¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, junho 09, 2011
 
VIGARICE À VISTA:
OS GIGOLÔS DO LUTO



Só há uma coisa da qual ninguém escapa na vida, dizem as gentes. A morte. Há quem diga que são duas. A outra é o imposto de renda. Bom, desta última já escapei. Da primeira, não tenho pressa.

Há uma época na existência em que encontramos nossos companheiros de geração nos jornais, em participações de casamento e nascimento. Depois vem a outra, em que vamos encontrá-los nos necrológios. Qualquer pessoa de sessenta ou mais anos carrega pelo menos dois ou três cadáveres nas costas. Eu carrego três: pai, mãe e a mulher querida. Mais dois ou três outros menos pesados de carregar, é verdade. A morte dos pais faz parte do ritmo da vida. A anomalia só surge quando um filho morre antes. Já a morte da companheira que elegemos para toda a vida, esta é bem mais salgada.

Enfrentei estas mortes não sem sofrimento. Mas com naturalidade. Há quem diga que Deus dá e Deus tira. Prefiro dizer que a vida, se é generosa, também é cruel. Para nossos momentos de alegria, mais dia menos dia pagaremos um tributo de tristeza. Ateu, não fiquei amaldiçoando deus nenhum por meus padeceres. Não experimentei revolta alguma. Morrer faz parte da vida. Quem não entendeu isto, não entendeu o que é viver.

Assim sendo, me causa espanto a nova vigarice que surgiu no mercado, a terapia do luto. (Quer dizer, não me espanta muito, afinal já vi coisas até mais espantosas em minha vida). Leio entrevista no UOL on line com Cissa Guimarães, atriz que optou pela terapia do luto após perder o filho no ano passado. "A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano", diz a atriz. "Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver."

Essa, agora! Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

No início do tratamento, o indicado é visitar o profissional duas vezes por semana. Conforme o progresso do paciente, as sessões se tornam semanais e, posteriormente, quinzenais - até que o paciente receba alta. E isto, obviamente, quem vai decidir é o terapeuta. De acordo com Adriana Thomaz, ainda existem poucos especialistas em luto no Brasil, e a maioria atua na capital paulista. Normal. São Paulo, com sua diversidade e incultura, é berço fértil para todos os engodos e crendices. Aqui nasceram as prósperas igrejas dos bispos Edir Macedo, R. R. Soares, apóstolo Hernandez, bispa Sonia et caterva. Grandes vigarices não vicejam em cidades pequenas.

Quando minha Baixinha estava morrendo, abutres de batina começaram a rondar o quarto no hospital. Eles sempre surgem quando a pessoa está fragilizada, tentando talvez contabilizar em seus currículos ante o Altíssimo a salvação de alguma alma perdida. Eles são extremamente intuitivos. Quando religiosos vão visitá-lo num hospital, não espere nada mais da medicina. Corri com os abutres que já se curvavam sobre o cadáver de minha mulher.

Quando ela morreu, coincidiu que na semana seguinte eu tinha consulta marcada com uma nefrologista. Ainda abalado, falei do acontecido e, inevitavelmente, chorei. “Quem sabe tu procuras um terapeuta?” – me sugeriu a médica. Quase perdeu o cliente. Eu passara minha vida toda denunciando essa malta de exploradores da fé dos incultos que, sem terem bem gerido suas vidas, dão-se ainda ao desplante de cobrar caro para gerir vidas alheias.

Obrigado, Dra! Vou curtir minha dor comigo mesmo. Uma única pessoa pode consolar-me desta perda: eu mesmo. Nenhuma palavra alheia poderá me trazer qualquer consolo. Lá se foram oito anos. Sofri muito e continuo sofrendo. Um pouco menos, agora, é verdade. Seres que não conseguem suportar uma morte nunca estiveram preparados para enfrentar a vida. Prefiro consultar Pessoa:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.


Claro que ela me faz falta. Mas a vida, essa energia indiferente aos estragos que produz onde quer que brote, continua sua marcha com um solene dar de ombros aos mortais que ficam. Há uma outra alternativa, suicidar-se para acompanhar quem parte. Mas suicídio é uma tremenda falta de curiosidade. Sem falar que trará sofrimento a mais pessoas.

Segundo a terapeuta da atriz, quando iniciada logo após à morte, a terapia do luto é, também, um tipo de aconselhamento para as tarefas básicas, como tomar a decisão de ir ou não ao velório, de ver ou não o corpo, levar as crianças ao enterro (e o que dizer a elas), se será positivo participar de rituais religiosos, voltar ou não para casa e o que fazer com os pertences do ente querido...

Como se fosse necessário pagar alguém para saber se devemos ou não ir a um velório, ver ou não ver o corpo. Não precisamos consultar ninguém para saber que nossa presença é necessária na última caminhada e que é covardia imperdoável recusar-se a ver o corpo. Recusar-se a ver um cadáver é recusar-se a ver a vida, quando ela morre. E as crianças devem estar lá, sim senhor. Para saber o que inelutavelmente as espera e espera também os seus próximos. Há boas chances de que uma criança, não tendo ainda vivido, suporte melhor a morte do que um adulto. Sem terapia alguma.

Como se fosse necessário pagar alguém para decidirmos se voltamos ou não para casa e o que devemos fazer com os pertences do ente querido. Eu voltei correndo para casa, para relembrar os dias felizes que aqui passamos. Das coisas dela, guardei algumas roupas – as que mais lhe agradavam – para que o tempo não matasse também sua memória. Preservei sua prateleira de perfumes, assim a vejo todas as manhãs ao sair do banho. E fotos de nossas viagens e de sua infância. Mais cartas, muitas cartas que trocamos, desesperados, quando vivemos em países diferentes. Estas são as mais duras de encarar. Mas relembrar é bom e chorar faz bem.

"A terapia facilita o reconhecimento dessas tarefas, que não podem ser evitadas ou apressadas, permitindo que o enlutado se organize para elaborar a perda, assim como estabeleça sua rede de apoio e busque sua espiritualidade - religiosa ou não”. Além desse acompanhamento inicial, consultas auxiliam a enxergar a realidade e encarar a vida.

Ora, para enxergar a realidade e encarar a vida existem os bons livros, que saem muito mais barato do que qualquer gigolô do luto, estão eternamente a nosso dispor e sempre disponíveis às nossas consultas, a qualquer hora do dia ou da noite. Para entender o mundo e a mim mesmo, eu prefiro consultar Nietzsche, Swift ou Voltaire, ou Renan ou Le Goff, ou Pessoa ou Hernández, em vez de pagar ilustres desconhecidos que provavelmente desconhecem os homens que se debruçaram sobre a existência para estudá-la.

Têm um belo mercado pela frente, estes senhores. Pobres de espírito endinheirados é o que não falta neste mundo. As pessoas parecem querer fugir das lágrimas. Mais um pouco e estarão contratando psicanalistas para enfrentar a morte de cães, gatos e papagaios.

Mas no meu luto ninguém mexe.