¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 15, 2012
 
SURGE NOVA DOENÇA


Leio na Folha de São Paulo reportagem sintomaticamente intitulada “O novo melhor amigo do homem”. Seria o celular. Médicos já estão preocupados com a dependência do aparelhinho e o Hospital das Clínicas estuda criar um laboratório no próximo semestre para tratar da doença. Segundo uma psicóloga, na revisão do manual americano de transtornos mentais, no ano que vem será incluída a dependência de tecnologia.

Sou da época em que telefone era privilégio de abastados. Meu primeiro telefone – fixo, bem entendido –, eu o tive aos trinta anos. Em Paris. Porque no Brasil não tinha renda para comprar um. Naqueles dias, em causas judiciais que envolviam patrimônio, o telefone era arrolado como bem. Mais ainda, era declarado no Imposto de Renda. Havia inclusive uma bolsa de telefones, cujas cotações, assim como as do dólar, eram publicadas diariamente nos jornais. Hoje, um telefone no bairro tal era cotado a tantos mil dólares. Vivaldinos que jamais foram punidos, graças a relações com o poder compravam cem, duzentas ou trezentas linhas e viviam de vendê-las ou alugá-las. Era agiotagem das mais lucrativas e seus apaniguados se opunham com unhas e dentes a qualquer idéia de privatização da telefonia.

Verdade que, em Porto Alegre, jamais sentira necessidade de um. Talvez os jovens destes dias achem estranho, mas houve época na História em que era possível viver sem telefone. Em Paris, pensei no assunto. Sem muitas esperanças, devo confessar. No Brasil, o período de espera por uma linha era de cinco anos. Minha estada projetada na França era de quatro anos. Com sorte, pensei, terei telefone quando estiver partindo.

Chamei a telefônica lá deles. Meu primeiro choque foi com o preço, 300 francos, pagos em três vezes. Nestes dias de euro, já não sei quanto significaria 300 francos, mas eram perfeitamente compatíveis com minha magra bolsa de estudos. Isto aconteceu em 1977. Treze anos depois, em 1990, paguei quatro mil dólares por um telefone em São Paulo a um desses canalhas que operavam na bolsa de telefones. E atenção: eu disse dólares. Cruzeiros não eram aceitos em transações entre particulares.

Fiz então a pergunta que mais me preocupava: quando posso ter o telefone? Do outro lado da linha perguntaram por minha profissão. Jornalista, respondi. Não foi fácil acreditar na resposta: dentro de três dias. Para médicos e jornalistas o prazo é este. A França pode não ser o paraíso, pensei. Mas é a sua mais próxima versão.

De três milhões de anos para cá, nenhum de meus ancestrais teve telefone. Fui um pioneiro em minha linhagem. Meus pais, camponeses, teriam até medo de falar nestes aparelhos. Meu sogro, homem urbano e mais familiarizado com a modernidade, já ousava telefonar. Mesmo assim, ficava perplexo quando, em questão de segundos, estava falando com a filha, lá do outro lado do oceano. Vivi também a época do celular e acompanhei sua trajetória. O primeiro surgiu no Rio de Janeiro.

O aparelho parecia um daqueles rádios militares que vemos em antigos filmes de guerra, era imenso e custava 20 mil dólares. Exatamente, dólares. Prova evidente de que quem o possuía tinha cacife para pagar 20 mil dólares por um tijolo daqueles. Apesar de o preço diminuir, durante um bom tempo os celulares foram símbolos de status. Quem possuía um era pessoa de posses, se não rico pelo menos bem de vida. Vivi aqueles dias em que solenes bestas, ao chegar a um bar, esparramavam na mesa três sinais de seus padrões de consumo: as chaves do carro, o maço de cigarros e o celular. Na época, não havia a atual diversidade de tons de chamada. Quando um soava, todos corriam a empunhar o seu.

Naquela época, um fenômeno curioso ocorreu no Chile. Motoristas que eram multados por estar falando ao celular não estavam falando em celular nenhum. Usavam objetos que simulavam o celular, para aparentar status.

O celular foi barateando. Quando até mesmo prostitutazinhas de rua passaram a andar com um na cintura, escassearam os celulares nas mesas de bar. Já não constituíam mais distintivos de classe social. Mesmo assim, o ridículo persiste. Seguidamente vejo três ou quatro pessoas, sentadas em uma mesa, cada uma conversando com alguém distante em algum outro lugar da cidade ou do país. Ora, não me passa pela cabeça ver pessoas reunidas para falar com pessoas distantes.

Se celular é obviamente útil, mesmo necessário, também virou praga. Nada mais irritante estar assistindo a um filme quando toca o maldito aparelhinho. Mesmo em bares, consegue irritar. As pessoas sempre falam em tonalidade mais alta quando ao celular e ficamos submetidos a ouvir desde piadas bestas a confidências íntimas. Isso sem falar daqueles que o usam para jactar-se publicamente de posses ou status. Estes são legião. Nos primórdios da era do celular, conheci um negro que ordenava à sua secretária que o chamasse seguidamente. Sentia-se importante sendo buscado a toda hora. Sem falar nas dondocas que insistem em comunicar ao mundo: “querido, estás vindo no blindado ou na Pajero?” Não estou criando. Esta, juro que ouvi.

Celular já era. Estamos na era dos smartphones, iPads e iPhones. Particularmente aqui em São Paulo. Na rua, restaurantes, salas de espera, ônibus ou metrô, para onde quer que você olhe, há alguém plugado a um desses aparelhinhos. Segundo a Folha, em comparação com o aparelho convencional, o smartphone cria uma relação mais intensa com o dono, às vezes até de dependência. Esse comportamento já está chamando a atenção de psicólogos e psiquiatras, que tentam definir a barreira entre excesso e normalidade.

Segundo Cristiano Nabuco, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, “começam a pipocar casos preocupantes de relação absurdamente descontrolada”. Uma paciente de 17 anos pegou um vôo para Ilhéus (BA) e, quando chegou lá, se deu conta de que estava sem o telefone. Teve crise de abstinência, começou a chorar e só saiu do aeroporto quando a mãe mandou o aparelho, em outro vôo.

Ano passado, andei namorando o novo fetiche. Uma amiga me mostrou um iPhone em um bar e devo confessar que me senti tentado. Eu falava de minha última viagem pelos fjordes, falei do sol da meia-noite em Tromsø e ela imediatamente acionou o GPS e mostrou-me a costa norueguesa, Tromsø, Vesterålen, as ilhas Lofoten, Bodø, Ålesund, Trondheim, Bergen, em suma, todo meu trajeto estava ali na telinha, sem que eu precisasse desenhar. Bom para conversar sobre viagens, pensei. Comentei a entrevista de um escritor pouco conhecido, ela digitou o nome do fulano no aparelho e lá estava estava ele, falando em alto e bom som, à minha frente. Bom para discutir literatura, comentei com meus botões. Isso sem falar em correio eletrônico, navegação pela Web e outros recursos tipo cursos de língua, dicionários eletrônicos, música, ebooks.

Fiquei tentado, dizia. Mas, refletindo melhor, tenho tudo isso em meu computador. Certo, o computador fica lá em casa. Tenho até um notebook e um netbook – aliás já obsoletos –, mas tenho certo pudor em levá-los a meus bares. Quando saio de casa, quero distância da Internet. E se vou a um bar, quero beber, ler, conversar, tudo menos navegar. Meus portáteis, só os uso em viagens. De qualquer forma, me envergonharia ser confundido com essa massa toda de gentes que vive plugada a um smartphone.

Há uns três anos, em entrevista para o Libération, a socióloga Catherine Lejealle dizia:

- Quando se coloca a questão “você prefere perder sua carteira ou seu celular?” a grande maioria responde: a carteira. Porque se perco meu celular, estou morto. No fundo, o celular tornou-se nossa memória íntima. Mais útil que um canivete suíço, ele faz tudo: despertador, caderno de endereços, álbum de fotos... Ele serve também de cofre para jogos com as novas aplicações. Veja nos transportes: quando as pessoas se entediam, elas teclam no celular, como uma criança brinca com seus brinquedos.

Fossem só as crianças... Não há dia em que eu não veja barbados imersos em joguinhos e alheios ao que ocorre a um metro de seus narizes. Neoludita, minha evolução parou em um precário celular, que nem Internet tem. De modo algum me sinto morto sem celular ou gadgets outros. Meu celular é do neolítico da era das comunicações e só o uso aos sábados e domingos. Das 13 às 15 horas. É quando estou esperando, na rua, alguém para confraternizar. Sou imune à nova doença. Talvez um dia chegue à época em que vivo e pense em uma dessas engenhocas. Se for o caso, não será para exibi-la em bares. Mas apenas para uma consulta rápida.

Modernidade sim! Mas devagar.