¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, novembro 05, 2011
 
BEIJINHO BEIJINHO
TCHAU TCHAU



Meu beijinho doce
foi ele quem trouxe
de longe pra mim.
Abraço apertado
suspiro dobrado
de amor sem fim.


O beijo, este gesto aparentemente pagão, em verdade é bíblico. Pais e filhos beijavam-se ao se darem as boas-vindas e ao se despedirem, lemos no Gênesis, I Reis e Lucas. O mesmo faziam os parentes próximos, diz-nos o Êxodo e o livro de Rute. No I e II Samuel, o hábito já se estende aos bons amigos. O beijo, como gesto erótico, só vamos encontrá-lo no Cântico dos Cânticos, quando Sulamita, morena e formosa, pede a Salomão: "que me beije com os beijos de sua boca!" Responde o rei: "Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro de Faraó!". Nestes dias que correm, tal dito provocaria um insuportável alarido nas alas feministas mas, enfim, Salomão, além de sábio, era soberano e usava as medidas que bem entendia. Mas não era disto que pretendia falar.

No I Reis, temos uma interessante acepção do beijo. Na conferência de cúpula em Horeb, Deus ordena a Elias ungir Hazael como rei de Hazam, Jeú como rei de Israel e Eliseu como profeta em seu lugar. "Quem escapar à espada de Hazael, Jeú o matará. Mas pouparei em Israel sete mil homens, todos os joelhos que não se dobraram diante de Baal e as bocas que não o beijaram".

Em termos contemporâneos, chamaríamos tal massacre de genocídio. Mas que fazer, se Javé não gostava que seus servos beijassem touros? Beijar, na época, nem sempre era salutar. Oséias não perdoa: "Homens beijam bezerros. Por isso serão como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece, como a palha que voa fora da eira e como a fumaça que sai pela janela".

Mas o beijo mais trágico da Bíblia está, não no evangelho de Mateus, como se poderia pensar, e sim no II Samuel. Joab, chefe de exército do excelso rei Davi, após ter assassinado traiçoeiramente Abner e mandado matar Absalão, tendo por isso decaído da graça de Davi, foi substituído por Amasa. Se Abner era primo de Saul, Absalão era filho de Davi. Absalão, para vingar sua irmã Tamar, assassinara seu meio-irmão Amon e, como se isto não bastasse, proclamou-se rei em Hebron. Ao entrar em Jerusalém, Absalão tomou posse do harém do pai. Não era fácil a vida em família naqueles dias.

Mas falava de beijos. Ao encontrar seu substituto em Gabaon, Joab o saúda: "Vai bem, meu irmão?" Com a mão direita, Joab segura a barba de Amasa para beijá-lo. "Amasa não percebeu a espada que Joab tinha na mão, e este lha cravou no abdômen, derramando-se-lhe as entranhas no chão". Beijar é perigoso.

Menos para o rei Davi. Muitos beijos terá trocado com Jônatas, mas sobre estes o hagiógrafo mantém discreto silêncio. Quem bota a boca no mundo é o rei Saul, que já oferece a Davi duas de suas filhas, primeiro Merob e depois Micol. Mas o ingrato Davi queria mesmo era Jônatas, coincidentemente filho de Saul. O que quase lhe valeu a vida.

Estava um dia Davi dedilhando sua cítara quando Saul, tomado por um mau espírito da parte de Javé, quase o crava contra a parede com uma lança. Não fosse lesto Davi, Cristo não teria nascido ou, pelo menos, os historiadores teriam de buscar-lhe outra ascendência. Resumamos a história. Com a morte de Jônatas no monte Gelboé, Davi, transido de dor, rasga suas roupas, decreta luto oficial e chora a morte do amado: "Tu me eras imensamente querido, a tua amizade me era cara mais cara que o amor das mulheres". Mas como não há mal que não se acabe, nem amor que sempre dure, o rei Davi toma por favorito Meribaal, filho de Jônatas. Por sorte, Saul morrera junto com seu filho, ou teria ainda a deplorar a sedução do neto. Coisas da Bíblia. Mas voltemos aos beijos.

Gorbachov, em sua última visita à Alemanha Oriental, beijou com ênfase Erich Honecker, o todo-poderoso dirigente comunista que hoje está em cárcere privado, acusado de corrupções de fazer inveja a qualquer modesto marajá de nosso Nordeste. Beijo de Judas, clamaram os comunossauros tupiniquins, com isto querendo dizer que Honecker foi traído por Gorbachov. Beijo de Judas tornou-se, para os leitores apressados da Bíblia, expressão assimilada ao beijo da Máfia, quando um capo beija aquele que deve morrer. Tudo isto porque nos acostumamos a ver em Judas um traidor, quando em verdade foi traído.

Que mais não fosse, sem seu beijo não seriam realizados os desígnios de Javé. Se Judas foi, afinal de contas, instrumento da vontade divina, não vejo porque jogá-lo na lata de lixo do cristianismo.

Judas, traidor ou traído?, de Danilo Nunes, é um desses raros e belos ensaios que uma vez por década — e olhe lá! — honram o ensaísmo nacional. Neste livro o autor acompanha os dias da Paixão. A ruptura de Judas com Cristo, iniciada quando este se retira subrepticiamente do templo, para onde fora conduzido pelo povo aos gritos de Hosana! (liberta-nos!) se consuma quando Jesus, ante a pergunta dos escribas do Sinédrio, cede: "Dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Ora, os escribas queriam saber se era lícito pagar impostos a Roma, questão vital para uma nação que lutava para libertar-se do jugo de César. Cristo vacila e sai pela tangente, com uma resposta que muito nos lembra Lula, quando interrogado sobre a existência de Deus: "Se eu creio em Deus, só ele sabe." Mas Judas não era tão besta quanto os entrevistadores de Lula, que parecem ter engolido, sem tugir nem mugir, a saída safada. Judas, nacionalista ferrenho, vê seu companheiro de lutas aceitando passivamente a dominação romana.

Era, pois, um colaboracionista. Melhor entregá-lo à morte, para não atrasar o processo de libertação de Israel. Para Judas, Jesus não passa de um traidor que percorrera a Palestina arregimentando o povo para um levante, para depois desertar, deixando seus seguidores mergulhados na frustração.

Sob esta luz, o beijo de Gorbachov adquire novo sentido. Honecker está atrapalhando a revolução? Beijinho nele. Claro que Gorbachov deve estar pensando na revolução comunista, pois se a perestroika começa a liberar-se do entulho stalinista, que me conste Lênin e Marx continuam na condição de intocáveis, pelo menos para a cúpula moscovita. Por falar nisso, por onde andará aquele osculador compulsivo, que tanto atrapalhou os serviços de segurança tentando beijar personalidades no Brasil? Aposto que qualquer dirigente comunista bem que preferiria trançar os bigodes com aquele mitômano do que receber um terno beijinho do Gorba.

Em meio a isso, tivemos eleições livres no Chile e Pinochet está passando a seu sucessor um país com uma inflação de 12% ao ano, sem que ninguém precise beijá-lo. Nos últimos comícios, ex-exilados clamavam pelo fim da ditadura, o que é no mínimo paradoxal. Que ditadura permite — e mais, protege — a sua contestação, tanto nos comícios de rua como nas colunas de jornais? Tais liberalidades não existiam sequer nas democracias ditas populares do Leste europeu, pelo menos antes dos beijinhos trocados entre Honecker e Gorbachov.

Falar nisso, quando teremos eleições em Cuba? Lembro que Gorbachov andou por lá e, russo sendo, certamente trocou bicotas com Fidel. Sei lá se pela espessura das barbas do caudilho, ou quem sabe por uma dessas famosas vacinas cubanas, que previnem deste meningite a perestroika, o fato é que o folclórico animador da Disneylândia das esquerdas continua invicto em suas três décadas de ditadura.

A propósito, comentando as eleições do Chile, há pouco um jornal mancheteava: Cai o último ditador da América do Sul. Ou seja, melhor não falar em América Latina. Pois se assim falarmos, está faltando um.

Quando nos dará Gorba o prazer de mais um beijinho em Castro? Não precisa ser no estilo de Joab beijando Amasa, nem de Davi beijando Jônatas. Basta um beijinho doce, um abraço apertado, um suspiro dobrado e o horror terá fim.

Joinville, A Notícia. 17.12.89. Porto Alegre, RS, 23.12.89