¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, setembro 02, 2011
 
IN MEMORIAM
ANTIGO ENSINO



Pois, meu caro Ricardo, que o ensino decaiu, disto não temos dúvidas. Quando fui lecionar Letras na Universidade Federal de Santa Catarina, nos anos 80, constatei que alunos em final de curso tinham consideravelmente menos formação do que a que tive no ginásio Nossa Senhora do Patrocínio, de Dom Pedrito, anos 60. Para começar, sequer dominavam o vernáculo.

Dizes que hoje nem se sabe quem foi Júlio César. Seria pedir demais. Há alguns anos, fui convidado para uma palestra no Patrocínio. O que muito me comoveu, afinal eu já fizera palestras em Estocolmo, Berlim e em várias cidades brasileiras, menos em Dom Pedrito. O filho da terrinha, que revirara o planetinha, iria agora devolver aos seus um pouco do que lhe fora dado.

Elegi como tema a Guerra Fria, assunto sobre o qual escrevera um livro. O tema era também um gancho para falar do que aprendi em viagens. Após uns dez minutos, me senti falando grego. Ninguém estava entendendo nada. Não sabiam nada da Segunda Guerra, muito menos de Guerra Fria. De Hitler, haviam ouvido falar, afinal o cinema o elegeu como saco universal de pancadas. Sobre Franco, ignorância total. Guerra Civil Espanhola, ni pensar. Getúlio Vargas, não sabiam se fora açougueiro ou alfaiate. Ora, quando adolescente, estes eram os temas usuais de nossos papos em bares e bordéis.

Tive de baixar a bola. Os tempos haviam mudado. Naquele colégio, três décadas atrás, eu discutia as conquistas de Alexandre, as guerras púnicas, a guerra de Tróia, e lia De Bello Galico no original. Lembro até hoje: Gallia est omnis divisa in partes tres, quarum unam incolunt Belgae, aliam Aquitani, tertiam qui ipsorum lingua Celtae, nostra Galli appellantur. São frases que ficam. A beleza das gurias que bombeávamos – como se dizia lá na Fronteira – no footing da praça, nós a medíamos em milihelenos, a capacidade que tem uma mulher de fazer naufragar mil navios.

Já contei em crônicas passadas. Eram dias em que nossas mães queimavam nossas incipientes bibliotecas. Não por censura, mas por temor aos militares. Em verdade, não havia razão para tanto. Mas mãe é mãe. Não gostavam de nos ver reunidos discutindo filosofia. Íamos então para a praça General Osório. Mas as noites de Dom Pedrito, quando fustigadas pelo minuano, são gélidas. O recurso era o bar do Santinho, onde continuávamos discutindo nossas concepções de homem e de mundo. Mas o Santinho fechava lá pelas dez. O último recurso era o bordel.

Visitávamos as moças para continuar discutindo filosofia, desde a maiêutica de Sócrates à enteléquia aristotélica. Por um lado, tínhamos medo de mulher, constituam um mistério que a gente ainda não conhecia. Por outro, mal tínhamos dinheiro para uma cervejinha. Lembro que uma delas era uma defensora efusiva da reforma agrária. Mas nós, como diria Sartre, éramos uma paixão inútil. Com o passar dos dias, colocaram uma atalaia na janela. Mal surgíamos na esquina, fechavam a casa. “Lá vêm os filósofos, dali não sai grana alguma”.

Na biblioteca local, havia desde Platão a Cervantes, passando pelos enciclopedistas. Os livros que nos faltavam, encomendávamos de Montevidéu. Éramos obcecados por leituras, novos conhecimentos. Para desespero dos padres oblatos do Patrocínio, que preferiam que não lêssemos tanto. Por um lado, tínhamos bons professores, que nos excitavam a curiosidade intelectual. Por outro, tínhamos desejo de entender o mundo que nos cercava.

Hoje, parece não mais existir nem bons professores nem desejo de conhecer. A era audiovisual terá muita responsabilidade nisto. Televisão é lazer ao alcance de todos. Na época, só os mais abastados tinham acesso ao aparelho. Por outro lado, não havia todo o bombardeio midiático atual. O lazer disponível era a leitura. Novelas, só existiam as radiofônicas. Na UFSC, anos 80, a discussão das novelas da Globo era assunto corrente no Departamento de Letras.

Costumo afirmar que fora da leitura não há salvação. Na universidade, encontrei professores que não tinham em casa um único livro. Mesmo assim, acho que nem tudo está perdido. Aqui em São Paulo, pelo menos, os pais investem em escolas paralelas. É comum ver crianças estudando inglês em institutos de idiomas. Isso sem falar nos que são enviados pelos pais a estudar no Exterior.

O mercado sempre precisará de profissionais competentes. Se a escola não os forma, eles dão um jeito por conta própria. Hoje, um grande jornal não contrata um repórter que não saiba pelo menos três línguas. Não se concebe um médico que não saiba inglês. Até taxistas já intuíram que falando inglês conseguem aumentar seus ganhos.

Nem tudo está perdido, dizia. Mas quem quiser conhecer pouco ou nada pode esperar da escola.