¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, fevereiro 02, 2012
 
QUANDO AS FOTOS MENTEM


“Um homem caminha por uma rua de Atenas que não parece Atenas; poderia ser o Bronx, qualquer bairro marginal do mundo. Leva as mãos no bolso e o olhar baixo, triste. Não há portais, nem quiosques, nem ruídos. Só se escuta o caminhar do homem cabisbaixo. Um grafiti se destaca sobre os demais. A jovem pintada segura um cartaz no qual se lê uma declaração: “Sem esperança”. A mulher olha de frente, com a cabeça erguida; também parece triste. É uma foto de tristezas acumuladas. Ao lado estão escritas palavras soltas. Parecem gritos isolados, enfados individuais. Todos juntos são uma declaração política, quase filosófica, frente à desesperança: sistema monetário, capitalismo, religião, corrupção, guerra, injustiça, solidão, globalização, imortalidade”.

Assim descreve El País uma foto de um homem que passa por uma parede grafitada de um bairro deteriorado de Atenas. Olho para o homem e nele não vejo nada que possa parecer tristeza. Tem um semblante grave, parece preocupado. Daí a estar triste, só na cabeça do redator. Está bem vestido, com um abrigo aparentemente de grife, que não é para qualquer pobretão. Já a rua por onde passa tem uma parede suja de grafites, como centenas de ruas em centenas de cidades do mundo. Ruas assim, você encontra nas ricas Paris ou Madri, Estocolmo ou Copenhague. A propósito, nesta última, existe um bairro muito conhecido, Christiania, território livre para consumo e comércio de drogas, cujas ruas nada ficam a dever à rua da foto em Atenas.

Nenhuma capital de país rico está livre de bolsões de pobreza, e mesmo de miséria. Há uns bons vinte anos, vi moradores de rua deitados na aristocrática Place des Vosges, em Paris. Mendigos, nós os vemos na Puerta del Sol, em Madri, ou na Piazza Spagna, em Roma. Nem por isso podemos deduzir, a partir de um momento isolado, que um país esteja em crise.

Que a Grécia vive uma crise, disto estamos cientes. Mas a foto do El País não prova crise alguma. É um trocadilho. O homem foi fotografado quando passava ante um grafiti que falava em desesperança. Uma foto de um homem caminhando por uma rua suja não prova nada. Mostra apenas que um homem caminha por uma rua suja. Nápoles, há décadas, é um lixão a céu aberto e nem por isso se falava de crise da Itália.

O redator, pelo jeito, pertence àquela raça secular do Luís Fernando Verissimo, que há pouco se regozijava com o naufrágio do Concordia:

“Disseram do naufrágio do Titanic em 1912 que ele simbolizou o fim tardio do século 19, com sua fé na tecnologia e no domínio do homem sobre a natureza. Se aquele magnífico navio adernado na costa da Itália simboliza alguma coisa é o fim de outra ilusão que ninguém esperava fosse acabar: a união européia, o euro forte e os anos de euforia com o dinheiro farto. E ninguém viu as pedras”.

Escrevi na ocasião que as esquerdas odeiam a Europa. De fato, odeiam, mas não fui exatamente preciso. Nenhum Pablo Neruda, nenhum Jorge Amado, nenhum Chico Buarque, nenhum Darcy Ribeiro diriam que odeiam Paris, Berlim ou Roma. O que odeiam, mais precisamente, é a idéia de Europa. A idéia de um continente onde cada país tem vários partidos, onde as eleições não são uma farsa, onde a imprensa é livre, como também é livre a expressão do pensamento. Na hora de defender um regime de governo, estes senhores tomam o partido de ditaduras.

Tanto Jorge Amado como Chico Buarque adoram a ditadura cubana. Na hora de eleger uma maison secondaire, instalaram-se às margens do Sena. Neruda detestava Berlim. A Berlim Ocidental, é claro, uma das mais esplendorosas cidades do mundo. Não que odiasse o que a Berlim de cá oferecia. O poeta era bom de garfo e de copo, tinha todos os motivos para gostar da cidade. Acontece que a Berlim ocidental era um repto permanente ao comunismo.

Da mesma forma, a Europa. O senador monoglota e comunista Darcy Ribeiro adorava Paris, onde se sentia tão à vontade que se deu ao luxo de espancar uma mulher numa estação de metrô, para levá-la para a cama. Mas desprezava o continente. Darcy o definia como "aquela peninsulazinha da Ásia, dobrada sobre a África". O “peninsulazinha” de Darcy joga no lixo todos os séculos de cultura européia. Já Guimarães Rosa, homem culto e não contaminado pelo sarampo do século passado, a via como “pequena e ativa”. Atívissima, acrescentaria eu. A cultura que hoje embasa o que chamamos de Ocidente, artes, ciência e tecnologia, têm suas origens na peninsulazinha.

Um jornalista pode muito bem documentar a miséria em Paris ou Nova York fotografando as filas dos sopões. Mas sopão é acidente. Dezenas de pessoas estendendo um prato para receber uma colher de sopa não significa que um país esteja em crise. São apenas falhas do sistema. Mas se você vê, como eu vi na Romênia, pessoas se esbofeteando ao disputar uma paleta de boi num mercado, aí a situação é mais grave. Ali se esbofeteavam não mendigos, mas as raras pessoas que tinham condições de comprar carne.

Em meus dias de Madri, vi uma foto assustadora, em cinco colunas, no El País. Dois travestis giravam bolsinha nalguma avenida do Rio de Janeiro. Era época de carnaval. O Rio era mostrado como a capital da Aids. O leitor ingênuo, aquele que só lê títulos e vê fotos, deve ter eliminado o Rio de seus planos. Ora, dois travestis girando bolsinha encontramos em qualquer capital européia.

Mas o melhor do texto de El País vem agora:

“A Grécia é um país que não pode pagar uma dívida acumulada nos felizes anos da irresponsabilidade. Os médicos da troika lhe receitaram ajuste sobre ajuste sem se importar com os efeitos secundários, os danos colaterais. Parece um laboratório de experimentação econômica em tempos de crise. Nada mudou no essencial, só um detalhe: a Grécia já não existe, deixou de ser notícia”.

Haja vontade de ver a Europa no fundo do poço. Que a Grécia tenha deixado de ser notícia é uma bela notícia para a Grécia. A imprensa adora desastres, vide o naufrágio do Concordia, que até hoje freqüenta as páginas dos jornais. Quando um país não existe para a imprensa, é porque o país vai bem.

Seja como for, o redator certamente não passou pela Plaka, onde gregos e turistas estão bebendo retsina e uzo, dançando sirtaki e quebrando pratos. Que me conste, os turistas continuam subindo Santorini em lombo de mula e a bicharada européia está em plena ebulição em Mykonos. A Grécia é um poderoso pólo turístico e enquanto os turistas continuarem invadindo o continente e as ilhas do Egeu, é difícil afirmar que a Grécia não existe.

Turistas não costumam visitar o nada.