¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, março 18, 2012
 
FÁCIL DEFENDER O
QUE ESTÁ LONGE



Quem gosta de cachorros e crianças não pode ser bom caráter – dizia William Thackeray. A frase do novelista inglês deve provocar arrepios nesta nossa época em que os cães estão substituindo os seres humanos na escala dos afetos. Gosto de cães, mas com distância. Tive vários em minha infância, adorava brincar com eles no campo e tive de deixá-los quando fui para a cidade. Meus pais consideravam que cidade não é pra cachorro. Quando os revisitava no Ponche Verde, eles me reconheciam de longe e saíam a fazer-me festa.

Mas nunca consideramos cachorro como gente. Nós vivíamos em casa. Eles, lá fora. E que tratassem de seu sustento. No campo havia muita caça. Fora isto, alguma sobra de cozinha, e olhe lá. Meu espanto com o tratamento recebido pela raça começou em Estocolmo, anos 70, quando vi pela primeira vez um manual de culinária canina. (Hoje, em São Paulo, já há chefs para cães). E continuou em Paris, onde o direito de visita ao cão virou objeto de disputa judicial entre casais que se separavam.

Criado e nascido no campo, estas deferências para com os cães, que são tratados com um carinho que supera o dedicado aos seres humanos, até hoje me chocam. O cachorro acabou se adaptando, ou foi adaptado, à cidade, e hoje faz parte da geografia urbana. Eu que o diga, que vivo no bairro de maior concentração canina de São Paulo. Certa vez, eu conversava com uma wicca – é, isto também existe em São Paulo – que se fazia acompanhar de um imenso labrador. Lá pelas tantas, chegaram à mesa algumas amigas suas, apresentadas incontinenti ao cachorro. Fui solenemente ignorado. A mesa toda concentrou-se em torno ao animal. Discretamente, peguei meus jornais e dei no pé. Minha saída nem foi notada.

As páginas dos jornais estão recheadas de crimes medonhos, que parecem não mais causar espécie a ninguém. É o caso daquela moça que foi esquartejada e incinerada a mando de um goleiro de futebol. Ou daquela jovem advogada, que namorava um ex-inspetor de polícia. E tantos outros. Não tenho encontrado, nos ditos sites de relacionamento, manifestações de solidariedade a tais pessoas. Mas basta que um cachorro perambule pelas ruas, abandonado, e chovem manifestações em defesa do bicho. O Facebook, sem ir mais longe, virou um templo para cachorrófilas. Pelo que se vê, o cachorro goza de muito mais apreço que os seres humanos.

Até que entendo. O cachorro, mesmo se maltratado, recebe seu dono com um afago de volta. São incondicionalmente carinhosos, não têm vontade própria e assumem a ideologia do dono. Cachorro tem ideologia. Você já viu um gato policial? Certamente não. Mas cachorros policiais existem às pampas.

Reacionário e conservador, continuo preferindo a companhia dos bípedes. Ser humano é mais difícil que cachorro, é claro. Mas prefiro as arestas de meus semelhantes ao amor incondicional dos caninos. Em meio a isso, me espanta que até hoje os cachorrófilos não tenham reivindicado um status jurídico para os cães.

Já se tentou para os gorilas. Há uns cinco anos, ativistas da Nova Zelândia exigiam a extensão da comunidade dos iguais para incluir todos os antropóides: seres humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos. Como se igualdade houvesse entre racionais e irracionais. Enquanto o ser humano constrói desde pirâmides a cidades, desde televisores a iPods, os símios continuam pendurados pelo rabo nas selvas.

Os militantes da nova causa querem garantir aos símios o direito à vida, a proteção da liberdade individual e a proibição da tortura. Estão chovendo no molhado. Tais direitos sempre foram garantidos a essas espécies, sem declaração alguma de direitos dos símios. A liberdade individual pode até ser ameaçada pelos circos. Mas seria o caso de perguntarmos a um macaco – se é que ainda não é crime de racismo chamá-lo de macaco – o que ele prefere, se o conforto do circo ou a dura luta pela vida na selva. É claro que ele não vai responder.

Não bastasse este sofisma dos tempos modernos – a igualdade entre humanos e símios – ativistas mais exaltados querem agora conferir “direitos humanos” às orcas e golfinhos. O parque aquático Sea World, nos EUA, foi processado por confinar cinco membros de sua equipe em um espaço diminuto e obrigá-los a fazer rotineiramente apresentações para o público. As autoras da ação? Um grupo de cinco orcas.

Sei! As cinco orcas se reuniram na praia, elaboraram um habeas corpus, o assinaram e deram entrada no tribunal. Mas parece que não foi bem assim. As orcas foram representadas por uma ONG de direitos dos animais, que entrou com o pedido. Embora o juiz tenha optado por não levar o caso adiante, essa foi a primeira vez que um tribunal federal americano chegou a analisar algo do tipo. Perguntinha que se impõe: quem passou procuração à tal de ONG? As orcas não terão sido.

Junto aos direitos humanos das orcas, quer-se reconhecer também os direitos humanos dos demais cetáceos, que inclui os golfinhos e as baleias. Thomas White, especialista em ética da Universidade Loyola Marymount, nos EUA, é o principal defensor da causa. O que já é uma inovação: animais, hoje, passaram a ser sujeitos de uma ética. Reacionário como sempre, sempre imaginei que ética regulamentasse – ao lado do Direito – as relações entre seres humanos.

Ó tempora, ó mores! Uma carta de direitos dos cetáceos já está sendo cogitada. Para quando uma carta de deveres? Enquanto isso, seres humanos morrem aos magotes, em guerras e epidemias. Seria talvez oportuno elaborar uma declaração de direitos animais e nela incluir os humanos, para a proteção destes.

Em 2010, em um congresso em Helsinki, na Finlândia, foram decididos os pontos principais desse documento. Agora, White e outros cientistas viajam o mundo tentando difundi-lo. No mês passado, eles foram a um dos maiores eventos científicos do mundo, a reunião anual da AAAS (Sociedade Americana para o Progresso da Ciência) em Vancouver, no Canadá, tentando engajar os cientistas e a opinião pública em favor da causa dos cetáceos.

Defender baleias e golfinhos é fácil, eles continuam lá longe no mar enquanto seus defensores participam de congressos nas mais prestigiosas metrópoles do mundo. Difícil mesmo é defender o pobre diabo que morre de frio e fome a nosso lado, nas calçadas das grandes cidades.