¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 03, 2011
 
OS JUÍZES ESTÃO NUS


Que existem juízes corruptos, isto sabemos desde que o mundo é mundo. Em 1726, Swift já publicava uma denúncia devastadora do mundo jurídico em As Viagens de Gulliver. Sua atualidade é espantosa: em 1969, publiquei no Diário de Notícias, de Porto Alegre, uma sátira de Swift aos advogados, que encontramos na viagem ao País dos Houynhnhms. Minha crônica, na qual eu citava devidamente o autor, foi republicada sem minha permissão em um jornal de Peruíbe, São Paulo, em 1983.

Algum tempo depois, quando eu já lecionava em Florianópolis, os editores do jornal andaram à minha procura, me implorando que escrevesse uma carta ao juiz local, dizendo ser a crônica de minha autoria, sem nenhuma alusão a personagens vivos ou mortos da cidade. Ocorreu que três advogados de Peruíbe se sentiram difamados com o texto e julgaram que Janer Cristaldo fosse pseudônimo do editor da Tribuna de Peruíbe. Um juiz, demonstrando nada dever em matéria de cultura aos três advogados, aceitou a denúncia e processou o diretor do jornal. Que também jamais havia ouvido falar de Swift. Imagino que, naqueles dias, o deão deve ter dado boas gargalhadas em sua tumba na catedral de Saint Patrick.

As denúncias contra o Judiciário desde há muito ocorrem no Brasil. Há uns vinte ou mais anos se denunciava o nepotismo na Justiça do Trabalho. Lembro inclusive de um caso no Nordeste, em que um juiz pôs cinqüenta parentes, amigos e afins em sua vara, desde sua mulher, cunhada, amantes, tios e tias, primos e primas das ditas. Tais denúncias sempre caíram no vazio. Por outro lado, a punição que um juiz recebe é o melhor presente que pode ser dado a um mortal: é aposentado com proventos integrais, algo em geral em torno de uns 25 mil reais. Ou seja, continua ganhando o mesmo que ganhava quando corrupto, sem precisar trabalhar. Perde, é claro, aqueles extras que a corrupção lhe garantia. Mas não se pode querer tudo nesta vida. 25 mil por mês está muito bom para quem não faz nada. Curioso observar como esta aberração jurídica é tranqüilamente aceita no país.

O problema surge quando alguém inventa de proferir o óbvio. Foi o caso da ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, ao anunciar que no Poder Judiciário há "bandidos de toga". Ela foi ainda além, proferindo uma segunda obviedade: classificou o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) como o maior foco da resistência corporativa à punição de juízes. "Sabe quando vou inspecionar o TJSP? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro", disse a corregedora.

Escândalo entre as hostes togadas. Em nota de repúdio às declarações da corregedora, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso, cobrou uma retratação. A ministra achou o puchero meio gordo e avançou em suas denúncias, acusando as corregedorias dos tribunais de "camuflarem suspeitos" e de serem lentas nas investigações para permitir a prescrição dos processos. Calmon disse ainda que tramitam na Corregedoria Nacional de Justiça 115 processos contra juízes de primeira instância e 35 contra desembargadores.

De todos estes juízes, apenas um cumpre prisão, o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, vulgo Lalau. Foi condenado a 26 anos e meio de prisão, inicialmente em regime fechado, pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção. Hoje cumpre sua pena no conforto de sua casa e cercado pelo afeto de seus familiares. E com direito a seus proventos, é claro. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região também condenou o ex-juiz a pagar uma multa de R$ 1,2 milhão. Argent de poche para quem desviou R$ 169,5 milhões da obra do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) de São Paulo. Impostinho bem mais leve que o de renda.

Quando o Executivo ou o Legislativo são corruptos – e isto faz parte da normalidade das coisas – os estragos são relativamente leves se comparados à corrupção do Judiciário. Os desmandos de um ministro ou deputado podem dilapidar o Erário. Já a decisão de um juiz afeta a vida de muitas pessoas. Vivi isto de perto. Nos anos 80, ao ser ejetado da Universidade Federal de Santa Catarina, acionei a Reitoria. Eu tinha o direito líquido e certo de ser efetivado. Ocorre que o juiz da ação era professor da universidade e não se deu por impedido. Recorri em uma nova vara do Trabalho em Porto Alegre. O juiz tinha sido transferido para lá e a ação caiu nas mãos dele. Meu recurso foi julgado à sombra de um professor da UFSC. Claro que perdi.

O que no fundo foi muito bom. Tive de sair a procurar emprego e a solução foi São Paulo. Por incrível que pareça, sou um pouco acomodado. Ganha-se bem na universidade, melhor que em jornal. Se tivesse sido efetivado, provavelmente tenderia a ficar por lá, cultivando a áurea mediocridade acadêmica. Não me sentiria compelido a buscar outros rumos.

O que está em jogo nesta polêmica suscitada pela ministra Eliana Calmon é a recusa dos juízes em serem julgados. O STF (Supremo Tribunal Federal) já suspendeu quase metade das punições aplicadas pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) a juízes acusados de cometer crimes desde a criação do organismo.

Os ministros do Supremo concluíram que o conselho só poderia ter entrado em campo depois dos tribunais estaduais, e somente nos casos em que eles tivessem sido omissos ou conduzido as investigações com desleixo. Traduzindo: os juízes só aceitam ser julgados por seus cúmplices.

Corrupção é algo muitas vezes escrachado. Juízes têm em mãos uma mercadoria valiosa. Uma sentença, bem negociada, pode render milhões. Mas existe uma outra corrupção mais sutil, a corrupção legal. Uma vantagenzinha aqui, outra lá, todas perfeitamente autorizadas por lei. Nada éticas, é verdade. Mas ética não tem força normativa. Como é legal, o meritíssimo não vê problema algum em aceitá-las. Cria-se então uma vasta rede de privilégios, que confere a uma casta a condição de deuses do Olimpo. A ética? Ora, a ética... como diria Getúlio Vargas. Se é legal, que mal tem?

Voltando a Swift, como sempre volto. Ao viajar pelo País dos Cavalos, os Houyhnhnms, Gulliver explicava ao soberano daquele reinado o funcionamento da lei em sua pátria, a Inglaterra. Afirmou existir entre nós uma sociedade de homens educados desde a juventude na arte de provar, por meio de palavras multiplicadas para esse fim, que o branco é preto e que o preto é branco, segundo eram pagos para dizer uma coisa ou outra.

- Todo o resto do povo é escravo dessa sociedade – continua Gulliver -. Por exemplo, se o meu vizinho tenciona ficar com a mina vaca, contrata um advogado para provar que deve tirar-se a vaca. Nesse caso, tenho de contratar outro advogado para defender os meus direitos, pois é contrário a todas as normas da lei permitir-se a um homem falar em seu próprio nome. Pois bem, nessas condições, eu, que sou o verdadeiro dono, me vejo a braços com duas grandes desvantagens: primeiro, o meu advogado, habituado quase desde o berço a defender a falsidade, está completamente fora de seu elemento quando precisa advogar a justiça, ofício desnatural, em que sempre se empenha com grande inépcia, senão com má vontade. A segunda desvantagem reside em que o meu advogado tem de proceder com muita cautela, para que não o censurem e aborreçam os colegas, como a alguém que degradasse o exercício da profissão.

- Donde nasce que tenho apenas dois métodos para conservar a minha vaca. O primeiro consiste em peitar o advogado de meu adversário, pagando-lhe honorários dobrados, e levando-o a trair o seu cliente, com uma insinuação de que a justiça pende para o seu lado. O segundo, em fazer o meu advogado crer que a minha causa pareça a mais injusta possível, admitindo que a vaca pertence a meu adversário e isto, se for feito com perícia,atrairá por certo o favor dos juízes.

- No julgamento das pessoas acusadas de crimes contra o Estado, é muito mais curto e louvável o processo; sonda o juiz, primeiro, a disposição dos que se encontram no poder; depois, não lhe é difícil enforcar ou salvar o criminoso, preservando rigorosamente as devidas formas da lei.

O que Eliana Calmon disse foi o mesmo que disse aquele menino do conto de Hans Christian Andersen: o rei está nu. Os juízes estão nus. Ocorre que deidade alguma gosta de ouvir isto.