¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, novembro 06, 2011
 
A DESUNIÃO SOVIÉTICA


"Deus morreu, Marx agoniza e eu estou com gripe" — queixava-se, no final dos anos 70, um jornalista francês — "Quel siècle, mon Dieu!" Pois eu também estou perplexo. Há poucos meses, li que fora eliminada a censura da imprensa na União Soviética. Quer dizer então que a imprensa era censurada no paraíso dos sovietes? Que vamos fazer dos relatos dos peregrinos da Nova Jerusalém, que desde Amado e Neruda a freis Bettos e Boffs, nos juravam de pés juntos que lá não existia censura alguma? Pior ainda: leio agora que o Parlamento soviético aprovou o texto geral de um projeto de lei que permite a liberdade religiosa na URSS. Quer dizer que antes não havia liberdade religiosa lá? Não entendo mais nada. Milhares de viajantes, entre estes não poucos sacerdotes, de lá voltavam garantindo a plena liberdade de culto no éden socialista.

Mas a liberdade de culto, na URSS, não vai durar muito, que mais não seja porque dentro de pouco nem a URSS existirá.

Gorbachov propõe uma mudança de nome, para União dos Estados Socialistas Soberanos. Cai a palavrinha sagrada, o soviete. Mas resta uma que não consegue consenso entre os ex-soviéticos: socialismo. Setores mais lúcidos da Desunião Soviética sugerem: União das Repúblicas Euro-Asiáticas. Avante, camaradas! Mais um pequeno esforço mental e ainda verão que a palavrinha união só serve para desunir e é perfeitamente dispensável.

Crise geral de identidade. Na Itália, o Partido Comunista anda em busca de melhor nome. Enquanto não o acham, é tratado como A Coisa, assim com maiúsculas. O que demonstra atroz falta de criatividade dos camaradas italianos, já que poderia ser confundido com uma outra cosa, a Cosa Nostra, se é que não são as duas faces de uma mesma moeda. Enquanto muitos capos mafiosos enfrentaram julgamento e foram condenados, Palmiro Togliatti continua sendo venerado como herói. Acontece que, mais dia menos dia, serão abertos os arquivos do Kremlin, salvo se um incêndio oportuno não for provocado para salvar as biografias das estátuas de pés de barro deste século. Togliatti, como há muito se sabe, foi conivente — se não responsável — com a liquidação do PC polonês e com o assassinato de militantes italianos pelos serviços secretos de Stalin. A Coisa quer então mudar de nome! Qualquer nome, desde que elimine outra palavrinha subitamente fora de moda, comunista. Propõe-se algo como Partido Democrático da Esquerda. Em italiano, Partito Democratico della Sinistra. Ou seja, PDS. As esquerdas tupiniquins já devem estar sofrendo de insônia. Que tal o Lula ou Erundina sendo recebidos, em Roma, pelo PDS? Não vai ser fácil explicar a coisa às bases.

Enquanto A Coisa lá deles continua indefinida, o Líder Máximo da Disneylândia das Esquerdas dá um passo à frente em sua revolução. Mais um pouco e ultrapassa a Albânia, só que em marcha à ré. Lá pelos anos 70, quando a revolução albanesa foi acusada de sequer ter conseguido mecanizar a agricultura, Envers Hodja reuniu seus engenheiros e ordenou a produção de um trator. O que foi feito. Foi gerado um monstrengo quadrado e antediluviano, mas trator. Construída a coisa, provado que o pensamento invencível do Farol da Humanidade era capaz de produzir uma máquina agrícola motorizada, o trator foi posto num museu e os albaneses continuaram arando a terra no rabo do arado.

É o que propõe o caudilho do gulag tropical, ante o corte das generosas verbas moscovitas, já que os russos parecem estar concluindo ser melhor garantir o escasso pão nosso de cada dia do que financiar aventuras ideológicas nas Índias Ocidentais. Sem combustível para tratores, Castro revela que cem mil bois e touros estão sendo preparados para trabalhar no campo dentro de seis meses. Se a situação piorar e for necessário substituir mais veículos e máquinas agrícolas, este número poderá chegar a quatrocentos mil. O que certamente fará as delícias das viúvas do socialismo, um charter a Cuba terá o sabor de uma exótica viagem no tempo, um inesperado tour à Idade Média.

Sem falar nesta humilhação suprema para um touro, puxar um arado. Fosse eu o touro em questão, concitava até bois e vacas para derrubar Castro. Fossem só estes os problemas da ilha, agora órfã da finada doutrina, até que não era nada. Em Cuba começa a faltar papel, drama de todo país socialista, sequer previsto por Marx. Em meus giros pelos regimes comunistas, senti brutalmente a falta de duas coisas, papel higiênico e boa imprensa. Na Romênia, tive de solicitar na portaria de um hotel, não jornais, seria sonhar demais. E sim o prosaico papel higiênico, que o aiatolá Khomeiny autorizava ser substituído por duas pedras, mas afinal nada tenho a ver com Maomé. Uma moça com cara de sargento quis saber quantos dias eu lá ficaria, avaliou minhas trocas metabólicas e me ofereceu uns dois ou três metros, com ares de quem me havia prestado um grande favor.

Como não gosto de julgar uma sociedade a partir de experiências individuais, sempre procuro checar minhas impressões com as de outros viajantes. Ainda há pouco, encontrei uma professora que voltava de Moscou. Estivera hospedada no Cosmos e eu quis saber se a perestroika já havia resolvido este probleminha vil, mas crucial, o do papel higiênico. "Que nada, só com requerimento". O que deve explicar, a meu ver, as tiradas mirabolantes da Pravda.

Mas em Cuba, o que falta é papel-jornal. Ou seja, o higiênico já deve pertencer ao território do anecúmeno. Em meus pagos, nos dias de minha infância, a gauchada usava guanxuma, erva um pouco áspera, é verdade, mas que talvez ainda acabe sendo recuperada nestes dias em que nasce uma nova religião, a ecologia, emergindo já com seus santos e mártires, vide Chico Mendes, obscuro apparatchik lotado na Amazônia e hoje mito pra gringo ver. Na falta de guanxuma, servia a grama. Para os cubanos, ao que tudo indica, só resta o Granma, órgão oficial da Coisa, digo, do Partido Comunista, que não teve vergonha alguma em adotar para seu jornal um nome ianque que, ironicamente, significa vovozinha. Pois a Vovó da Coisa, com o corte de papel de Moscou, capital que não consegue sequer suprir os turistas de papel higiênico, a Vovó, dizia, será o único jornal a ser publicado diariamente em Cuba. Intelectualmente, os cubanos não perderão nada, afinal numa ditadura tanto faz ter um como dez jornais, todos são unânimes. Parece que Castro está preocupado com o "colapso no setor de informações". Charminho de déspota a caminho do desemprego. Preocupados devem estar os cubanos com sua higiene pessoal.

Mas este final de século não nos deixa com fome de surpresas. Pois não é que Castro, do alto de sua ilhota, que hoje pensa voltar a uma agricultura de boi e arado, queria provocar, nada mais nada menos, que uma guerrinha nuclear? É o que nos revela o terceiro volume das memórias de Nikita Kruschov. Em 62, durante a crise provocada pela instalação dos mísseis soviéticos em Cuba (calúnia! — disseram na época os comunossauros), Castro pediu a Kruschov um ataque preventivo contra os Estados Unidos.

Republiqueta açucareira, mas aguerrida! Graças aos Rosenberg, que armaram com segredos nucleares o fascismo eslavo. Este é um dos segredos de Polichinelo revelados por Kruschov. Segundo o líder soviético, Julius e Ethel Rosenberg foram realmente os fornecedores dos segredos da bomba atômica a Moscou, mas por "idealismo", não por dinheiro. O casal foi executado na cadeira elétrica em 53. Mártires do maccartismo, ulularam as esquerdas. Tive uma tia que teria uma visão diferente da coisa: há putas que são tão putas que até dão de graça.

Enquanto isto, o império vai desmoronando. No final de setembro, as Izvestia deixaram de circular por um dia, por falta de papel. Se em Moscou falta papel para propaganda do partido, o tiranete do Caribe já deve estar com as lêndeas de molho. E com Castro, el Africano, todos os intelectuais vendidos que o apoiaram. Desde Sartre — que no Brasil ainda não morreu — até vestais de quinta categoria, tipo Antônio Callado, Chico Buarque, Evaristo Arns, e outras que até me canso em citar.

Porto Alegre, RS, 13.10.90