¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, agosto 13, 2011
 

MINHA CONTRIBUIÇÃO
À DERRUBADA DO MURO



Se você fala em 1917, qualquer pessoa medianamente informada associará a data à Revolução Russa. Mas se você fala em 1989, ninguém associará este ano a algum evento particular. Em palestras, várias vezes perguntei a um público universitário que havia ocorrido em Nove de Novembro de 1989. Nem alunos nem professores sabiam responder. A data, no entanto, ao lado de outubro de 1917, é uma das duas mais importantes do século. Se 1917 é o marco de uma peste que invadiu o planeta e fez cerca de cem milhões de cadáveres, 1989 marca o momento em que a tirania desmorona.

Já não lembro quando estive pela primeira vez em Berlim. Terá sido no final dos 70. O muro parecia uma fronteira erguida para a eternidade e ninguém sonhava, naqueles anos, que um dia pudesse ser demolido. Berlim Ocidental era uma ilha de prosperidade em pleno deserto socialista. Você embarcava em alguma cidade fronteiriça da Alemanha Ocidental e no trem já sentia o cheiro do socialismo. Trens vagabundos, policiais carrancudos acompanhados por cães também policiais, um tratamento hostil dos passageiros, mais ou menos do tipo “o que você veio fazer aqui?”

Ao desembarcar na Berlim Ocidental, a volta ao conforto e bem-estar. A cidade era rica e privilegiada. Funcionava como uma vitrine do capitalismo em meio ao inferno socialista. O Senado berlinense proporcionava uma série de subsídios a quem lá vivia, para manter habitada a vitrine. Era uma das cidades mais confortáveis e baratas da Europa. A amiga que me recebia vivia em um belo apartamento de quatro quartos, cujo aluguel era a metade do que eu pagava em Paris por um quarto-e-sala.

Berlim era a cidade preferida de aposentados e de jovens que preferiam não entrar de rijo na competição capitalista. Um pequeno paraíso incrustado no mundo soviético. A Kurfürstendamm, Kudamm para os íntimos, com suas lojas e restaurantes suntuosos, fazia um contraste escandaloso à miséria do outro lado do Muro. Minha amiga levou-me lá, para sentir o cheiro do socialismo. Não estou falando por metáforas. Socialismo cheira mal mesmo. Mal atravessei a fronteira, um odor desagradável de carvão vegetal inundou-me as narinas.

As diferenças começavam já na travessia do Muro. Do lado de cá, ao entrar no metrô, você punha o tíquete numa máquina eletrônica, que o devolvia do outro lado. Do lado de lá, você tinha de picotar o tíquete em uma alavanca enferrujada. Na fronteira, um policial com cara de buldogue olhava um minuto para sua foto no passaporte e mais outro minuto para seu rosto. Quem vive em Livramento ou Rivera, onde se passa de um pais a outro sem dar satisfação a autoridade alguma, ficaria perplexo ante a Berlim de então.

Minha cicerone queria mostrar-me como era um restaurante socialista. Primeiro, precisamos achá-lo, que no paraíso soviético restaurantes não há placas. Após uma boa hora pela neve, interrogando pessoas na rua, achamos um. Ficava no primeiro andar de um prédio qualquer, sem qualquer indicação de restaurante. Na escadaria, sem calefação alguma, uma boa dezena de pessoas esperavam na fila. Mais de meia hora de espera. Lá dentro, de fato todas as mesas estavam lotadas. Mas as mesas eram imensas, a ponto de dificultar a conversação. E ficavam a meia légua uma da outra. Fossem menores e estivessem mais próximas, a sala teria seu espaço útil triplicado, sem desconforto algum.

Os garçons, nem te ligo. Não recebiam gorjeta, não havia então porque preocupar-se com o cliente. Lá pelas tantas, um deles dignou-se vir até minha mesa. Pedi o cardápio. Teria umas quinze opções de pratos. Fui pedindo, um a um, para ouvir sempre um invariável “não tem”. Cheguei ao último. Era o prato do dia, o único que serviam. O cardápio era de mentirinha, resquícios de uma Alemanha que ainda não era comunista. Do outro lado do Muro, na Berlim ocidental, os restaurantes regurgitavam de gente, sem fila alguma e com cardápios de verdade.

Berlim hoje é uma só. Não há mais distinção de tratamento entre ocidentais e orientais. A cidade não está dividida por uma fronteira. Se você quer ver as diferenças entre as antigas cidades, a Ocidental e capitalista, e a Oriental e comunista, procure o filme Adeus, Lênin, de Wolfgang Becker, uma das mais belas sátiras sobre o socialismo que vi nos últimos anos. Uma senhora, comunista devota, entra em coma antes da queda do Muro E só sai do coma depois. O filho, que já havia se libertado das tralhas e hábitos socialistas, não quer chocá-la. Sai então a buscar no lixo os ícones socialistas. Entre eles, um poster de Che Guevara. O que é simbólico. Enquanto na América Latina ainda se cultua o celerado argentino, na Alemanha já o jogaram na famosa lata de lixo da História. Esta cena sobre o poster do Che foi eliminada da versão do filme no Brasil.

Em 1990, fui a Berlim quebrar os cacos que ainda restavam do muro. Tinha um problema crônico de menisco e volta e meia me acometia a tal de água no joelho. Claro que não faltaram as más línguas a aventar a hipótese de uísque no joelho. A bem da verdade, aquele líquido tinha uma certa cor de bom scotch. Sabe-se lá!

Parti rumo ao muro, sem lenço nem documento, como se diz. Em Paris, escorreguei e a perna começou a inchar. Pensei ir ao médico, mas desisti. Sabia qual era o tratamento. Ele faria uma punção no joelho, extrairia o líquido sinovial e me ordenaria repouso. Se é para ficar de molho, pensei, fico em Berlim, mais perto do muro. Embarquei.

No trem, desastre. A perna foi inchando a ponto de mal caber na perna da calça. Eu viajava com uma amiga, que seria minha anfitriã. Nem deu para ir a casa dela. Ela telefonou para o hospital e do trem fui direto para lá. Onde já me esperavam dois médicos, com uma maca na recepção.

Eu sabia o que me esperava. Uma punção e a recomendação de repouso. Fiquei três dias de molho e não resisti. Meu joelho que se lixasse. Reuni as pernas que me restavam, me muni de martelo e formão, e fui ao muro tirar meus cacos. À medida que me aproximava, comecei a ouvir um ruído intenso de pancadas metálicas, era como se milhares de pica-paus tivessem atacado uma árvore ao mesmo tempo. Eram alemães e turistas, de martelo em punho, quebrando o muro. De fato, parecia ter sido construído para a eternidade. A cada martelada que eu dava, o martelo vinha de volta e não fazia nem mossa no muro. A caro custo e após muito trabalho, consegui dois míseros caquinhos.

Mas dei minha contribuição, ainda que simbólica, à História.