¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, abril 07, 2012
 
NA ARTE, É LINDO!
NA VIDA É CRIME *



Pois é! Maomé, o profeta analfabeto, fundador de uma das religiões que hoje mais avançam no mundo, a rigor teria direito a quatro mulheres. Por deferência especial de Alá, teve quinze. Sua última mulher foi Aicha, que foi sua noiva aos seis anos e deflorada aos nove.

Coisas da Hégira, seis séculos depois da era cristã. Que não era muito diferente. Maria foi engravidada aos treze anos. E não foi por nenhum menininho de sua idade, o que segundo conceitos contemporâneos não é pedofilia. Foi por um senhor bem mais idoso. Aliás, idoso é eufemismo. O Espírito Santo, o pai do judeu aquele, era eterno. A diferença de idades era incomensurável. Seria o Paráclito um pedófilo? Deixo a questão para os teólogos.

Já escrevi sobre o assunto, há meia dúzia de anos, quando a Folha de São Paulo lançou, com uma tiragem de um milhão e cem mil exemplares, Lolita, de Vladimir Nabokov. O livro foi distribuído gratuitamente em uma edição dominical, a todos seus compradores e assinantes do jornal. Exceção feita dos livros didáticos, jamais uma obra teve tal difusão no país. É como se a imprensa, que já destruiu a vida de tantas pessoas com a acusação de pedofilia, fizesse então um mea culpa.

Meio século depois de publicado, o romance conserva ainda seu potencial subversivo. Este vigor não decorre da obra em si. Mas da oposição a uma época que, de repente, parece ter optado pela hipocrisia e conservadorismo. Em boa parte dos países do Ocidente, enquanto se beatifica o homossexualismo, passou-se a criminalizar a prostituição. Desde a liberal Suécia, que nos setenta guindava a profissional do sexo à condição de assistente social e hoje as reprime com rigor, até as libertinas França e Itália, que cantaram as prostitutas em prosa e celulóide e hoje as expulsam das ruas, vê-se hoje uma diretriz que tende a eliminar da face da terra os encantos do sexo pago. Nos Estados Unidos, Bush destinou milhões de dólares para incentivar a castidade. Em meio a esta onda de moralismo tardio, legisladores incomodados com o prazer alheio, querem condenar ao báratro os cultores da sensualidade adolescente. Esquecidos de que o mito maior e mais intocável do Ocidente, a mãe-virgem, concebeu seu filho aos quatorze anos.

Com seu romance, Nabokov imortalizou a personagem da adolescente sensual, que desde há muito tem perturbado homens maduros. Para começar, foram as prediletas de Lewis Carrol, não por acaso um escritor que cultivou o gênero infanto-juvenil. Thomas Mann cria uma versão masculina da adolescência erótica, com Tadzio, em Morte em Veneza. Tadzio tem quatorze anos e espicaça o desejo do senil Aschenbach. Lolita tem doze. Wilhelm von Gloenden, em Taormina, fotografa adolescentes nus com um realismo que Visconti jamais ousaria. Segundo as más línguas, a fama dos meninos de Von Gloenden teria feito até mesmo Nietzsche rumar até a Sicília.

É curioso constatar como absolvemos estas transgressões, quando transmutadas pela arte. Tanto os livros de Mann e Nabokov, como os filmes a partir deles gerados, marcaram a sensibilidade de gerações. Mas vá um comum mortal assumir as preferências de Aschenbach ou Humbert Humbert. Será execrado como monstro pela mesma sociedade que aplaudiu os livros e os filmes. Com restrições, é verdade. Se Mann não teve maiores problemas com a censura, Nabokov teve não poucas dificuldades para editar seu livro. Mas, apesar do moralismo contemporâneo, a obra foi distribuída aos milhões no Brasil. E de graça.

Nabokov é um escritor bafejado pelas musas. Conseguiu, como Cervantes, criar um personagem que se torna referência universal. Lolita hoje é substantivo comum. Milhões de pessoas que sequer têm idéia de quem tenha sido Nabokov, sabem o que seja uma lolita. É um daqueles raros momentos na história da literatura, em que o personagem mata o autor. Não confundir, bem entendido, a sensual Lolita com nossas milhares de adolescentes, que se tornam mães ou por moda, ou para independentizar-se dos pais, ou para brincar de bonecas. Lolita é sexo puro, nada a ver com poedeiras precoces. Este nosso país tropical banalizou Lolita, ao despi-la de sua sensualidade e transformá-la em monótona estatística.

Humbert Humbert pode reconhecer a crueldade e a vileza de suas ações como pedófilo. Para bom entendedor, vê-se que é um recurso do autor para preservar sua obra. A cautela de Nabokov não convence. Seu crime (?) é relatado com uma volúpia que até hoje subverte.

Repito tudo isto para falar de Roman Polanski, o cineasta polonês detido no mês passado na Suíça, em função de uma affaire pendente nos Estados Unidos há 30 anos. Polanski, premiado por filmes como O Bebê de Rosemary (1968), Chinatown (1974) e O Pianista (2002), foi retido no aeroporto de Zurique, onde chegou para receber um prêmio de um festival de cinema. O caso data de 1977, quando os pais de uma adolescente de 13 anos apresentaram um processo contra Polanski, acusado de drogar e estuprar a jovem modelo.

Embora Polanski tenha se declarado culpado de "relações sexuais ilegais", a relação foi consensual. Permaneceu na prisão em "avaliação" durante três meses, onde só passou 47 dias. No final de 1978, Polanski, em liberdade sob fiança, pegou um avião para a Europa e nunca mais voltou a solo americano.

Em 2003, Samantha Geimer, a menina “estuprada” por Polanski, deu entrevistas apoiando a indicação do cineasta ao prêmio de melhor diretor pelo trabalho em O Pianista. "Acho que as pessoas querem que eu fique realmente brava com ele; honestamente, não me sinto assim. Acho ele um diretor realmente bom", disse.

Samantha, a suposta vítima, não tem queixa nenhuma contra o cineasta. Polanski foi preso em função da hipocrisia de um Estado onde um blow job hoje é praticamente uma cortesia obrigatória de qualquer adolescente. Isso, na vida cotidiana.

Na arte, toda transgressão é linda.

Na vida, vira crime.

* 03/10/2009