¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 10, 2011
 
JUSTIÇA AOS BRANCOS


Na África do Sul jamais estive. Como não gosto de falar sobre países que não conheço, jamais ousei escrever sobre apartheid. Jornalista, não confio muito em meus confrades. A Suécia curou-me desta doença, a confiança irrestrita nos meios de comunicação. Antes de ir para lá, havia recortado e relido reportagens e relatos sobre o paraíso nórdico, sem falar na leitura de pelo menos uns quinze livros de privilegiados hóspedes do país dos Sveas. Abandonei o Brasil embalado por miragens. Mal comecei a balbuciar o idioma e ler a imprensa local, descobri que havia sido ludibriado pelo entusiasmo de viajantes apressados. A Suécia real em nada coincidia com a Suécia que me haviam vendido.

Assim sendo, sempre fiquei com um pé atrás quando lia sobre as injustiças cometidas pelos brancos em relação à maioria negra da África do Sul. Minhas suspeitas aumentaram quando o líder da população negra explorada era um marxista, Nelson Mandela. Ora, marxista denunciando injustiça me lembra o Lula condenando o analfabetismo. Nosso século criou um curioso silogismo:

Os presos e torturados sempre têm razão.
Eu fui preso e torturado.
Logo, eu tenho razão.

Acontece que a primeira premissa nem sempre é verdadeira. Que o diga Luís Carlos Prestes. Sofreu prisão e exílio por lutar pela peste mais mortífera que empestou o século. Mandela, aliás, ao sair das grades, logo mostrou as garras: desmanchou-se em elogios a Kadhafi e Fidel Castro, ditadores sanguinolentos e ridículos dos quais Saddam Hussein parecer querer roubar o cetro da truculência. Comentaristas internacionais tentaram escusá-lo, alegando que Mandela, em sua prisão, não recebia jornais. O argumento não procede, afinal o Tarso Genro recebe jornais todos os dias e jamais fez qualquer denúncia — logo ele que adora denunciar — em relação ao último e decrépito e caspento ditador latino-americano.

Mas falava da África do Sul. Em Madri, encontrei uma argentina que residira cinco anos em Pretória. Contaminado pelo bombardeio da imprensa, quis saber como conseguira sobreviver, sendo branca, em meio aos conflitos raciais. “Não é bem assim” — contestou-me a moça -. “Eu também trabalhei em teu país, e duvido que o negro viva melhor no Brasil que na África do Sul”. A convicção com que falava caiu-me como gelo ao lombo. Quer dizer que todas as informações que eu tinha sobre o apartheid eram falsas?

— Não — atalhou a portenha -. A separação racial é um fato, isso não se pode negar. Mas em que país do mundo há cinco universidades para negros? Em que país da América Latina um negro dirige uma Mercedes sem provocar a suspeita de que é chofer ou ladrão? Em qual estado do Brasil um negro, ou mesmo um branco, ganha oitocentos dólares para descer ao fundo de uma mina?

Fiquei, literalmente, sem palavras, quase envergonhado ao confessar que em o salário mínimo, para pretos ou brancos, sempre oscilara em torno aos 40 dólares. Sem falar que Mercedes Benz era sonho de alta classe média, de preferência próxima ao poder. Pedi que me contasse mais coisas sobre Pretoria, e muito mais coisas me contou, só que delas não mais lembro, já que um Rioja e seu sorriso embotaram, pouco a pouco, minha memória. Mas seu relato não era o de um viajante apressado. Ela me falava de um país onde havia vivido.

Ano passado, li no Jornal do Brasil uma entrevista com empresários brasileiros que voltavam da África do Sul. Suas declarações fechavam com as de minha amiga portenha. Que o operário brasileiro, que sobrevive na base do salário mínimo, sequer ousava sonhar com o ganho do menos qualificado mineiro sul-africano. E de novo falava-se em oitocentos dólares como mínimo. Em anúncio deste mês, a Folha de São Paulo acenava com Cr$ 50 mil para o cargo de repórter, dominando preferentemente uma língua estrangeira e cursando, se possível, pós-graduação. Nos dias de hoje, de câmbio excepcionalmente baixo, teríamos 714 dólares. Ou seja, um jornalista com curso superior, mais pós-graduação, na capital que melhor paga no Brasil, recebe menos que uma mão-de-obra não qualificada na África do Sul.

O conceito de racismo sempre me deixou com um pé atrás, pois é conceito só de ida e não tem volta. Quando o branco discrimina o negro, o branco é racista. Se o negro discrimina o branco, aí as coisas mudam de figura, é a justa reação do dominado ante a arrogância do dominador. Os porto-alegrenses foram testemunhas disto. Ainda há pouco, uma branca foi eleita rainha do carnaval e teve de entregar a coroa, tão hostilizada que foi. Pois a comunidade negra da capital julga que carnaval é domínio privado da raça. Tivessem a preocupação de enfronhar-se um pouco em História, talvez até descobrissem que o carnaval tem suas origens na Roma branca e cristã. Enfim, nestes dias em que racismo é crime inafiançável, ficou o dito pelo não dito, afinal só branco é racista.

Insulto que, aliás, já me foi atribuído. Quando editava um caderno de cultura no falecido Diário de Notícias, fui procurado por um poeta que queria assinar uma coluna. Ora, colaboradores era o que eu mais necessitava. Acontece que o poeta em questão queria dar à sua coluna um cabeçalho: Poesia Negra. Como, a meu ver, poesia não tem cor — e muito menos sexo — declinei de sua oferta. Se a aceitasse, por uma questão de coerência, teria de pensar em um espaço para a poesia branca, outro para a amarela, a verde, a azul. Outro racismo que anda despontando no campo literário é o sexual. Nas últimas décadas, passou-se a falar de literatura feminina. Como se literatura necessitasse adjetivações. Ou é literatura ou não é, independentemente do sexo de quem a faz.

Mas falava de quê? Ah, da África do Sul. País no qual um branco trabalhando — segundo minha amiga portenha — carregava seis negros nas costas. País que, caso fosse expulsa a minoria branca, seria devorado por lutas tribais. Que a Europa, é verdade, havia sido consumida por tais lutas, mas pelo menos hoje, as tribos haviam chegado a um acordo. Sem querer pôr em dúvida o depoimento de pessoa na qual, de cara, depositei confiança, de qualquer forma, seu testemunho revelava uma idiossincrasia branca.

Já não é o caso de Ivo Castro, presidente da União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia. Brasileiro, negro e garimpeiro, Castro faz na última Veja, uma declaração que vai entortar o pescoço das esquerdas: “quero morar na África do Sul”. Ouçamos este depoimento insuspeito:

— Com a libertação de Nelson Mandela, abriu-se uma perspectiva para o racismo acabar na África do Sul. Mas o que se viu desde então foi um aumento fabuloso das agressões e assassinatos. Só que desta vez entre os negros, entres as tribos e facções que se entredevoram. Ainda assim, eu quero morar lá. Na África do Sul, os operários negros que trabalham nas minas de ouro não ganham menos de mil dólares por mês. Fora das minas, vi muito executivo negro ganhando, no mínimo, seis mil dólares mensais, todos com pleno acesso à educação, saúde e moradia. O melhor de tudo é ganhar isso em um país de inflação baixíssima, sem a ameaça de redução de salário.

Castro — favor não confundi-lo com o tirano — considera que a imprensa internacional dá excessivo destaque à violência da polícia sul-africana contra os protestos políticos. Mas considera que, no Brasil, os negros apanham por muito menos. O que me lembra episódio caricatural, ocorrido em Canoas. Um pastor evangélico rodesiano foi interpelado pela polícia gaúcha. Como falava um português precário, eivado de forte sotaque inglês, os policiais o tomaram por um negro bêbado enrolando a língua. Até que o assunto fosse esclarecido, levou não poucas porradas.

Mas falava de Castro, que julga ser necessário fazer justiça aos brancos na África do Sul, “ilha de prosperidade no paupérrimo e conturbado continente africano”. Castro nos conta a história de um amigo seu, filho dos colonizadores portugueses em Angola, onde tinha uma fábrica de cimento e defendia a luta dos negros.

— Quando houve a revolução socialista, os negros o colocaram para correr. Pouco depois, quando retornou à Angola, viu sua fábrica arruinada por pura falta de capacidade dos negros para mexer com as máquinas. Não sabiam consertá-las e não entendiam de contabilidade. Mas não há dúvidas de que os negros vão assumir o poder na África do Sul. É difícil saber se isto será melhor para o país. Numa das minas de ouro que visitei, percebi que boa parte dos operários era oriunda de países vizinhos, onde a maioria negra tomou o poder, como Angola, Moçambique e Namíbia. Alguns atravessaram a fronteira a pé para trabalhar nas minas de ouro, porque em seus países a independência virou também sinônimo de miséria absoluta. Expulsaram os brancos, o dinheiro dos brancos, as idéias dos brancos, e ficou um bando de negros sem saber o que fazer.

Pedras, por favor, jogá-las no Castro, não no Cristaldo.

Porto Alegre, RS, 22.09.90