¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, fevereiro 11, 2012
 
ESSES JUÍZES FANTÁSTICOS E
SUAS SENTENÇAS MARAVILHOSAS



No fim de semana passado, a secretária francesa da Saúde, Nora Berra, pediu que pessoas mais vulneráveis, como bebês, idosos, doentes e moradores de rua “evitem sair de casa” e “usem roupas apropriadas”. Pouco depois de divulgar o post em seu Twitter, Nora recebeu uma enxurrada de mensagens de internautas que perguntavam como um morador de rua poderia evitar sair de casa.

Bem, a rigor a secretária pode até ter alguma razão. Digamos que o morador de rua tenha como teto uma ponte. Claro que a ministra podia ser mais precisa: que moradores de rua não saíam de suas pontes. Mas um secretário de Estado não pode pensar em tudo, oras.

A ministra, então, deletou o tweet e retirou a referência aos sem-teto no texto publicado no blog. Em outro post na rede social, disse que a questão tinha sido um mal entendido e reclamou: “Certos assuntos não devem ser tratados com ironia.” Isto me lembra um pouco a “Modesta proposta”, de Swift, para resolver o problema dos pobres na Irlanda:

“Um jovem americano muito entendido, que conheço em Londres, me assegurou que uma criancinha saudável e bem criada constitui, com um ano de idade, o alimento mais delicioso, nutritivo e completo, seja cozida, grelhada, assada ou fervida; e não duvido que possa ser igualmente servida para um guisado ou um ensopado.

“Portanto, proponho humildemente à consideração do público que, das 120 mil crianças já relacionadas no Reino, 20 mil sejam reservadas para a reprodução; destas, somente 1/4 será de machos, o que já é mais do que permitimos às ovelhas, aos bois e aos porcos; e minha razão é que raramente estas crianças são frutos do matrimônio, coisas não muito apreciada pelos nossos camponeses; em conseqüência, um macho será o suficiente para servir até 4 fêmeas. De maneira que as 100 mil restantes podem, com um ano de idade, ser oferecidas às pessoas nobres e de fortuna do Reino, aconselhando sempre às mães que as amamentem abundantemente durante o último mês, a fim de que fiquem bem gordinhas e rechonchudas para uma boa mesa. Uma criança dará 2 pratos em um jantar com os amigos e, quando a família cear sozinha, o quarto traseiro ou dianteiro será um prato razoável que, temperado com um pouco de pimenta e sal, será excelente refeição até o quarto dia, especialmente no inverno”.

Com a diferença de que Swift fazia ironia. Não foi o caso da ministra francesa. Como a estupidez é contagiante e se espalha com a velocidade de moeda ruim, nestes mesmos dias, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou prisão domiciliar a um morador de rua preso em flagrante acusado de furto. É o que leio nos jornais.

Nelson Renato da Luz foi preso em flagrante em outubro do ano passado quando tentava furtar placas de zinco da estação República do metrô. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva. No entanto, laudo pericial comprovou que o suspeito é inimputável (sofre de doença mental e é pessoa comprovadamente incapaz de responder por seus atos) e, portanto, não poderia ser preso.

O relator cogitou da internação provisória de Luz em um hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que a medida só se aplica nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça.

Luz não se enquadra em nenhum dos casos. A solução encontrada pela 1ª Câmara de Direito Criminal, a partir do voto do relator, Figueiredo Gonçalves, de mandar o acusado responder ao processo em prisão domiciliar - quando ele não tem residência fixa - criou outro problema para o suspeito. Apesar de estar solto, poderá ser detido novamente. Pelo simples fato de existir, está cometendo um crime.

E nisto estamos. Quem quiser entender melhor o caso, leia O Processo, de Kafka. O romance do escritor checo conta a história de Josef K., personagem que acorda certa manhã, e, sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado.

Mas o melhor vem agora. Um juiz da Flórida, nos Estados Unidos, condenou um marido a agradar sua mulher após ter sido acusado de agressão doméstica. Com a sentença, o americano Joseph Bray terá que jantar em um restaurante de frutos do mar, comprar flores, ir ao boliche e freqüentar cursos de aconselhamento matrimonial com a mulher.

Bray agrediu a mulher por ela ter reclamado que ele não havia lhe dado os parabéns no dia de seu aniversário. Segundo o juiz, cumprindo todas essas ordens, Bray evitaria passar um considerável tempo na prisão por uma atitude que, segundo a corte, não foi tão grave. Bray não tinha antecedentes criminais.

"Ele vai comprar um cartão, flores e depois vai para casa, pegar sua mulher, se vestir e levá-la ao Red Lobster e depois os dois vão jogar boliche", declarou Hurley.

Imagine que, por motivos que não vêm ao caso, você passe a abominar sua mulher. Chega então a Justiça e diz: “Ah! Então você não gosta mais dela? Pois agora vai levá-la a bons restaurantes, comprar-lhe flores e levá-la ao boliche”. A meu ver, não há melhor fórmula para transformar o não-gostar em ódio.

Mutatis muitandis, esta fórmula de querer obrigar alguém a amar – ou pelo menos a fingir que ama – não é exclusivamente ianque. Pululam no Brasil ações em que o juiz obriga um pai separado a visitar o filho. A primeira ação neste sentido no Brasil ocorreu em 2003, quando o juiz Mario Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, obrigou Daniel Viritato Afonso – que já pagava pensão alimentícia de quase R$ 1 mil, a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”.

Ora, há pais que adoram seus filhos e outros não. As razões porque não os adoram não interessam. O problema é que nada no mundo – muito menos uma sentença judicial – pode obrigar alguém a gostar de alguém. Isto deve ser resquício do preceito cristão de amar todo mundo, como se todo mundo fosse amável.

Me obrigasse um juiz a visitar um filho que não quero visitar, já a partir da primeira visita eu o estaria odiando. Tanto no caso da sentença do juiz americano como na do brasileiro, pune-se tanto a vítima como o pai ou marido inadimplente. O marido, que certamente detesta sua mulher, tem de levá-la a bons restaurantes e oferecer-lhe flores. A mulher também é humilhada, pois sabe que aquelas gentilezas são decorrência não de afeto, mas de uma sentença judicial. O mesmo diga-se do pai obrigado a visitar o filho.

Ah! esses juízes fantásticos e suas sentenças maravilhosas... Me lembram o caso do alfaiate que, no afã de encontrar o terno ideal que sirva a todos, acaba confeccionando um que não serve a ninguém.

Mas, por obrigação legal, tem de ser usado.