¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 09, 2011
 
TIO PATINHAS E PATETA: DA COISIFICAÇÃO
DO HUMANO À ADMIRAÇÃO INGÊNUA *



Se os entes são modalidades das manifestações do Ser – o Ser em sendo – e a cultura, em seus mais triviais aspectos, uma emanação psíquica no tempo dos entes consciencializados, permissível nos é uma redução ontológica dos personagens de Disney. E se o filósofo é a medida da alienação de sua cultura, como dizia Marx, o mesmo dir-se-á do artista, em especial daquele que tão profundamente se espargiu nas massas marginalizadas do privilégio do saber.

Patinhas: a subjetividade carrancuda do quaquilionário, estratificada em decorrência da strugle for life nesta selva de lobos, não esconde que outrora o avarento tio partilhasse da ingênua Weltanschauung de Pateta. Mas numa estrutura em que os valores do ser são metamorfoseados pelo dinheiro – que, como nos diria um jovem teórico, é a alienação na abstração, ou o somatório abstrato de todas as alienações concretas – não se permite uma atitude ingênua e contemplativa.

Esta postura admirativa, que segundo Aristóteles é o gérmen do filosofar, persiste ainda em Pateta. Em um texto denso e complexo de sua Metafísica, diz Aristóteles: “É com efeito a admiração que leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica. Ora, perceber uma dificuldade é admirar-se da própria ignorância”.

Transportemo-nos a um episódio (“A Onda dos Redemoinhos”, in Mickey, nº 175) onde, diante de um silo do qual emanam estranhos ruídos, o sobrinho Gilberto, produto híbrido do racionalismo mecanicista de um Pardal e da formação humanística de um professor Ludovico, inquire:

- Epa, que é aquilo?

Da admiração surge a pergunta e o conhecimento, diz-nos Karl Jaspers. Instaurada a indagação, demonstrando excepcional e ingênua sensibilidade, Pateta, em pleno processus de captação poética do desnudar-se fenomênico do Ser, responde:

- Elementar, meu caro sobrinho, algo faz vóim, vóim, vóim dentro do silo.

No pensamento contemporâneo é uma constante o diálogo entre o poeta e o filósofo, pois ambos, embora com fins diversos, partem de uma mesma problemática, a existência. Não por acaso, Sartre é filósofo e literato. Nesta captação primitiva de Pateta há uma admirável apreensão filosófica do eidos fenomênico. Discordamos dos que afirmam que a “sonolência do olhar acusa a letargia da consciência”. Diríamos que esta sonolência é conotativa de uma virgindade cultural que Donald, por exemplo, não possui. Num outro episódio (“Operação Kiwi Voador”, in Almanaque Tio Patinhas, nº 16) Donald, chegando a uma tribo indígena, interpela um pequeno guerreiro:

- Nós, nesta terra, intenção querer caçar. Saber onde estar guia?

O indiozinho entra na tenda e diz ao cacique:

- Papai! Este turista está tentando explicar-se usando todos os verbos no infinitivo. Não o entendo.

Donald aproximou-se com um pré-conceito – muito escusável se considerarmos o background donaldiano do real – que quase impossibilita a comunicabilidade entre seres de duas culturas distintas, não fora a disponibilidade do infante e a abertura ao diálogo do cacique.

Donald é o homem comum que, sem maiores ambições, satisfaz-se plenamente com o consuetudinário. Não é excepcionalmente inteligente, excepcionalmente forte ou excepcionalmente rico, senão excepcionalmente medíocre, se é que medíocre comporta tal advérbio. Voltando-nos em um flashback à sua vida escolar (“Esta é a sua vida, Pato Donald”, in Almanaque Tio Patinhas, nº 9), notamos que seu mais heróico feito foi ganhar uma competição cuja meta era colocar o número máximo de colegas numa cesta de lixo. Donald é a imagem perfeita do pato incompreendido e descrente dos homens. Acusador é o seu lamento:

- Preconceitos em toda a parte!

Talvez este episódio da infância explique sua inação burguesa. Donald encarna a alienação em sua plenitude, ao deixar-se explorar vilmente em sua força de trabalho pelo tio quaquilionário. Ou este deixar-se explorar radicar-se-ia na consciência da inutilidade de uma eventual tentativa de libertação?

Pois o sustentáculo da fortuna de Patinhas não repousa em Patinhas – os valores do ter são exteriores à interioridade do homem. Suas imensas posses repousam na primeira moeda, avaramente guardada em uma redoma de vidro, cercada pelos dispositivos de segurança interna da caixa-forte, elemento de equivalência na arte disneyniana do fundamento histórico-sociológico da plus valia – a divisão do trabalho.

Disney não se pronuncia maniqueisticamente em sua obra: a função libertária é entregue não a um representante de um Bem Absoluto, mas a personagens eticamente mistos: irmãos Metralha, Madame Min e Maga Patalógica, representações simbólicas de duas tônicas do processo de libertação dos povos, a saber, a ação guerrilheira de grupos radicais e a tentativa de transformação do status pela força da magia, típica das esquerdas católicas.

Desde logo notamos o fracasso e a impotência da magia no ataque a este evento alienante, a primeira moeda. Se analisamos atentamente a caracterização psicológica dos personagens, fácil é notar a sensualidade estampada no fácies de Maga Patalógica e o fenecer pós-menopáusico da carne em Madame Min, que nada mais quer senão satisfazer seus últimos estremeções sexuais com qualquer que caridosamente a aceite.

Motivações assim pessoais para a luta revolucionária estão fadadas ao insucesso. As contínuas incursões contra a simbólica primeira moeda do capitalista Patinhas nada mais são senão meros pretextos das magas para demoradas e deliciosas viagens do castelo mal-assombrado à caixa-forte, montadas em suas longas vassouras, quais virgens ciclistas. Inegável é a função fálica dos cabos de vassoura na simbologia disneyniana.

Já a ação guerrilheira dos Metralhas aproxima-se mais do êxito, se bem que – por transitórios condicionamentos sócio-históricos (serviços de segurança, atitude reivindicatória isolada do povo) – esteja também fadada ao insucesso. E aqui cabe uma crítica a Disney. Parece-nos que sua concepção cíclica da história, manifesta no fato de que cada fracasso das magas ou dos Metralhas nunca é um fato absolutamente novo nem nunca será o último a ocorrer, seria válida tão-somente se inserta numa cultura clássica, mas não na hodierna. Característicos desta concepção são os versículos do Eclesiastes: “Que é que foi? O mesmo que haverá de ser. O que é que foi feito? O mesmo que se haverá de fazer. Nada de novo sob o sol, nem ninguém pode dizer: Vede, isto é novo; porque já aconteceu nos séculos que nos precederam”.

Magas e Metralhas jamais terão a posse da primeira moeda. E isto – reservamo-nos uma postura crítica – de certo modo empobrece a arte de Disney, pois além do fato de tal concepção encontrar-se em defasagem em relação ao nosso momento cultural, elimina a possibilidade de suspense, pois nos habituamos já a esperar pelo happy end e, conseqüentemente, limites temáticos são impostos à abordagem de outras alternativas.

Por outro lado, o Lobão – encarnação absoluta do Mal – não nos interessa, pois insere-se na literatura infantil de Disney, seu agir nada tem de histórico. Seu filho Lobinho, o Bem absoluto, tem do mesmo modo uma função meramente antitética: a preservação da sobrevivência dos três porquinhos. Voltemos pois àquela unidade de elementos contraditórios da verdade humana, tão bem e artisticamente captada por Disney.

(A ausência total da figura da mãe nas estórias – só encontramos pais ou filhos, tios ou sobrinhos, primos ou irmãos, avós ou netas – mereceria profundas digressões psicanalíticas, o que escapa às pretensões deste estudo).

Diz-nos Claude Tresmontant analisando a obra de Teilhard de Chardin: “O Mal provém do Múltiplo, faz parte integrante do processus de uma Criação evolutiva à base do Múltiplo; e isto por construção. Não podemos, portanto, considerar o Mal como um acidente, nem imaginar uma Criação desprovida de Mal”. A partir desta ótica cosmológica, explicita-se aquela dose mista de Bem e Mal, intrínseca tanto a nós quanto aos Metralhas, magas, Patinhas ou Mickey. Exceptus excipiendis, poupemos Pateta, que se situa num estágio pré-ético.

Diz Teilhard: “Não pode haver ordem em formação que, em qualquer grau, não implique desordem... Nada, nesta condição ontológica, que cheire a maniqueísmo. O Múltiplo puro, inorganizado, não é mau: mas por ser Múltiplo, quer dizer.submetido essencialmente ao jogo de probabilidades dos arranjos, encontra-se na absoluta impossibilidade de progredir a caminho da unidade sem gerar, aqui e ali, o Mal – por necessidade estatística. Necessarium est ut adveniant scandala.”

Se nos Metralhas saudamos o agir revolucionário, em Mickey – personagem positivo tão ao gosto de um realismo socialista – vamos encontrar aquele que tanto Joseph Losey como Bertold Brecht qualificariam como o “homem em ação, capaz de se descobrir, de reestruturar situações e libertar-se”. Um pseudolibertar-se, em verdade, pois a ação de Mickey não coincide com a necessidade histórica, senão que está a serviço dos departamentos de segurança do imperialismo (“Um porta-aviões no céu”, in Mickey, nº 172, e “Operação Unidade Invisível”, in Mickey, nº 168).

Mas a ação, tanto de Mickey como dos Metralhas, possui uma característica comum: a violência, produto de nossos dias, da práxis social. A violência no mundo é a necessidade da costrução do correto e da destruição do humano e do irracional. Mickey, no entanto, não realiza uma apologia da violência pela violência, como o fazem João Bafodeonça ou Mancha Negra.

Mas Disney não resolve sua problemática em termos de ação policial ou revolucionária. Metralhas, Patinhas ou magas nada mais senão representações de situações, modalidades de engajamentos (na acepção sartreana, a livre e consciente opção), mundivivências de seres, extraídos e capturados, em suas totalidades, do real. E nesta honestidade e respeito na abordagem das manifestações fenomênicas da cultura contemporânea, reside a grandiosidade e o engenho do artista.

A solucionática disneyniana embasa-se no nihilismo e na desesperança, tão típicas de uma cultura em decadência. Sinal dos tempos: do cenário agreste do western emerge a figura desdramática do anti-herói: Peninha. (“Aqui está o nhum-nhum-nhum”, in Mickey, nº 166).

Se em John Ford, Howard Hawks, Man e Dimytryck o personagem central da história tem funções de kosmokrator, em Disney encontramos a superação deste posicionamento, cuja validade só se radica nas convulsões revolucionárias de um momento histórico já ultrapassado. Disney, transpondo artisticamente a assertiva teilhardiana de que a desordem é intrínseca (Hegel explicita isto muito bem em sua Filosofia da História) a qualquer processus ordenativo, faz de Peninha o instaurador do kaos no kosmos, a própria essência do anti-heroísmo.

Onde surge Peninha, o cenário é destruído. Essa inter-relação unitária e indestrutível do homem (personagem) com seu mundo (o cenário), manifesta-se deletéria e destragicamente, compondo a medida demencial do desencadeamento e da desordem do mundo (ver seqüências finais de “Limpeza em Regra”, in Zé Carioca, nº 781, o cenário caótico de “Beleza de Mudança”, in Zé Carioca, nº 791, ou ainda “Atchim”, mesma revista, nº 803).


* Porto Alegre, Correio do Povo, 02/07/67