¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, agosto 02, 2011
 
O CAMINHO MAIS LONGO


Estás contra toda tua geração – me disse um dia um bom amigo de Porto Alegre, o Aníbal Damasceno Ferreira. Levei alguns anos para entender o significado desta afirmação. Até que um dia entendi: eu não era marxista. Estive por eles cercado, desde o ginásio até a universidade e, de certa forma, até hoje. O mundo está cheio de pessoas que são comunistas e não sabem que o são. Tenho uma amiga que nunca leu Marx, que nunca militou no Partido Comunista, que jamais leu qualquer coisa sobre a história da URSS, muito menos sobre Lênin ou Stalin. Seus reflexos, no entanto, são os de um comunista. Suas opiniões sobre educação, problemas sociais, história ou política seriam totalmente endossadas por Marx. De onde esta formação? Das ditas faculdades de ciências humanas, que se transformaram em laboratórios de marxismo.

Nos anos de minha adolescência, em toda cidadezinha do interior, podia faltar uma guarnição do Exército. Mas duas coisas eram onipresentes: uma igreja católica e uma célula comunista. Não por acaso, nasci na cidade em que surgiu a primeira célula comunista no Brasil, Santana do Livramento. Os paulistas pretendem que o partido tenha surgido em São Paulo, em 1922. Nada disso. Em 1918, o partido já estava organizado em Livramento, criado por anarquistas italianos que chegaram ao Rio Grande do Sul pelo porto de Rio Grande.

Quando abandonei o catolicismo, aos 15 ou 16 anos, fui cercado pelos camaradas, que viam em mim um promissor apparatchik. Em Dom Pedrito, onde fiz o ginásio, líamos as revistas China e Unión Soviética, em espanhol, mais aquele catecismo em edições mensais do PC, a revista Problemas, e muita imprensa de esquerda. Quem as distribuía era o Gerson Prabaldi, operário e militante, um dos raros comunistas que até hoje merece meu respeito. Funileiro, patrão de si próprio, lutava por uma sociedade mais justa, nada a ver com os filhos da classe média que fizeram carreira e fortuna montados nos ideais socialistas. Final de tarde, fechava a funilaria, pegava uma bicicleta e saía a fazer seu apostolado, o porta-cargas repleto de ideologia.

O funileiro acreditava na utopia e dedicava suas horas de lazer à construção do socialismo. Homem de uma era pré-televisiva, na qual mesmo os jornais que eventualmente chegavam a Dom Pedrito desconheciam o que se passava no mundo soviético, Gerson acreditava piamente nos panfletos vindos de Pequim ou Moscou. Fosse um dia ao paraíso que louvava, ou tivesse melhores fontes de informação, tenho certeza de que faria marcha à ré.

Era homem desinformado, mas honesto. Em sua oficina, rodeado de pneus e aros de bicicletas, recebi minhas primeiras aulas de marxismo, baseadas em um livrinho de Georges Politzer, Curso de Filosofia - Princípios Fundamentais. Primeiras e primárias: sua argumentação simplória não me convencia. No entanto, este divulgador menor foi bastante significativo. Em sua tentativa de trocar em miúdos o marxismo para um público operário, Politzer despe a doutrina de sua retórica e a exibe em sua indigência.

Nem por isso deixo de admirar o apóstolo da bicicleta, apesar de sua visão simplista do mundo. Era enganado pela propaganda soviética, é verdade. Mas, antes dele, os melhores cérebros do século haviam caído no mesmo engodo.

Na época, início dos 60, recém havia sido erguido o Muro de Berlim. A Cortina de Ferro, expressão cunhada por Winston Churchill em 1946, se fechava definitivamente. Ninguém podia mais sair do mundo soviético. Ora, as revistas que o Gerson me passava me mostravam países idílicos, em que camponesas robustas e risonhas colhiam o trigo nos campos, operários felizes dirigiam tratores, mulheres lindas e independentes trabalhavam em fábricas. Não era preciso ser nenhum gênio para que uma pergunta acometesse qualquer ser pensante: se aquele universo era paradisíaco, por que era proibido sair do paraíso? Afinal, quando saímos do paraíso, sempre acabamos voltando.

As respostas eram muitas. A mais corrente era que ninguém queria sair da União Soviética. Ora, se ninguém queria sair, o Muro era perfeitamente dispensável. Como também os arames farpados, os guardas armados, as torres de vigilância e os cães de guarda que o protegiam. Penso que essa pergunta, que ocorreria ao mais simplório observador, era suficiente para contestar – e de uma vez por todas – a utopia soviética. Esta singela perguntinha afastou-me de qualquer veleidade comunista. Mas a fé remove não só montanhas, como também qualquer argumento racional.

Naqueles dias ocorrera também a revolução cubana. É possível que eu até tenha nutrido alguma simpatia pelos barbudos de Sierra Maestra. Nunca simpatizei com os ianques e qualquer afronta ao império me alegrava. Mas estava vacinado pelo Muro. Minha geração toda endeusou Castro e Guevara, e até hoje continuam a endeusá-los. A bibliografia sobre Cuba virou quase gênero literário. Era comum encontrar em livrarias estantes dedicadas exclusivamente ao Che e à revolução cubana.

Como dizia Ernesto Sábato, as revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas. Só algum macróbio fanático, tipo Niemeyer ou Evaristo Arns, seria hoje capaz de falar seriamente em revolução cubana. Durante várias décadas no século passado, não conseguia emprego em jornal ou na universidade quem criticasse Castro.

No início dos 80, quando o Diário Catarinense era ainda um projeto em Florianópolis, fui convidado para escrever uma crônica para o nº 0. Era uma espécie de teste para a escolha de um cronista para o jornal. Escrevi sobre Fidel Castro. Lá pelas tantas, eu dizia que as esquerdas deveriam rezar pela boa saúde e longa vida de Alfredo Stroessner e Augusto Pinochet. Não que eu tivesse um maior apreço por estes senhores. Mas ocorre que, uma vez mortos, Fidel Castro seria o último tirano do continente.

Minha crônica rolou de tela em tela na redação, para indignação dos jovens que estavam montando o DC. Uma redatora chegou a abordar-me na rua, furiosa: "Cara, tu não podes escrever aquilo. Nós sabemos que é verdade, mas isso não pode ser escrito". Claro que não fui escolhido como cronista. O editor até que simpatizava com meu nome, mas não resistiu à pressão da redação. Antes mesmo de ser admitido, fui demitido... por Fidel.

Leio nos jornais que Raúl Castro, o dauphin, vai "flexibilizar" as rígidas regras para viagens de cubanos ao exterior. "O país está no caminho para modificar decisões que tiveram seu papel, mas que perduraram mais que o necessário", disse o ditador. Durante anos, os cubanos enfrentaram mares e tubarões – e muitos morreram enfrentando - em balsas precárias para chegar a Miami. Porque estavam proibidos de abandonar o paraíso, até hoje louvado por um cineasta venal como Michael Moore.

Lenta é a jornada de um imbecil até o entendimento. Foram necessárias duas décadas após a queda do Muro, o desmoronamento da União Soviética e do comunismo, para que um tiranete latino-americano se desse conta que navegava contra os ventos da História. Pior que um marxista, só um marxista latino-americano. Pior que um marxista latino-americano, só um militar marxista latino-americano, Chávez que o diga.

Mas que ninguém se iluda. Cuba continua e continuará por muito tempo ainda longe de qualquer idéia de liberdade. Um país precisa de décadas para recuperar-se dos estragos do comunismo. Como disse alguém, já não lembro quem, o socialismo é o caminho mais longo para se chegar ao capitalismo.