¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 02, 2011
 
SEMPRE É BOM SABER O QUE PENSA
A CABEÇA QUE DORME A NOSSO LADO



Em Kalocaína, de Karin Boye, romance que tive a honra de traduzir do sueco, em meio a um estado totalitário surge uma estranha seita, cujos iniciados celebravam um rito muito especial. Apanha-se uma faca e alguém a entrega ao outro, deita numa cama e finge que dorme. Uma mulher faz uma descrição fantástica:

– Se alguém quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se sentar à cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer coisa.
– E qual é o sentido disto?
– Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E no entanto nada lhe acontece.

O cientista Leo Kall, que descobre a droga kalocaína, pensa estar tratando com uma seita de débeis mentais. Interrogando uma mulher sobre a organização, ouve uma resposta espantosa:

– Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constroem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constroem utilizando a vocês mesmo como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro, como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado.

Escreve uma cronista doidivanas da Folha de São Paulo: “Ninguém sabe o que o outro pensa, o que acha, o que quer, o que pretende fazer; sobretudo, o que é capaz de fazer. Uma pessoa não sabe o que se passa na cabeça de quem dorme com ela na mesma cama há 20 anos - e talvez seja melhor assim. E quem pode afirmar saber quem é seu pai, quem é sua mãe, quem são seus filhos?”

De minha parte, sei muito quem foi meu pai, minha mãe e sei também quem é minha filha. Mas isto é o de menos. E sim sua afirmação anterior. Até pode ser que eu não saiba o que se passa na cabeça de quem passou apenas um dia em minha cama. Mas não saber o que pensa uma pessoa que habita sob o mesmo teto há 20 anos é imprudência. A seita de Boye tem um sentido que Leo Kall não entende. Dormindo ou fingindo dormir ao lado de quem empunha uma faca, eu me entrego à sua violência. Isto é, confio em que empunha a faca. Se você não sabe o que pensa a pessoa dorme a seu lado, está correndo sério risco de vida.

Acontece todos os dias. Voltou a acontecer na tarde de anteontem, em Brasília. O professor de Direito Rendrik Vieira Rodrigues, de 35 anos, planejou e executou o assassinato da aluna e ex-namorada Suênia Sousa Faria, de 24 anos, com frieza, sem dar chance de defesa à vítima e tudo porque não aceitava o fim do relacionamento. Antes, impôs à aluna a humilhação de telefonar ao marido, com quem havia se reconciliado, para mentir dizendo que havia retomado o romance com o docente.

Rendrik esperou a aluna na saída da faculdade, na Asa Norte, e a chamou para uma conversa. Ele assumiu o volante do carro de Suênia, um Sandero que pertence ao marido dela. O diálogo terminou em discussão ríspida e, ao perceber que não havia solução, ele sacou uma pistola calibre 380 e deu três tiros na aluna, dois na cabeça e um no tórax. Suênia morreu na hora. Não sabia o que se passava na cabeça do professor com quem dormia.

Houve época, há uns bons quarenta anos, em que todo marido que desconfiava de sua mulher, ou que tinha provas de sua infidelidade, a matava. E era absolvido por seus colegas de chifre. Protestei vivamente contra estes assassinatos impunes, em crônica que republico abaixo, “Falência do macho”. Na ocasião, três maridos de Bagé me escreveram uma carta indignada: “quer dizer que não temos o direito de matar a própria mulher quando ela nos trai?”

Pior ainda. A amante, teúda e manteúda, tinha de ser mais fiel que a própria esposa. Em caso de infidelidade, uma bala resolvia o litígio. O assassino era invariavelmente absolvido, com a alegação de legítima defesa da honra. Mas que honra é essa - escrevi na época - que exige sangue para ser lavada? Além do mais, a tal de honra tinha duas particularidades no mínimo curiosas. Primeiro, era atributo exclusivamente masculino. Só o macho podia matar, pois só o macho tinha honra a ser defendida. Segundo, sendo atributo do macho, era portada pela mulher. No corpo dela, ofendia-se a honra dele.

Naqueles dias, pensava-se assim. Quem ama não mata, dizia uma novela televisiva dos anos 70. Eu não estava no Brasil na ocasião. Se estivesse, teria escrito: só mata quem ama. O tal de amor, enquanto visto como relação exclusiva, foi um dos grandes fatores criminógenos dos séculos passados. Continua matando até hoje.

Em meus dias de universidade, eu participava de uma mesa num boteco de Porto Alegre, freqüentada também por um ilustre advogado. Era um homem liberal. “Tenho as mulheres que quero. Minha mulher não se preocupa com elas”.

Achei simpática a tese e perguntei se ele se importava com os homens de sua mulher. Melhor não tivesse perguntado. O rábula começou manso: “como se comportar assim numa sociedade suja como a nossa?” Ele podia se comportar assim. Sua mulher, não. Terminou furioso. Puxou o revólver e o colocou sobre a mesa, cano virado para mim.

Tirei meu time de campo. Contra armas não há argumentos. Vai daí que, rabiscando meus primeiros contos, elaborei uma ficção em torno ao episódio, ficção que nunca publiquei e hoje repousa em alguma de minhas gavetas. Aventava um final diferente: o advogado matava sua mulher. Cala-te boca! Alguns meses depois, o ilustre advogado matou sua compreensiva companheira. Para subtrair-se a qualquer punição, deu um tiro nos próprios cornos. Me senti profeta, naqueles dias.

Tive outros assassinos perto de mim. Ocorreu também em Porto Alegre, há uns trinta anos. Ele era bem mais velho que eu. Jornalista, chegou inclusive a dedicar-me um artigo muito elogioso comentando um de meus primeiros livros. Tinha veleidades literárias. Como todo literato, era um humanista. Teria seus 60 anos, na época. Ela tinha 35. Foi fuzilada com quatro tiros.

Ele freqüentava meu bar e, eventualmente, minha mesa. Razões do crime? Ela havia posto açúcar demais na caipirinha. São criativos, estes senhores sexagenários. Em falta de honra ofendida, uma colher a mais de açúcar foi suficiente para esgotar suas reservas de humanismo.

Dias após o crime, ele voltou ao bar, de olhar baixo. Com cara de cachorro triste que implora perdão, estendeu-me a mão. Retirei a minha. Não consigo apertar uma mão que desfere quatro tiros contra uma mulher indefesa. Que foi que eu te fiz? - perguntou-me. A mim, não havia feito nada. Mas havia matado uma mulher. Poderia até ser absolvido, como suponho que foi, pois jamais soube que tivesse sido preso. Absolvido pela justiça. Mas não por mim. Não sendo deus, juiz ou jurado, não me compete condenar ninguém. Tampouco absolver.

Sempre é bom saber o que pensa a pessoa ao lado de quem se dorme.