¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 13, 2012
 
PRONTO PARA O PALIATIVO


Há algum tempo atrás, quando passei pelo estaleiro para uma recauchutagem, ouvi duas médicas conversando. Como quem fala de um filme que viu ontem, dizia uma delas: “Sabe, Fulana foi para o paliativo”. Supus que fosse uma fase qualquer do tratamento, e de fato era: é aquela que precede a morte. Quem vai para o paliativo – só fui saber depois – recebe os cuidados mínimos para ter uma morte mais ou menos confortável. Vivendo e aprendendo.

Bronnie Ware, enfermeira que passou muitos anos trabalhando com cuidados paliativos, cuidando de pacientes em seus últimos três meses de vida, conta em The Top Five Regrets of the Dying, que os pacientes ganharam uma clareza de pensamento incrível no fim de suas vidas e que podemos aprender muito desta sabedoria. "Quando questionados sobre desejos e arrependimentos, alguns temas comuns surgiam repetidamente", disse Bronnie ao jornal britânico The Guardian. Vejamos a lista de Bronnie:

1. Eu gostaria de ter tido a coragem de viver a vida que eu quisesse, não a vida que os outros esperavam que eu vivesse

"Esse foi o arrependimento mais comum. Quando as pessoas percebem que a vida delas está quase no fim e olham para trás, é fácil ver quantos sonhos não foram realizados. A maioria das pessoas não realizou nem metade dos seus sonhos e têm de morrer sabendo que isso aconteceu por causa de decisões que tomaram, ou não tomaram. A saúde traz uma liberdade que poucos conseguem perceber, até que eles não a têm mais."


Bom... Qual é a vida que uma pessoa quer? Para começar, jovem nunca sabe o que realmente quer. E há muitas pessoas que se tornam adultas sem nada saber do que querem. Mas admitamos que alguém, lá pelos seus dezoito ou vinte anos, tenha uma idéia mais ou menos precisa do que quer como futuro. Que queria eu nessa idade? O que mais queria era alguma fórmula de obter independência econômica, ter meu espaço privado para viver, não depender de meus pais. A fórmula era o de menos. Estudei Filosofia e Direito. Filosofia por curiosidade. Direito para comer. Vai daí que joguei quatro anos fora, pois logo vi que não conseguiria exercer nem o magistério nem o Direito.

Como além de gostar de escrever, escrevia bem, acabei caindo no jornalismo. Inicialmente fui redator, profissão que não me desagrada exercer. Mais adiante, por cincos anos, trabalhei naquilo em que gostava de trabalhar, a crônica diária. Quatro destes anos, sediado em Paris. Suponho que um jornalista nada deseje de melhor na vida. Curti Paris e tudo que Paris oferece e fiz um doutorado. Daí pela frente, alternei minha vida entre magistério, traduções e jornalismo. Bebi, viajei, amei, vivi, como diria o Pessoa. Vivi também em duas outras cidades na quais queria viver: Estocolmo e Madri. Sim, eu tive a coragem de viver a vida que quis viver.

Sonhos irrealizados? Sim, uma aurora boreal. Mas ainda há tempo. Vamos ao segundo item da lista:

2. Eu gostaria de não ter trabalhado tanto

"Eu ouvi isso de todo paciente masculino que eu trabalhei. Eles sentiam falta de ter vivido mais a juventude dos filhos e a companhia de seus parceiros. As mulheres também falaram desse arrependimento, mas como a maioria era de uma geração mais antiga, muitas não tiveram uma carreira. Todos os homens com quem eu conversei se arrependeram de passar tanto tempo de suas vidas no ambiente de trabalho."


Como sempre trabalhei em ofícios que não me desagradavam, desse mal não padeço. Aliás, gostaria de ter trabalhado mais. Sou um tanto dispersivo e gasto boa parte de meu tempo em bares e viagens. Houve também os dias de desemprego, coisa que acontece com todo mortal.

3. Eu queria ter tido a coragem de expressar meus sentimentos

"Muitas pessoas suprimiram seus sentimentos para ficar em paz com os outros. Como resultado, eles se acomodaram em uma existência medíocre e nunca se tornaram quem eles realmente eram capazes de ser. Muitos desenvolveram doenças relacionadas à amargura e ressentimento que eles carregavam."


Esta, decididamente, não está em minhas queixas. Nunca tive medo de expressar meus sentimentos ou opiniões. Em função disso, criei muitos inimigos e desafetos. Mas também muitos amigos e amigas. Boa parte de meus atuais relacionamentos decorrem do que escrevi. A coluna na Folha da Manhã, particularmente quando em Paris, me rendeu não poucas namoradas. Jamais tive medo de ser visto como de esquerda ou de direita, como ateu ou devasso, como isto ou aquilo. Sou o que sou – como já dizia o Jeová. Com uma diferença: ninguém é obrigado a adorar-me. Que me queira quem me quiser. Amargura e ressentimento são doenças que desconheço.

4. Eu gostaria de ter ficado em contato com os meus amigos

"Freqüentemente eles não percebiam as vantagens de ter velhos amigos até eles chegarem em suas últimas semanas de vida e não era sempre possível rastrear essas pessoas. Muitos ficaram tão envolvidos em suas próprias vidas que eles deixaram amizades de ouro se perderem ao longo dos anos. Tiveram muito arrependimentos profundos sobre não ter dedicado tempo e esforço às amizades. Todo mundo sente falta dos amigos quando está morrendo."


Meus amigos mais recentes são de pelo menos há vinte anos. De modo geral, eu os cultivo há quatro ou mais décadas. Temos envelhecido juntos, o que torna o envelhecer mais ameno e menos perceptível. Aliás, creio que são necessários pelo menos uns quarenta anos para considerarmos alguém um amigo. E às vezes ainda é pouco. Me faz falta, é verdade, a companheira que me acompanhou por 38 anos e por mais décadas me acompanharia se não tivesse partido. Amizades é o melhor de uma vida.

5. Eu gostaria de ter me permitido ser mais feliz

"Esse é um arrependimento surpreendentemente comum. Muitos só percebem isso no fim da vida que a felicidade é uma escolha. As pessoas ficam presas em antigos hábitos e padrões. O famoso 'conforto' com as coisas que são familiares. O medo da mudança fez com que ele fingissem para os outros e para si mesmos que eles estavam contentes quando, no fundo, eles ansiavam por rir de verdade e aproveitar as coisas bobas em suas vidas de novo."


Cá entre nós, felicidade é algo em que nunca pensei. Me soa à coisa de auto-ajuda. Nunca me propus a ser feliz. Gosto, isto sim, de estar bem comigo mesmo. Não consigo ficar um segundo ao lado de pessoa de quem não gosto. Se alguém me vir sentado com alguém, pode estar certo de que é pessoa de quem gosto. Em minha juventude, tive de aturar chefes e chatos. Hoje, não mais. Em uma época que não poupa nada nem ninguém - dizia Goethe - vou pelo menos poupar a mim mesmo.

Apesar de ser, no fundo, um sedentário, nunca tive medo de mudanças. Vivi em três países fora o meu, em mais de dez cidades, e provavelmente em uma meia centena de endereços. Ernesto Sábato reclamou um dia do espaço que meus endereços ocupavam em sua agenda. De modo geral, nunca soube onde iria bater as botas. Hoje, sei. Salvo acidente, será neste apartamento onde escrevo.

Como nunca pensei em felicidade – esse sonho dos filmes de Hollywood – não sei se gostaria de ter-me permitido ser mais feliz. Poderia conhecer novos países, mas ando um tanto cansado de aeroportos. E quando quero conhecer país novo, Paris, Madri e Roma me puxam irremediavelmente. Que fazer? É lá que me sinto bem.

Que horror, caríssimos! Estou pronto para o paliativo e não sabia.