¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 09, 2011
 
GAMEFICAÇÃO DA LITERATURA


De certa forma, me alfabetizei lendo histórias em quadrinhos. Quer dizer, quando as encontrei já sabia ler, é claro. Em meus dias de adolescente, fui um grande cultor do gênero. Pato Donald, Luluzinha, Zorro, Hopalong Cassidy, David Crockett, Mandrake, Tim Holt, Nyoka, Flash Gordon, Superman, Batman. Tarzan, eu o curti em quadrinhos, mas também nos livros de Edgar Rice Burroughs. Quem não lembra de seu grito de guerra, Krig-ah! bandolo tarmangani? Só não lembra quem não leu Burroughs. Suponho que essas revistas não existam mais. Desde há muito não as vejo nas bancas.

Diria que foi a iniciação de minha geração à literatura. Nas matinês de domingo, íamos ver seriados do Zorro ou Flash Gordon. Ao final de cada episódio, o mocinho ficava numa sinuca de bico. Sabíamos que dela escaparia, ou não seria mocinho. A curiosidade estava em saber como. O que só se saberia no próximo domingo. Nessas matinês, havia um farto intercâmbio de literatura, uma espécie de bolsa de gibis. Cada pirralho vinha com um monte de revistas e trocávamos as lidas pelas não-lidas.

Foi um momento significativo em minha vida. Com o tempo, fui abandonando o gênero. Migrei para Mafalda e Asterix, dos quais tenho as obras completas. A propósito, o último Asterix a ser editado, após a morte de Goscinny, é um desastre. Deveria ser proibido por respeito ao autor.

Mas quadrinhos pertencem a uma fase da vida. Finda a adolescência, são chegados os tempos de ler pra valer. Em Dom Pedrito, a cidadezinha onde me eduquei, que tinha na época treze mil habitantes, havia uma pequena biblioteca na Prefeitura. Pequena, mas rica. Aos quinze anos, eu estava lendo Cervantes e Platão. Os gibis ficaram para trás, como uma terna lembrança de meus dias de guri.

É um tipo de literatura – vá lá – se tomamos a palavra em seu sentido lato. Mas nada tem a ver com o que chamamos de literatura, sentido estrito. Leio na Veja desta semana que histórias em quadrinhos têm um peso importante nos exames do Enem, que começa a substituir o vestibular. Poesia tem 58 ocorrências nas provas. História em quadrinhos, 32. Romance ficou lá embaixo, com 20 ocorrências. Os candidatos são chamados a interpretar histórias em quadrinhos de Jim Davis ou de Dick Browne. Em vez de Dostoievski ou Cervantes, o gato Garfield e Hagar.

E ainda há quem se pergunte pelas causas da mediocridade dos dias que correm. Que quadrinhos sejam lazer de adolescentes, entende-se. Que sejam matéria de vestibular, já não é fácil entender. Desde há muito há intelectuais que pretendem dar aos quadrinhos uma dignidade que os quadrinhos não têm. Mas o pior está por vir.

Leio na Folha de São Paulo de hoje artigo sobre a proposta de Gabe Zichermann, que será apresentada na feira do livro de Frankfurt. Autor de livros sobre o tema, Zichermann acha que fazer games a partir de clássicos ajuda a formar leitores. E argumenta: hoje, quando querem se divertir, crianças e adolescentes nos EUA escolhem os games, e não filmes, música e livros. Não só livros de ficção podem virar games, explica Zichermann, que defende a "gameficação" de obras de várias áreas.

Ou seja: se as crianças nos Estados Unidos preferem os games a livros, modifique-se o ensino. Transportemos as grandes obras da literatura para joguinhos de computador. Todo o soberbo estilo de Cervantes poderá ser lido em figurinhas que repasso ao sabor de um clique. Diga-se o mesmo das reflexões filosóficas de um Dostoievski. Isso de texto é besteira. Quadrinhos e games estão tomando o lugar do livro.

A tendência vem de longe. Meu primeiro artigo na imprensa gaúcha, quando eu tinha 22 anos, é revelador. Havia uma crítica cinematográfica em Porto Alegre das mais esnobes, que apelava à filosofia para interpretar faroestes e filmes de Maciste. Um quebra-quebra em um bar não era mais um quebra-quebra em um bar. Era a “instauração do caos no cosmos”. Quando, ao final do filme, mocinho e mocinha ficavam separados por um desfiladeiro, tínhamos a “separação ontológica que medeia entre os homens”. Se você havia visto um filme de Maciste e depois lia a crítica, tinha a sensação de não ter entendido o filme.

Irritei-me. Eu estudava filosofia e dominava bem o jargão. Propus uma análise filosófica do Tio Patinhas. Perplexidade nas hostes dos críticos. Meu nome era desconhecido e soava a pseudônimo. Mesmo assim, o artigo foi levado a sério. Havia quem dissesse: é pertinente a análise do Cristaldo, mas ele se equivoca. Donald, no fundo, é a personificação da classe média americana. Houve quem duvidasse de minha existência. Quanto a mim, passei noites rindo sozinho em meu ap.

Mas o melhor vem agora. Um “quadrinhólogo”, professor da universidade de Brasília, levou meu artigo a sério e veio entrevistar-me em Porto Alegre. Eu, muito ingênuo, confessei que meu artigo era uma piada. Melhor nada tivesse dito. Seria hoje considerado um precursor dos estudos teóricos sobre quadrinhos.

O artigo, publicado no Correio do Povo, de Porto Alegre, segue abaixo.