¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 14, 2011
 
CARTA ABERTA AOS HEMATÓFAGOS


“O lugar digno de execração onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco” — escreveu Nietzsche, em O Anti-Cristo — “será completamente arrasado, e este lugar maldito sobre a terra inspirará horror às gerações futuras. Nele serão criadas serpentes venenosas”. Se interpretamos a frase lato sensu, tomando o Egeu e o Mediterrâneo como focos primeiros de transmissão do cristianismo, estive em uma dessas chocadeiras, mais precisamente Lindos, na ilha de Rodes.

Entra-se na cidade pela baía onde, segundo a tradição, Paulo teria aportado em sua terceira viagem de apostolado, introduzindo os Evangelhos no Ocidente. A entrada da baía é árida e escarpada e fiz a mim mesmo um propósito: vou subir no penhasco mais alto e fazer xixi lá de cima. Não foi preciso nem seria conveniente. Na praia, em vez de serpentes venenosas, miríades de suecas nuas. Pelo menos ali os ovos haviam gorado. Melhor mergulhar daquele barco sem pressa e varar a braço os poucos metros que me separavam do Valhala. Junto com outros apressadinhos que haviam tido a mesma idéia, joguei-me do barco e lá me fui, braço e braço, rumo às suecas, rumo às suecas, nuas, nuas.

Paulo sempre me lembra sangue, perdoem-me os “leitores” da Bíblia que só a carregam sob o sovaco. De maior assassino de cristãos no século de emersão do cristianismo, travestiu-se em maior divulgador do novo monoteísmo. Cansado de derramar o sangue dos primeiros cristãos, passou a vender o sangue de Cristo como elixir da salvação. “O cálice de benção que benzemos” — escreve aos coríntios — não é a comunhão do sangue de Cristo?” Aos efésios, lembra: “Naquele tempo estáveis sem Cristo, sem direito de cidadania de Israel, alheios às alianças, sem esperança da promessa e sem Deus neste mundo. Mas em Jesus Cristo, vós, que antes estáveis longe, agora vos aproximastes pelo seu sangue”.

Na Epístola aos Hebreus, Paulo — ou quem quer que tenha sido seu ghostwriter — nos mostra um Cristo como Sumo Sacerdote dos bens vindouros, penetrando um tabernáculo mais excelente e mais perfeito, não feito por mãos do homem. Não leva consigo o sangue de carneiros ou bezerros, “mas com seu próprio sangue entrou uma só vez no santuário, adquirindo-nos uma redenção eterna. Pois se o sangue de carneiros e de touros e a cinza da novilha, com que se aspergem os impuros, santificam e purificam pelo menos os corpos, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito Eterno ofereceu a si mesmo como vítima sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para o serviço do Deus vivo?”

Na narrativa bíblica, do Antigo ao Novo Testamento, o sangue é conditio sine qua non da salvação. Moisés inaugura a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito com o sangue dos animais sacrificiais e Cristo sela a Nova Aliança com seu próprio Sangue. Seria possível, mas monótono, enumerar as dezenas de vezes em que os autores bíblicos clamam por sangue para salvar-se.

No Apocalipse, os puros, envoltos em vestes brancas, são salvos pelo sangue do cordeiro: “Esses são os sobreviventes da grande tribulação: lavaram as suas vestes e as alvejaram no sangue do cordeiro”. Jeová, ou Adonai ou Eloim, ou como quer que se chame o deus judaico, é deus sedento de sangue, inclusive humano. A Abraão, ordenou que lhe oferecesse o sangue de Isaac. Pode-se objetar que interrompeu a trajetória do punhal do pai de Isaac. Mas sua sede de sangue não fora saciada: Cristo não teve sursis.

Em meio a isso, correu solta a farra-do-boi, nesta Semana Santa, na ilha e no litoral catarinense. Seus defensores — que são legião — alegam tratar-se de uma antiga tradição açoriana e que, como tal, não pode ser proibida ou reprimida. Não demonstram conhecer história, estes senhores. Esta sede de sangue, como vimos, vem de bem mais longe. Esta orgia de sangue e sadismo só pode ser concebida dentro de um caldo cultural cristão. E não é por acaso que a farra atinge seu auge nos dias da Paixão.

Que a farra seja cruenta, isto a mim não espanta. Para se ter uma idéia do que é capaz o ser humano, não precisamos de grandes leituras. Basta um livrinho, e dele estamos falando. A Bíblia toda é um desfile de massacres e torturas, plenamente justificáveis quando feitas em nome — ou por ordem — de Deus. Há quem afirme que o Novo Testamento vem suavizar a Lei Antiga. Os defensores desta idéia certamente esqueceram de trechear, que mais não seja, o último livrinho do Livro. Crueldade não constitui novidade para ninguém. O espantoso em tudo isto é que, tendo a farra existido desde sempre, só agora, nos últimos três anos, venha sendo denunciada.

A Igreja sempre se manteve silente sobre o assunto. Cardeais, bispos e padres, sempre tão preocupados em proibir filmes ou ocupar terras, jamais disseram uma palavra ou assinaram uma linha condenando a orgia infame, pelo menos antes da repercussão internacional da farra. Se bem que isto tampouco me espanta. Quem bebe sangue todos os dias, deve ter pego gosto pela coisa. De hematófagos profissionais, nada se pode esperar.

Literatos, intelectuais e artistas em geral, todos cientes da coisa fétida que ocorria sob suas vistas, jamais abriram o bico. Sempre preocupados em definir a identidade ilhoa, em cantar o verde e o azul dos morros e praias não perceberam — ou preferiram deixar de perceber — que o cerne desta identidade é a farra, tanto que persiste desde o povoamento da Ilha de Santa Catarina e até hoje resiste com armas, inclusive, como já ocorreu na praia de Ganchos, a qualquer tentativa de proibição. Verdade que agora começamos a ouvir tímidos chiados, afinal não fica bem compactuar com a ignomínia. Sem falar que, hoje, denunciar a farra já rende prestígio e até mesmo votos.

Na universidade, onde trafeguei pela área de Humanidades, jamais ouvi um pio sequer em torno à farra, o que não deixa de ser coerente. Boa parte dos professores desta área são défroqués ou ex-seminaristas (particularmente nos cursos de Letras) e, apesar de terem largado o hábito ou a batina, continuam cultuando o deus sanguinolento nascido no deserto. Deles, portanto, nada esperar.

Quanto ao governo e demais autoridades, menos chances ainda de qualquer reação. Fornecer bois para a farra rende votos e, o que é mais importante, preserva a incultura do ilhéu e do homem litorâneo, isto é, o mantém sob o jugo. Para perpetuar-se no poder, nada melhor que pequenos currais de eleitores estupidificados pela barbárie.

Mas uma sensibilidade nova parece estar contagiando a ilha nos últimos anos, a idiossincrasia de uma cultura onde o boi, em prosa e verso cantado, sempre foi considerado amigo e companheiro de trabalho. A partir da migração gaúcha rumo a Santa Catarina, forma-se uma massa crítica que permite a denúncia da farra. A internacionalização da denúncia, segundo me consta, foi obra de um gaúcho junto aos grupos antitaurinos em Madri. Para os que, em defesa da farra, brandem o argumento da existência das touradas, é bom lembrar que tanto na Espanha como em toda a Europa, há um movimento organizado e aguerrido lutando pelo fim das “tardes de sangre y de sol”. Com a entrada da Espanha na comunidade européia, tal propósito deixa de ser utópico, pois os demais países-membros podem muito bem optar por sanções econômicas que afetariam duramente a vida dos espanhóis. Mas voltemos à farra.

Os antitaurinos, sem conseguir acreditar na existência de um ritual mais sangrento e estúpido do que a tourada, quiseram ver para crer. Receberam um dossiê com as primeiras e tímidas denúncias da imprensa catarinense e, a partir destas, o escândalo tomou dimensões internacionais. Todo jornalista que, escandalizado com as hecatombes de todas as páscoas, registrou em seu espaço seu protesto, pode orgulhar-se de ter contribuído para esta tentativa de acabar com a farra. Verdade que esta não acabará tão cedo. Mas enquanto existirem, carregaremos a pecha de viver entre bárbaros.

Alegar que a farra é tradição açoriana, inocentando a cultura local, é prático e confortável e parece ser sinônimo de: “se é tradição, nada se pode fazer”. Mas é falso. Porto Alegre e parte do litoral rio-grandense foram colonizados por açorianos e naquelas plagas boi algum é torturado. Por outro lado, mesmo sem conhecer as Açores, não consigo acreditar que nelas se pratiquem tais vilezas. Se nelas a farra existisse, há muito teria sido denunciada pelos milhões de turistas nórdicos, alemães ou franceses que constituem seu suporte econômico.

A tradição, dizia, vem de bem mais longe. Vem do livro que está na base da cultura ocidental e que tanto sangue fez — e ainda faz — correr mundo afora. Não consigo ver como acabar, seja com a farra, seja com as corridas de touros, participando de uma cultura onde milhares de homens, todos os dias, bebem sangue. Não sei se o leitor sabe, mas quando o sacerdote consagra o vinho na missa, o vinho não é mais vinho. É sangue. E muita gente foi queimada e sangrada pela Igreja, por julgar que o vinho continuava sendo vinho, que a consagração era meramente simbólica. E se o leitor duvidar, pode perguntar até para o Leonardo Boff. Por mais avançadinho que se pretenda, aposto que não vai negar que bebe sangue todos os dias. É dogma, e fim de papo.

Enfim, voltando à farra, devo confessar que nela não é exatamente o sofrimento do boi o que mais me preocupa. E sim o que deve existir de hediondo e perverso nos seres que a praticam. Vistos de longe, até parecem gente. A tortura não degrada apenas o torturado, mas também o torturador. Na farra, no fundo, o ilhéu é o boi.


Joinville, A Notícia, 02.04.89