¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 18, 2012
 
O VISIONÁRIO DE TAUBATÉ (II) *


Taubateano antecipa a Internet - Além de aventar uma possível evolução da questão negra nos Estados Unidos, Lobato angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" - e isso nos primórdios do século - necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de "rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro:

"Pelo sistema atual - Lobato refere-se a 1926, quando ainda escrevia no Estado de São Paulo - o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor - correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa - como estou fazendo agora -, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo ocidental. E quando o acervo da literatura universal estiver digitalizado, poderá consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.

Além da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego" - continua Lobato -. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado".

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho - trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato - já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete décadas.

A biblioteca de Borges - Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe ab aeterno e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis Borges, em um conto datado de 1941, "A Biblioteca de Babel". Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos. O problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para buscar os livros.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca Nacional de Madri. Ou as bibliotecas da USP, Unesp e Unicamp em São Paulo. Por enquanto, apenas bibliografia, é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio livro à disposição do usuário, o que está sendo feito pelo projeto Gutenberg e a ABU , entre outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance, desde Plutarco e Platão, até Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por enquanto em francês e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos em português e espanhol.

Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand - Tontonkhamon, para os inimigos íntimos - em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

A pergunta "quantos livros tem sua biblioteca?" inclusive perdeu o sentido e não mais permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de quantos livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão - ou de seu mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na grande rede, esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha uma linha telefônica por perto.

Borges plagia Lobato - Borges, sonhador irrecuperável, antecipa em suas ficções a biblioteca sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção. Mas o autor vai mais longe em seu desejo de futuro. Em "El Aleph", conto publicado em 1949, Borges nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que "versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um aleph, "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino, através do qual Miss Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtem, neste aparelho,

uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d'água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de "El Aleph", é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

* Junho de 1998