¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 19, 2011
 
DE PÉ NO ESTRIBO


Viajar, a meu ver, é o supremo prazer. Para bom observador, toda viagem enriquece. Gosto de viajar por países desenvolvidos. Ou melhor, gosto mesmo é da Europa. Universitários americanos já me brindaram com um palavrão que viceja por lá, eurocêntrico. Como se fosse pecado gostar da Europa. Eu gosto e mais ainda, gosto da Europa latina. Não é fácil para mim escapar do triângulo Paris, Roma, Madri. Vá lá, quadrilátero, se ponho Barcelona no roteiro. Sem falar que estou chegando à sabedoria do Buñuel. Que dizia: “não viajo por países que não conheço”.

Já pensei explorar melhor Estados Unidos e Canadá. Talvez ainda o faça. Mas cada vez que faço as malas, vou para o Leste. Como cavalo que volta pra casa. Certamente o leitor não entenderá a comparação. Explico. Cavalo, quando sente que volta pra sua querência, trota mais ligeiro e se pode soltar as rédeas que ele sabe o caminho.

Gosto de viajar por países desenvolvidos, dizia. Miséria não me atrai. Mesmo assim, um país miserável sempre pode ser pedagógico. Uma de minhas melhores viagens foi a pior delas. Em 81, uma amiga pagou-me para guiá-la pela Romênia. Lá, senti pela primeira vez o absurdo e a desumanidade de uma fronteira intransponível. Estava em Mangália, cidade balneária às margens do mar Negro, a sete quilômetros da fronteira com a Bulgária. Hospedei-me em hotel de luxo, onde como cardápio só havia duas opções, carne de frango ou de porco. Se você pedia porco, tudo bem. Mas se pedisse frango, só vinha porco mesmo, afinal frango era apenas uma abstração do cardápio. Se em hotel de luxo, pagando em dólares, assim era tratado o turista, fiquei imaginando o que comeriam os romenos. Mas não era disto que pretendia falar.

E sim de um garçom, meu interlocutor em Mangália. Com ele eu trocava meus dólares por lei (plural de leu, a moeda lá deles). Ao saber que eu iria a Varna, na Bulgária, devolveu-me meus dólares e outros mais. Queria que eu lhe comprasse "o que fosse possível" nas berioskas búlgaras, mais baratas que as romenas. Era um homem de meia idade e ocorreu-me perguntar se não tinha alguma vez atravessado aquela fronteira, a sete quilômetros do hotel. Não, jamais a atravessara. A polícia lhe exigiria razões muito graves para ultrapassar aquela linha, sem falar que, tal pedido, já o colocaria na lista dos suspeitos de conspirar contra o Estado. O garçom teria uns quarenta anos e jamais lhe fora permitido dar uma espiadela no país ao lado.

Nas praias, observei mais um daqueles fatos que nos exigem algum tempo de reflexão para serem entendidos. Turistas estrangeiros e internos tiravam fotos ao lado de maquetes de veleiros. Veleiro mesmo, que é bom, nem pra remédio. Muito menos barcos. Fui consultar meu interlocutor.

- É simples, disse o garçom -. A Turquia fica a apenas dois dias de navegação. Seria tentador demais para quem sabe velejar ou remar.

Senti-me então como um viajante privilegiado, em rápido turismo por um gulag. Fiquei duas semanas na Romênia. Duas, porque não havia vôo de volta ao mundo livre logo após a primeira. Ofereceram-me mais uma terceira semana no país, nesta não pagaria nada por hotel ou refeições. Sei que para muitos jornalistas não constitui nenhuma falta de ética receber mordomias para fazer o elogio de ditaduras, há inclusive quem se orgulhe de prêmios literários concedidos pela ilha particular de Castro, da mesma forma que Jorge Amado orgulhou-se um dia de receber o prêmio Stalin de Literatura. Devo ser antiquado, pois recusei a hospitalidade romena. O que queria mesmo era sair, o mais rápido possível, daquele universo sufocante.

Conheci outros países socialistas, mais ou menos na época da queda do Muro. Berlim Oriental, um desastre. Praga e Budapeste, já distanciadas do comunismo, mas ainda sofrendo de burocratite. Quando fui à Rússia, em 2000, só conseguia visto se tivesse hotel reservado... e pago. Ao chegar em São Petersburgo, o hotel reteve meu passaporte, para registro na polícia. Mas que tenho eu, turista, a ver com a polícia? Hoje, o visto caiu. É longa a jornada dos comunistas até o entendimento.

Caros, estou de pé no estribo. Rumo ao norte. Berlim, Copenhague, Praga, Karlovy Vary, Budapeste e finalmente Paris, que ninguém é de ferro. Em busca daquele camembert do Procope, do qual falei ontem. Tentarei mandar notícias. Mas é difícil escrever viajando. Até que dá, mas o resultado não é bom. Não terei o tempo necessário para uma reflexão mais profunda e minha biblioteca estará do lado de cá do oceano. Sem falar que me entregarei a um de meus prazeres diletos, o de andar de bar em bar. E isto dificulta qualquer crônica.

Amanhã, amanheço em Berlim. Para não deixar o leitor à míngua, republicarei textos antigos, alguns da era pré-internética. O leitor, penso, não será prejudicado. Se nem eu lembro do que já escrevi, suponho que as crônicas republicadas terão sabor de novas.

Auf Wiedersehen!