¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 03, 2011
 
COLECIONANDO LIXO


De tempos em tempos, geralmente em fim de ano, faço uma copidescagem em meus trastes. Algo que me dá muito prazer é jogar coisas fora. Ano passado, consegui jogar fora uns quarenta quilos de papéis. O que me fez entrar em 2011 com uma extraordinária sensação de leveza. É uma faxina que me faz bem. Cá entre nós, há ainda muita coisa a jogar fora. Só que estas coisas são problemáticas. São livros. Ao longo da vida, juntei muita literatura inútil, particularmente nos anos em que fui professor de Letras. Como estava pesquisando a literatura comunista no Brasil, comprei o pior da literatura feita no país.

Jogar fora estes livros? Não consigo jogar livros fora. Queimá-los? Não tenho vocação para inquisidor. Doá-los? Lixo não é coisa que se doe. Então vão ficando aqui em casa. Por outro lado, esse lixo literário não deixa de ter sua função. Sempre é bom ter a mão as besteiras que Jorge Amado, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade escreveram.

Em meus dias de Paris – e já lá vão mais de trinta anos – tomei contato com uma doença contemporânea. Conheci uma uruguaia que se pretendia refugiada política. Conversa daqui, conversa dali, ela convidou-me para ir até a sua casa. Casa? - perguntei. Em Paris não há casas. Ela insistiu que morava em uma casa. Paguei para ver.

De fato, era uma casa, mais precisamente um sobrado, situado no centro de uma cour. Mal entrei não acreditei no que via. O lixo infestava todo o térreo, empilhado até a altura dos ombros. Por um estreito corredor em meio à muralha de lixo, chegava-se até a cozinha, onde se abria um espaço de uns dois metros quadrados para uma mesa e duas cadeiras. Ao sentar-me, minha cabeça ficou um pouco abaixo do nível de lixo. Um outro corredor levava até o banheiro.

Por uma escadaria também atulhada de lixo, ela subiu ao primeiro piso para trocar-se. Pediu que eu não subisse: "Aqui está pior". Saí voando daquela casa. Saímos para a rua e ela me passou um objeto cilíndrico. "Segura isto aqui. Com cuidado. É uma bomba e eu me sinto perseguida". É claro que não voltei a revê-la. Se a casa era aquilo, fiquei me perguntando como seria a cabeça da moça.

Os franceses têm a fama de não serem muito higiênicos, o que não deixa de ter algum fundo de verdade, mas não tanto quanto se imagina. Mas eu nem podia atribuir aquela montanha de lixo às idiossincrasias dos franceses, afinal a moça era uruguaia. O episódio me ficou na memória, naquele setor das coisas sem explicação, para as quais esperamos um dia alguma resposta. Alguns anos mais tarde, li nos jornais que uma aposentada fora soterrada pelo lixo de seu apartamento. Essa história, eu já conhecia.

Em 2006, li sobre uma milionária espanhola, Violeta de Carvalho Martinez, de 70 anos, que vivia em um sobrado no Itaim, bairro nobre de São Paulo, cercada por 250 toneladas de resíduos orgânicos e inorgânicos, laboriosamente juntados durante 20 anos. A casa tinha 350 metros quadrados. Como não tinha mais espaço para viver, Violeta dormia em um carro na garagem. As 250 toneladas são certamente um equívoco de reportagem, não é fácil juntar tanto, mesmo em uma vida inteira. O fato é que foram retirados 16 caminhões de lixo. O curioso é que a milionária colecionava isso tudo com a conivência dos filhos.

A urbe produz estranhas doenças. Esta, pelo jeito, está se alastrando e até já ganhou nome, colecionismo. Leio na Veja de hoje que a estranha mania é tema de duas séries exibidas por canais pagos, Obsessivos Compulsivos, no A&E, e Acumuladores, no Discovery Home & Health. Quando uma doença merece duas séries televisivas, pelo jeito virou epidemia.

A revista cita o caso de um aposentado, João Ayres, que mantinha a edícula de três cômodos e todo o quintal de sua casa, em Botucatu, São Paulo, atulhado com restos de construção e móveis velhos. Dentro de casa, empilhava notas fiscais, manuais, contas, boletins escolares e papéis de toda natureza que passarampor suas mãos nas últimas décadas. “Não conseguia me desfazer de nada, pois achava que tudo aquilo seria um dia útil”.

Segundo o psiquiatra Aristides Cordioli, “a falta de autocrítica é muito comum entre os colecionadores. Eles acreditam que os objetos, mesmo os mais danificados, lhes serão necessários no futuro”. Nas situações mais severas, o colecionista termina sozinho em meio às suas montanhas de bugigangas, a ponto de não sobrar-lhe para mais nada nem ninguém em sua vida.

Que se guarde livros inúteis, até que entendo. Livros são sempre testemunhos de uma época. Se não têm interesse literário, preservam o interesse histórico. Todas as bibliotecas estão repletas deste lixo. Mais difícil é entender o caso relatado em Veja pela psiquiatra Christina Hajaj Gonzalez. Uma de suas pacientes descobriu a doença em uma de suas tias, que morava sozinha. Um acidente levou a idosa ao hospital e a sobrinha foi buscar roupas e documentos da tia. O que encontrou era aterrorizante. Pilhas e mais pilhas de sacolas plásticas amontoadas pela casa explicavam a recusa da tia em receber visitas. Seu conteúdo ia de compras antigas, como cosméticos vencidos e ainda lacrados, a lixo orgânico deteriorado. Muitas continham dinheiro, o que obrigou os familiares à insalubre tarefa de remexer as sacolas uma a umas antes de descartá-las.

Entrar em um apartamento assim é de fato aterrorizante. Eu que o diga. Psiquiatras, como sempre, estão buscando predisposições genéticas ou lesões cerebrais para explicar a doença. Pesquisadores da Universidade de Iowa descobriram uma relação entre o distúrbio e lesões em áreas específicas do córtex pré-frontal do cérebro. Segundo pesquisas, homens e mulheres teriam passado a entulhar suas casas após ter um aneurisma ou um tumor cerebral. Leigo no assunto, não consigo ver em uma lesão cerebral as causas de tal comportamento.

A reportagem concorda em parte comigo. A doença nasceria de uma mesma raiz, a dificuldade de tomar decisões. O colecionador não consegue decidir o que é lixo e o que é útil e acaba guardando tudo.

Estranhas doenças a vida urbana produz.