¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 11, 2011
 
EX-FREIRINHA RECIDIVOU


Sou freguês de livreta dos livros da Karen Armstrong. Creio que li todos os publicados no Brasil e mais alguns em espanhol, sobre cristianismo, judaísmo, islamismo, fundamentalismos, Jerusalém, Bíblia. Ex-freira católica, Armstrong se dedicou ao estudo de história das religiões e é excelente guia quando se trata de percorrer os textos sagrados. Tem análises pertinentes sobre o Antigo e Novo testamentos, como também sobre o Alcorão.

Há alguns meses, comentei que iria ler seu último livro publicado no Brasil, Em Defesa de Deus. Em uma resenha publicada no Estadão, fiquei com um pé atrás. A religiosa, que havia abandonado o hábito, parece ter voltado ao redil. Para a ex-freira, religião virou auto-ajuda: “religião é como música. Não se pode explicar, mas se ouve com prazer e, de quebra, ela ainda opera milagres como acalmar bebês, fazer crescer as flores e curar algumas doenças”. Como quiser. Mas desconheço músicas que ordenem a lapidação de mulheres, a morte de homossexuais ou o extermínio dos não-crentes.

Pois acabo de ler o livro. Decepção. A mulher está conclamando seus contemporâneos a crer em um deus moderno. “Na primeira parte deste livro, tento mostrar duas coisas; que, no mundo pré-moderno, pensava-se em Deus de um modo que pode ajudar a resolver algumas questões problemáticas para nós – Escrituras, inspiração, criação, milagres, fé, crença e mistério – e que a religião pode desandar. Na segunda parte, abordo o surgimento do Deus moderno, que lançou por terra muitos pressupostos religiosos tradicionais”.

Ou seja, Armstrong está propondo um deus à la carte. Como o antigo não funciona mais, crie-se um novo para adoração dos crentes. O que me lembra uma das mais geniais charges de Quino. Uma alminha chega ao paraíso e bate na porta. Pedro a atende:

- Sí?
- Buenos dias. Está Diós?
- Cuál? - pergunta Pedro.
O crente se indigna:
- Cómo cuál? El único y verdadero.
Pedro vira-se e pergunta:
- Para fanáticos hay alguién de guardia hoy?

Sou como o crente do Quino. Para mim só existe um deus, pelo menos dentro do universo cristão. El único y verdadero! Isso de um deus ao sabor da modernidade é como chegar a um restaurante e pedir ao garçom para modificar um prato. No fundo, uma vontade irresistível de crer. A ex-freirinha recidivou. Se aquele deus antigo não me serve, eu construo um outro.

Escreve Armstrong: “O papel da religião, estreitamente relacionado com o da arte, consiste em nos ajudar a ter uma convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, dor, sofrimento, desespero, indignação em face da injustiça e da crueldade da vida”.

Ora, pode existir muita arte nas religiões. Mas, diferentemente das artes, as religiões são normativas. Se leio Cervantes ou Shakespeare, não me sinto coagido a matar ou morrer em nome de uma fé, tampouco a ter este ou aquele comportamento, muito menos a afirmar certezas em nome de minhas crenças. A arte propõe. A religião impõe. Shakespeare pode narrar traições e assassinatos, mas não sugere a ninguém matar. Jeová é taxativo. Ordena a Israel matar os amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus, mais tribos do que massacrou Maomé. O bom deus dos judeus e cristãos manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire. Só o santo homem Moisés mandou degolar três mil judeus. No Novo Testamento, no Apocalipse, o Cordeiro volta para exterminar o que sobrou da humanidade. Não vamos encontrar esta incitação ao genocídio em nenhuma outra obra literária.

Sem falar que todos temos, bem ou mal, uma convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, dor, sofrimento, desespero, indignação em face da injustiça e da crueldade da vida. Se há problemas que não conseguimos resolver, é porque não têm solução mesmo. Como recuperar-se da morte de uma pessoa a quem um dia adoramos? Não há como. Refugiar-se na crença hipotética de uma vida futura é escapismo.

Continua Armstrong: “No entanto, a religião não funciona automaticamente; requer muito esforço e não leva a nada se é fácil, falsa, idólatra ou complacente. A religião é uma disciplina prática, e seus insights não se devem à especulação abstrata, mas a exercícios espirituais e a uma vida de dedicação. Sem isso, é impossível entender a verdade de suas doutrinas”.

A ex-freirinha, no fundo, está querendo dizer que precisamos fazer um esforço para crer. Algo assim como você se prostar e orar: "quero crer, quero crer, quero crer", e acabar crendo. Ora, isto só funciona com frágeis de espírito. Eu só creio naquilo que minha razão aceita. Armstrong percebe o problema e argumenta: “A revelação não é um fato que ocorreu num passado distante, mas um processo criativo que está em andamento e requer nossa engenhosidade. A revelação não pode nos fornecer informações infalíveis sobre o divino, porque o divino sempre ultrapassa nosso entendimento”.

Bom, se ultrapassa meu entendimento não me serve. Por revelação entendo o que foi revelado, este é o alicerce de todas as religiões. Não podemos ter novos alicerces, conforme as épocas. Revelação é o que está escrito, não pode depender de engenhosidade. Assim fosse, as religiões seriam cambiantes. É o que propõe a teóloga.

Concluindo seu ensaio, Armstrong afirma: “Se um texto bíblico contradiz uma nova descoberta científica, cabe ao exegeta interpretá-lo de outra maneira”. Assumiu definitivamente o vício dos teólogos, o da interpretação. Há rabinos que afirmam que a Torá são as interpretações da Torá. O umbigo da Sulamita, por exemplo, não é o umbigo da Sulamita. Assim como o umbigo é o centro do corpo, o templo de Salomão é o centro do mundo. Então o umbigo de Sulamita é o templo de Salomão. Para os teólogos cristãos, que não conseguem aceitar um livro erótico na Bíblia, a busca de Sulamita pelo amado é o amor da Igreja por Cristo.

Assim, no Cântico dos Cânticos, quando Sulamita, morena e formosa, pede a Salomão: "que me beije com os beijos de sua boca!", Sulamita não está sedenta de beijos. É a Santa Madre Igreja Católica que manifesta seu amor ao Cristo. Quando o rei responde: "Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro de Faraó!", não está comparando a Igreja a uma égua. Está apenas correspondendo ao amor de sua noiva, a Igreja.

Se um texto bíblico contradiz uma descoberta científica, não cabe nenhuma outra interpretação. Só cabe jogá-lo à famosa lata de lixo da História. Armstrong envelheceu e entregou os pontos ante a intempérie metafísica.