¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 09, 2011
 
MÃE É UMA SÓ


Com A Última Tentação de Cristo, de Martín Scorcese, parece que vai repetir-se no Brasil o mesmo fiasco gerado pelo anódino Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. Em países catolicíssimos como França, Espanha e Portugal, o filme de Godard passou completamente despercebido e em poucas semanas saiu de cartaz. No Brasil, graças à publicidade gratuita decorrente de sua proibição, foi visto por jovens que jamais haviam ouvido falar de Godard e que, se tivessem visto seus filmes anteriores, provavelmente não repetiriam a façanha. Ao que tudo indica, apesar de sua experiência milenar, a Igreja romana ainda não aprendeu que todo index prohibitorum é contraproducente: só serve para vender o que pretende proibir.

Curiosamente, um filme como A Vida de Brian, dos Monty Python, este sim blasfemo e deletério, passou e repassou em todas as telas do país, sem que censor algum, laico ou religioso, desse um pio. Neste filme, de refinado humor, Maria é apresentada como prostituta e representada por um ator do grupo, travestido. Quando chegam os três reis para ver o Menino, Maria os recebe de péssimo humor, afinal já era tarde da noite. Quando sabem que trazem ouro, incenso e mirra, sorri pragmaticamente: bom, o ouro vocês deixam aqui e o incenso e a mirra podem levar de volta”.

Verdade que no filme dos Monty Python o personagem é Brian, uma espécie de profeta que só dá certo por acaso e que, inclusive, assiste ao Sermão da Montanha, pregado pelo próprio Cristo. Mas para quem conhece os Evangelhos, os ingleses não enganam: é o próprio Cristo que é submetido ao ridículo e disto só parecem ter-se dado conta os censores da Noruega, único país, segundo me consta, a proibir o filme. No Brasil, a Igreja dormiu de touca. Ou então Godard passou alguma grana ao papa para que promovesse seu abacaxi em geografia tupiniquim.

Em A Vida de Brian, Cristo inclusive se mostra como foi crucificado. Ou seja, nu. Só que não está na cruz, e sim com uma discípula revolucionária e é flagrado na cama, tanto por seus seguidores como por sua mãe. No filme todo, perpassa a imagem de uma espécie de bobo alegre envolvido pelas circunstâncias e que em momento algum sabe o que está acontecendo, o que aliás não difere muito da circunstância do Cristo histórico. Ao ser crucificado, acaba cantando e acompanhando com o pé batendo no madeiro, em coro com seus colegas de cruz, uma espécie de samba britânico e fatalista no melhor estilo de M. Pangloss. Confesso jamais ter visto — e já vi seis vezes — filme mais hilariante e corrosivo do que este. Em matéria de hilaridade, só é comparável a Mash e ao Incrível Exército Brancaleone. Em matéria de derrisão, às vezes me pergunto se Swift terá conseguido ir mais longe.

Pois bem: este filme desopilou o fígado de platéias do mundo inteiro e só os luteranos noruegueses, que pouco ou nada têm a ver com o profeta fracassado e maquiado pela Igreja romana, perceberam seu caráter herético.

Neste Brasil 88, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) parece estar pretendendo, com sua censura prévia e desaforada — pois o foro censório em um Estado laico não é o eclesiástico, sem falar que a nova Constituição abole a censura tornando-a apenas classificatória — render mais royalties a Mr. Scorcese. O fulcro da condenação está nos delírios sexuais de Jesus. Mesmo partindo do pressuposto de que fosse Deus, tais fantasias seriam perfeitamente inteligíveis, já que se fez homem e humano é o desejo. O filme é baseado em um romance de Kazantzakis, místico cretense que cometeu maiores despautérios ao nivelar Cristo a Lênin e nem por isso foi apedrejado. O que só nos ensina que os ianques têm mais senso de merchandising que os helenos.

A realidade histórica, no entanto, está mais para os Monty Python que para Scorcese. Que Cristo tenha tido seus desejos, mais do que natural é absolutamente lógico, ou então humano não era nem em homem havia-se encarnado. Se isto não consta no relato de seus biógrafos tidos como oficiais, será talvez porque os evangelistas não dominavam as modernas técnicas narrativas do diálogo interior, desenvolvidas a partir de Bergson, Proust e Joyce. Sem falar que os quatro evangelhos aceitos pela Igreja romana constituem, para o leitor mais atento, uma antologia incoerente e mal-costurada. Mas o problema não é esse. Ao que tudo indica, a partir de depoimentos históricos e inclusive bíblicos,

Para começar, deve-se eliminar de toda e qualquer discussão essa versão puritana de que Jesus era o único filho de Maria. Jesus tinha cinco irmãos e se, parir uma só vez e permanecer virgem já é em si paradoxal, mais misterioso se torna ainda parir seis filhos e preservar a “graça original”. A nenhum pesquisador honesto é permissível a aceitação desta tradução desonesta chamada Vulgata.

Assim sendo, a realidade histórica parece ser bem mais contundente que os inocentes delírios eróticos de um Cristo perdido em meio ao caldeirão de uma situação pré-revolucionária. Que não é filho de José, isto a própria Bíblia nos diz. Para o crente que leva ao pé da letra o texto bíblico, só resta outra alternativa: é filho de Maria com uma pombinha. Para o cético que aceitaria prazerosamente tal circunstância apenas se inserida na mitologia grega, restaria uma última opção, a partenogênese, fenômeno já observado em certos pulgões da lavoura, mas jamais em ser humano.

Jesus é então filho de quem? Segundo Celso, filósofo pagão, que viveu na segunda metade do século II, Cristo seria filho de um soldado romano chamado Pantera. Tal afirmação está no livro intitulado Discurso Verdadeiro, onde o pensador romano, perplexo, faz uma análise da religião então emergente. Sua hipótese não pode ser ignorada pelos historiadores por várias razões.

Uma delas é que a Igreja queimou os oito tomos de seu livro onde os encontrou. Do Discurso só nos restam os fragmentos reunidos por Orígenes no seu Contracelso, onde, no afã de contestar o nobre romano, acabou transmitindo à posteridade a voz do homem que queria calar. Uma outra razão está na tradição talmúdica, que fala de Jesus Ben Panthera, ou seja, Jesus filho de Pantera. O que é bem mais verossímil, pois filho de algum pai teria de ser, e de José não era.

Analisemos o texto de Celso, transcrito e contestado por Orígenes, graças ao qual, ironicamente, chegaram até nós alguns fragmentos do pensador pagão:

“Voltemos às palavras atribuídas ao Judeu (personagem criado por Celso, parêntese meu), onde ele escreve que a mãe de Jesus foi repelida pelo carpinteiro que a havia pedido em casamento, por ter sido convencido de adultério e ter sido engravidada por obra de um soldado romano chamado Pantera”.

Mais adiante:

“Admitamos que haja verdade na doutrina dos fisiognomistas Zopyros, Loxos, Polémon, e de todos aqueles que escreveram sobre o tema, gabando-se de um saber espantoso sobre o parentesco de cada corpo com o caráter de sua alma: a esta alma, destinada a viver miraculosamente e cumprir grandes feitos, seria necessário um corpo, não como crê Celso, nascido de um adultério entre Pantera e a Virgem, pois de uma união assim impura teria antes nascido um louco nocivo aos homens, mestre da intemperança, da injustiça e de outros vícios, e não do domínio de si, da justiça e de outras virtudes”.

Apoiar-se nos tratados de Zopyros, Loxos e Polémon, dos quais hoje pouco ou nada sabemos, podia ser de grande valia a Orígenes, mal tal argumentação hoje nada nos diz. Por outro lado, boatos havia em torno de Maria e, dada a fúria censória da Igreja em relação ao livro de Celso, é bastante provável que nele exista mais verdade que no absurdo e incongruências dos Evangelhos. Celso — pelo menos no que dele resta — não nos fala de prostituição. Mas onde iríamos situar, em uma cultura judaica e patriarcal, uma mulher com seis filhos de pai desconhecido, sendo um deles oriundo de um soldado do exército invasor? A resposta a esta pergunta talvez explique o respeito de Cristo, sempre manifesto nos Evangelhos mais divulgados, às adúlteras e prostitutas.

A santa ira que se ergue nas comunidades católicas do Ocidente é, no fundo, cortina de fumaça erguida por clérigos que desconhecem a Bíblia — como também por outros que a conhecem muito bem — para eludir o drama vivido por Jesus e Judas em sua luta contra o império romano. Afinal, mãe só se tem uma, e Paulo de Tarso quis dividi-la em duas. E o resto é publicidade gratuita a um filme ianque.

Joinville, A Notícia, 11.09.88