde, de noite, com o grupo surrealista liderado por André Breton. O satânico Mr. Hyde venceu. O catalizador foi a ruptura do átomo de urânio em um laboratório concorrente, fato que ele classificou como “o começo do fim”, que o afastou lenta e inexoravelmente do inevitável e relativo “progresso da ciência” e o encaminhou à busca do absoluto por meio da literatura. Ao retornar à Argentina, foi recebido com muita hostilidade, sendo afastado de suas atividades de professor pela ditadura peronista por ter-se manifestado, junto a outros 20 professores, contra o assassinato de um estudante. Seu primeiro romance, O Túnel, cujo protagonista não por acaso é um ser solitário e sem esperança, foi rejeitado energicamente por todas as editoras de Buenos Aires, e como ele mesmo chegou a dizer, foi rechaçado com alegria e convicção, com o argumento de que “nenhum físico pode escrever um romance”. Em suas memórias, Sábato lembrou que seu caso não era exclusivo: outro escritor rejeitado na capital argentina com base em princípios filosóficos similares a esse fora Gabriel García Márquez. Quando por fim foi publicado, O Túnel ganhou vários prêmios e foi traduzido a mais de 30 idiomas. Sábato obteve prestígio internacional, e recebeu elogios de Thomas Mann e de Albert Camus, que o fez publicar na França. A esse romance lhe seguiram alguns ensaios, nos quais alertava que a humanidade seria aprisionada pela tecnologia, e dois novos títulos: Sobre Heróis e Tumbas (com destaque para o capítulo Informe sobre Cegos) e Abaddón, o Exterminador. Também foi o responsável por um livro que não escreveu: Nunca Mais, relato das atrocidades da ditadura argentina que levou militares a juízo e à prisão, e que ele descreveu como experiência semelhante à “descida ao inferno”. Mesmo com o reconhecimento internacional e com o aceite do público, grande parte da intelectualidade sempre teimou em ignorar seu trabalho, renegando-lhe a condição de escritor. Pude constatar que essa imagem insiste em perdurar, há poucos anos, após uma palestra em São Paulo, ao perguntar a opinião de um conhecido autor argentino sobre Sábato. Ele me respondeu, sem pestanejar, “esse não é escritor, é físico”. Se, por um lado, essa posição por parte de uma parcela da crítica dita especializada persiste, por outro, Sábato também é tido como o último dos grandes escritores argentinos. Sem ser um autor prolífico, podemos destacar 15 excelentes obras, sendo as últimas Antes do Fim (1999), A Resistência (2000) e Espanha nos Diários da Minha Velhice (2004). Voltando ao relato do encontro, foi por intermédio de Janer Cristaldo, que também era o tradutor de Sábato, que fiquei sabendo o telefone da casa do escritor. Eu sabia que ele costumava receber diversas personalidades políticas, escritores, críticos literários, artistas e muitos jovens que estavam atrás de um conselho ou queriam simplesmente consultar sua biblioteca. Era de conhecimento de todos, também, que ele havia perdido seu filho em um acidente de trânsito poucos meses antes e que sua companheira de toda a vida, Matilde, estava muito doente (ela faleceria algum tempo depois). Contudo, Sábato continuava a receber diariamente uma grande quantidade de cartas, propostas de entrevistas e viagens para cursos e conferências, recusadas de forma sistemática. Nessa época e nesses tempos, era quase impossível falar com Ernesto Sábato. Com poucas perspectivas de sucesso, decidi ligar de Porto Alegre e, para minha sorte, atendeu o escritor. Com voz pausada e grave, me falou dos problemas que enfrentava, das dificuldades que tinha e ouviu minhas necessidades e angústias com o texto que estava elaborando. Arrematou dizendo: “Bom, se algum dia estiveres por Buenos Aires, vem me visitar”. O certo é que não me fiz de rogado: três dias depois eu estava na capital portenha. Sabia que Sábato vivia em uma localidade chamada Santos Lugares e que se chegava lá de trem. E só. Qualquer pessoa naquele povoado – de casas humildes e pouco comércio – sabia onde morava o “senhor Ernesto Sábato, o escritor”, e solicitamente me mostraram o caminho. Bem perto de sua casa havia um quiosque e um telefone, e decidi ligar mais uma vez. O breve diálogo que tivemos foi mais ou menos assim: “Maestro Sábato, estou aqui, em Santos Lugares”. Depois do silêncio da surpresa, me disse: “Então vem tomar um café e conversar um pouco”. Antes, comprei um de seus livros no quiosque para que ele o autografasse, e verifiquei se tinha, na mochila, a edição de Machado de Assis, que ele tanto apreciava e que eu havia trazido para lhe presentear. Estava hesitante. Estaria preparado para enfrentar o angustiado e pessimista autor do Informe sobre Cegos? Ele era, ao mesmo tempo, um homem que havia lutado por justiça e liberdade, travado uma desigual batalha contras as mentiras, crises e decepções, como um Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento, e demonstrava uma profunda compaixão e humanidade. Era o velho sábio da tribo, a quem os argentinos outorgavam o título de maior autoridade moral, alguém que podia dialogar com personalidades como o presidente da República ou Jorge Luís Borges – o outro gigante. A propósito, cabe mencionar que o escritor Orlando Barone, entre 1974 e 1975, reuniu esses dois grandes autores argentinos, obtendo uma série de maravilhosos confrontos intelectuais, que foram publicados na obra intitulada Diálogos Borges-Sábato. Sobre esses encontros, Barone concluiu que o fascínio do gênio literário de Borges estava no seu imaginário, nas suas fantasias separadas da realidade, enquanto que a riqueza de Sábato estava em, mesmo com o imaginário indispensável a todo escritor, ele misturar-se às pessoas, manchar-se com o mundo, indo aos lugares mais inapropriados para defender uma causa e cumprir com um compromisso que vinculasse sua busca ética e suas convicções morais. Ernesto Sábato, morando numa região pobre, num lugar modesto, cada vez que decidia sair e falar, formava em Buenos Aires massivos auditórios que buscavam nas suas palavras a verdade, a ética, a liberdade e a justiça. A casa de Sábato ficava no fundo de um jardim, ou melhor, de uma selva, de araucárias gigantes, pinheiros e algumas árvores e plantas certamente pré-históricas. O primeiro que veio me investigar e cumprimentar foi Roque, um pastor alemão “mais inteligente que muitos professores”, segundo a correta avaliação do escritor. Um caminho de lajotas pretas e brancas, que lembrava um tabuleiro de xadrez, levava à porta de entrada. Recebeu-me Gladys, sua assistente, que amavelmente me pediu que entrasse e aguardasse. Em poucos minutos, e das trevas, surgiu uma figura franzina, um senhor de 83 sofridos anos, com a expressão mais dolorida do mundo, no rosto tão conhecido. Estava à minha frente, de jeans e camiseta, o autor das profundezas, a grande consciência trágica da Argentina. Quando me viu, disse: “Te recebo em minha casa porque és jovem e estudante”, e em seguida passou o braço por cima do meu ombro e começou a chorar. Indo para seu escritório, disse, como se estivesse se justificando: “Minha mulher está aí, doente e deitada e nem mesmo sabe que nosso filho morreu... Mas eu acho que ela intui alguma coisa”. Parou um momento e arrematou: “Não esqueças, a vida é trágica”. Fomos para seu organizado escritório, no qual se sobressaíam livros, a máquina de escrever, uma secretária eletrônica – que não parava de ser acionada, e a famosa foto de Sábato e Juan Carlos I, o Rei da Espanha, entregando-lhe o Prêmio Cervantes de Literatura de 1984, o “Nobel” das letras espanholas. Ao chegar Gladys com o café, pedi licença para gravar a nossa conversa, e ele concordou. No transcurso do encontro Sábato demonstrou, como já era conhecido, ser o sábio que falava para ser escutado, mas também ser uma criança ouvindo e perguntando. Perfeita e rara mistura de sensibilidade e intelecto. No final da entrevista, que durou mais de uma hora, ou melhor, do diálogo confessional de um homem fragilizado, angustiado e revoltado com as injustiças da vida e com a sua vida injusta, pediu que não publicasse o que tinha dito. E assim foi, não há qualquer trecho escrito de suas palavras gravadas naquele dia. Antes de eu ir embora, Sábato ainda abriu um armário e tirou uma série de anotações que ele mesmo havia selecionado e anotado, e que falavam sobre sua produção. “São para ti”, me disse, “e se eu pudesse ler (estava quase cego), te ajudaria no teu trabalho”. Suas palavras foram sinceras. As pessoas que o apreciam sabem e dizem que Ernesto Sábato nunca foi um escrevinhador ideológico, não fez pós-graduação em marketing pessoal e literário e tampouco foi promovido artificialmente. Foi, é e sempre será, um grande escritor. Sua obra e seus atos são a prova disso. Descanse em paz, maestro. * Depoimento de Ruben Daniel Castiglioni, professor de Literaturas de Língua Espanhola no Instituto de Letras da UFRGS - Zero Hora, 07 maio 2011 |
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